Ana Penido e Suzeley Kalil Mathias*
Texto publicado originalmente do blog A terra é redonda
O objetivo deste texto é tecer algumas considerações sobre o Programa Nacional das Escolas Cívico-Militares (PECIM), instituído pelo Decreto 10.004, de 04 de setembro de 2019. O PECIM constitui a materialização das promessas de campanha de Bolsonaro, cujo sucinto Programa (um power point, na verdade) indicava de maneira vaga que a educação precisava de “novos conteúdos e métodos, sem doutrinação e sexualização precoces”, objetivando reverter os “péssimos resultados” diante dos “investimentos adequados”.
Para lograr este objetivo, dividimos o texto em curtos tópicos, dedicados a cada uma das ‘promessas’ contidas no PECIM, além dessa introdução, na qual se localiza o tema e sua problemática, e as considerações finais, quando resumimos nossas impressões. As fontes do trabalho são fundamentalmente a legislação disponível e material jornalístico, confrontados com algumas parcas análises sobre o processo de militarização do ensino brasileiro,[i] aqui representado pelo PECIM.
A educação no Brasil é regulada pela Constituição Federal e pela Lei 9394/1996, a chamada Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB). A Constituição indica a educação como direito de todos e dever do Estado (art. 205), determinando, entre outros quesitos “gestão democrática do ensino público, na forma da lei” (Art. 206-VI). Sobre este aspecto, a LDB estabelece que:
Art. 14. Os sistemas de ensino definirão as normas da gestão democrática do ensino público na educação básica, de acordo com as suas peculiaridades e conforme os seguintes princípios:
I – participação dos profissionais da educação na elaboração do projeto pedagógico da escola;
II – participação das comunidades escolar e local em conselhos escolares ou equivalentes.
Grifamos ‘sistemas de ensino’ para determinar do que estamos falando. São regulados pela LDB (Art. 8), três sistemas de ensino: o sistema federal, os sistemas dos Estados e do Distrito Federal e os sistemas municipais. Além desses, e que todos nós conhecemos, se somam outros três sistemas expressamente excluídos da alçada da LDB (Art. 83), o da Marinha, do Exército e da Aeronáutica, cada um com sua própria lei de ensino. Uma rápida consulta às respectivas leis, mostra que nenhum dos sistemas de ensino militar menciona “gestão democrática”. A isso voltaremos.
Ter seu próprio sistema de ensino foi uma prerrogativa que os militares garantiram para si mesmos ainda durante o Congresso Constituinte de 1988, reflexo de tantos anos de poder das corporações. As escolas militares têm outros métodos de ensino, outro material pedagógico, outro currículo, etc. E, principalmente, têm um objetivo diferente da emancipação através do conhecimento: seu objetivo é a disciplina necessária à guerra, que pode ser resumida pela doutrina dos três Ds: “não duvidar, não divergir, não discutir” (Rattembach, 1972). Em outras palavras, se o trabalho pedagógico exige disciplina, esta é um meio “consciente e interativo” na educação civil, enquanto que nas escolas militares a disciplina funciona como “um fim em si mesmo” (Alves; Toschi, 2019, p. 640).
Deve-se ter em conta também que o projeto de militarizar o ensino no Brasil não é novo. Pelo contrário, vários especialistas mostram que pelo menos desde a proclamação da República, as forças armadas fornecem projetos tanto de conteúdo (a introdução de disciplinas como educação física é o exemplo mais conhecido) e método (Ribeiro; Rubini, 2019), quanto de modelos administrativos (Mathias, 2003). Acrescente-se que o neoliberalismo e o conservadorismo em ascensão no mundo e especialmente no Brasil, combinado com o aumento da violência e da criminalidade é terreno fertilizado para o avanço de respostas mecânicas das autoridades (Martins, 2019), como o é a militarização das escolas.
Ditas essas breves palavras sobre as escolas para militares, encaminhamo-nos para o objeto desse curto artigo: o projeto das escolas cívico-militares. Como informado, por meio do decreto no 10.004, instituiu-se o Programa Nacional das Escolas Cívico-militares (PECIM). Embora o documento afirme que a adesão dos entes federativos ao PECIM seja voluntário, já no discurso de lançamento do projeto, Bolsonaro afirmou que é preciso impor a militarização às comunidades, pois pais que não aceitam a militarização seriam ‘irresponsáveis’, não sabem o que é melhor para seus filhos.[ii]
Outro elemento que cabe destacar deste mesmo discurso é sobre a novidade do PECIM, alardeada pelo MEC e pela propaganda oficial, mas ausente da fala presidencial que, ao contrário, mostra que o PECIM está lastreado nos projetos de ‘militarização’ das escolas públicas promovidas nos diferentes entes federativos por projetos de parceria com as secretarias de segurança pública, com o emprego das polícias militares e corpos de bombeiros. Assim, a única novidade do PECIM, como admite Bolsonaro, porque exalta as escolas sob gestão das PMs, é a inclusão de membros reformados das forças armadas para aturem nas escolas.
A primeira escola civil militarizada (gestão da PMGO) foi inaugurada em 1998 – apenas dois anos depois da LDB –, em Goiânia (GO), espalhando-se por 22 estados brasileiros de modo acelerado, chegando a 120 escolas em 2018, 55 das quais em Goiás. Com vinte anos de experiência, houve tempo mais que suficiente para que tais escolas mostrassem se e quanto são melhores que escolas públicas civis. No entanto, o que especialistas têm indicado é que as escolas civis militarizadas cumprem suas promessas apenas na aparência, repetindo experiências do passado (Ribeiro, Rubini, 2019, 762), além de confrontarem preceitos legais, inclusive constitucionais (Martins, 2019, 697). Conforme aponta a experiência do Amapá, “(…) a novidade do modelo aqui analisado só se sustenta do ponto de vista do arranjo institucional que transferiu a gestão da escola pública civil para [policiais] militares, constituindo-se assim, um modelo híbrido. Do ponto de vista da Pedagogia não há qualquer novidade (…) (Ribeiro; Rubini, 2019, p. 763). Nosso objetivo aqui não é estudar tais experiências estaduais. No entanto, com o fito de apresentar melhor o próprio PECIM, utilizaremos as avaliações disponíveis sobre as experiências das escolas civis militarizadas.
Segundo o portal do MEC, 15 estados e o Distrito Federal, e 600 prefeituras manifestaram interesse em participar do PECIM. Analisadas as demandas, foram escolhidas 54 para a chamada “edição piloto”. Dessas escolas, metade delas terão participação de membros das forças armadas, concentradas em 12 estados (Acre, Amapá, Ceará, Goiás, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Pará, Paraná, Rio Grande do Sul, Roraima, Santa Catarina e Tocantins); nas outras 27, serão as corporações policiais (PM e Bombeiros) que cederão seus soldados e o governo federal repassará os recursos.[iii]Pode-se notar, portanto, que diferentemente do prometido, é bem pouco distinta a ‘nova’ escola cívico-militar daquelas implementadas por iniciativa dos próprios governos estaduais.
Considerando, portanto, esta introdução ao tema, elencamos algumas outras questões – o que chamamos antes ‘promessas’ – que imputamos muito importantes na concepção e implantação do PECIM:
O PECIM parte de um diagnostico equivocado da realidade
Desde antes de chegar à Presidência da República, Bolsonaro e sua equipe afirmavam, relativamente à educação, que o principal problema era a “doutrinação nas escolas”, que afastariam o estudante do civismo necessário à cidadania – daí o grande apoio que grupos como o “Escola sem Partido” deram à campanha do capitão. A falta de civismo alimentava ainda mais a violência do entorno, especialmente nas escolas da periferia, expostas ao tráfico de drogas, gerando indisciplina e trazendo o crime para o interior das escolas. A falta de segurança, portanto, é apresentada como a grande justificativa para a criação das Escolas Cívico Militares (ECIM). Embora muito explorada pela mídia, os poucos estudos existentes não revelam uma relação causal entre militarização da escola e redução da violência. Por exemplo, para Alves e Toschi (2019, p. 642),
[A]pesar de Goiás estar no topo do processo de militarização das escolas públicas, possuindo, em abril de 2019, 54 escolas sob a responsabilidade da Polícia Militar (PM), com 61 mil alunos (…) lamentavelmente, o estado ainda figura nas páginas policiais como um estado com altos índices de violência, amargando dois assassinatos de coordenadores de escolas estaduais no curto espaço de quatro meses (abril e agosto de 2019) (…)
Pode-se dizer que a promessa da escola militar não é reduzir a violência na comunidade na qual a escola se encontra, mas permitir um ambiente escolar alheio à violência juvenil, organizando-o de forma a construir um futuro cidadão ‘de bem’. Todavia, se a imposição da ordem acontece apenas no interior das escolas, o que ela faz é escamotear e até alimentar maior violência contra os próprios estudantes, que precisam viver em dois mundos repressivos sem poder expressar-se. Isso, no melhor dos casos, criará um cidadão ordeiro, mas também desajustado.
O PECIM é enganoso especialmente com os professores
Quando professores ouvem falar em escolas cívico-militares, de imediato os profissionais da educação, em especial as professoras do ensino fundamental, pensam em seus pares dos colégios militares. Naquele ambiente, a remuneração é mais alta e é paga em dia, os profissionais têm um plano de carreira e condições de trabalho melhores, não precisando dobrar ou às vezes triplicar a jornada de trabalho para obter uma renda mensal digna. Diante desse cenário material para o exercício docente, sabemos que alguns professores até relevariam os constantes relatos de assédio moral e censura dos profissionais concursados nas escolas militares, em busca de melhorias na remuneração. Entretanto, o PECIM não altera nenhuma das características materiais da profissão e, como informa o MEC, sequer a verba reservada para o projeto – R$ 54 milhões – será aplicada para melhorar materialmente a realidade escolar, pois a maior parte desse montante irá para o pagamento do pessoal militar que atuará nas escolas.[iv]
Outra crença alimentada entre os professores é que as ECIM serão muito mais seguras, inclusive no seu entorno, pela presença dos policiais, bombeiros e militares que ali atuarão. Mais uma vez, é um engano. Conforme estabelece o próprio decreto, os militares atuarão na gestão administrativa, didático-pedagógica e educacional, e não na segurança da escola. Ademais, como mencionamos acima, militarizar as escolas não leva necessariamente à redução da violência em seu entorno.
O PECIM ilude a comunidade, especialmente a família
É conhecida a crescente dificuldade de envolvimento da comunidade escolar na rotina da escola, e que essa é uma questão que não se resolve apenas culpando uma pretensa “falta de vontade” de uns ou de outros. O projeto ilude a família ao oferecer a ideia de que questões muito complexas do ambiente escolar serão resolvidas por meio da militarização.
Dois exemplos devem bastar para mostrar este engodo. O primeiro deles, a temática das drogas. Para muitos pais, preocupados, a escola militarizada será capaz de “salvar o filho do mundo das drogas”. No entanto, um corte de cabelo curto e a proibição de usar brinco não farão isso, daí o engodo. São necessárias políticas públicas de saúde, educação, e trabalho que permitam ao jovem uma compreensão crítica sobre a própria realidade que o cerca, permitindo que ele tome decisões informadas inclusive sobre drogas, que é um tema de saúde a ser tratado no ambiente escolar, e não de segurança pública. Outro exemplo é a questão LGBT. Para muitos militares, a orientação sexual e o feminismo destroem as famílias, e ambos são culpados pelo esfacelamento moral da sociedade. Será mesmo? Impedir que as/os jovens expressem a sua sexualidade só faz com que eles a pratiquem de forma desinformada ou escondida, o que os expõe a toda natureza de vulnerabilidades, particularmente psicológicas e sexuais.
Cabe lembrar que, diferente das escolas em geral, os colégios militares têm um público mais homogêneo, vindo de famílias militares, o que também modifica a relação do pai do aluno (normalmente mãe) com a escola, diferente das escolas territorializadas, que funcionam nos diversos bairros da cidade. Estudos preliminares com as escolas civis militarizadas revelam que estas têm passado por um processo semelhante, se ‘elitizando’ (Ribeiro; Rubini, 2019, p. 753) porque, além de cobrarem mensalidades, reservam vagas para os filhos de policiais, bombeiros e professores de escolas semelhantes, o que reforça a ideia de homogeneidade.
Os colégios militares são os melhores, portanto, devem ser o exemplo
Eis outra falácia. Para quem frequenta o ambiente escolar, sabe que a grande questão que diferencia o ensino da escola pública em geral, do ensino nos institutos federais e escolas de aplicação é o investimento por aluno. O investimento por aluno dos colégios militares é quase três vezes maior que o do ensino público civil. Ainda assim, têm resultados inferiores aos institutos federais, que também recebem mais verbas. Em outros termos, se fosse para tomar alguma escola como exemplo, seriam os institutos federais. Segundo os dados do Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (PISA), da OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico), avaliando as áreas de Ciência, Leitura e Matemática, se considerássemos apenas os resultados da Rede Federal, o país ocuparia a 11a posição entre 70 países em Ciência, a 2a posição em Leitura, e superaria a média do Brasil em mais de 100 pontos.
Sobre investimentos, pesquisa realizada periodicamente pela OCDE que no ano de 2019 compilou dados de 36 países, mostra que o investimento em educação no Brasil é maior que a média do apurado (4,2% contra a média de 3,2%). Embora mencionando outra fonte, a ONU, o programa eleitoral do então candidato à presidência pelo PSL, confirma este dado. No entanto, esquece de ler o restante da pesquisa, pois esta contraria os dados: conforme indica a OCDE, o Brasil investe muito menos em educação por aluno, sendo 56% menor no ensino fundamental e aproximadamente 64% no ensino médio. A diferença é melhor visualizada na tabela abaixo:
Gasto por aluno por nível de ensino (em US$)[v]
Soma-se a isso que a experiência mais próxima ao projeto do atual governo, as escolas civis militarizadas, não apresentam maiores índices de aproveitamento nas avaliações, embora, como mencionamos, existam há mais de 20 anos. Pelo contrário, a própria ONU expressou preocupação com o avanço destas experiências no Brasil.[vi] Na verdade, o único exemplo fornecido pelas escolas civis militarizadas, e não apenas as públicas, é de ser um ótimo negócio. Tais escolas “(…) representam uma mescla de interesses públicos e privados, entre os interesses das secretarias de educação e de segurança pública que atuam sobre a escola pública.” (Alves; Toschi, 2019, p. 641).
O projeto desvia recursos da educação para o Ministério da Defesa
De fato, essa não é uma novidade. Tem sido comum, infelizmente, o desvio dos recursos destinados constitucionalmente para a educação. Nesse caso, ocorre o mesmo. Recursos do Ministério da Educação são descentralizados para o Ministério da Defesa para o pagamento dos militares da reserva contratados. O decreto deixa claro que os militares não são profissionais da educação. Eles mantêm seus vencimentos como militares da reserva e acrescentam a eles o adicional pelo PECIM. Em um país como o nosso, com os nossos atuais índices de desemprego, pensar a possibilidade de as pessoas acumularem salários é um absurdo. Além disso, é comum ter nos quadros escolares um alto número de profissionais contratados, e não concursados. O debate deveria ser como criar frentes emergenciais de emprego para quem não tem nenhum, ou como melhorar a carreira, com a consequente elevação salarial, dos profissionais da educação, já muito defasada em relação as demais.
Conforme divulgado pelo MEC, entre os critérios utilizados para excluir estados e municípios do processo de adesão ao PECIM estavam aqueles “(…) com número baixo ou sem militares da reserva residindo na cidade”.[vii] Ora, se a proposta do PECIM é melhorar a educação, especialmente nas violentas periferias, como explicar que esta ou aquela localidade, a despeito de responder positivamente a todos os critérios de adesão seja eliminada do programa apenas por não ter militares residentes? Assim, o próprio governo admite que o maior montante do dinheiro está vinculado ao pagamento de militares e policiais que participarão do projeto.
Pode-se visualizar melhor como as verbas são usadas para dar salário a quem já tem por meio dos números disponibilizados pelo próprio MEC, mas não sem resistência. Via Lei de Acesso a Informação, o MEC foi obrigado a detalhar a aplicação dos recursos da etapa piloto. Em resposta, informou-se que a maior parte deles tem como destino o pagamento dos militares que atuarão nessas escolas[viii].
Pelo projeto, cada escola de 1000 alunos receberá 18 oficiais da reserva para atuarem como docentes e eles (e somente eles) receberão um adicional de 30% sobre seus vencimentos e mais décimo-terceiro, férias, transporte e alimentação. Levando-se em consideração que o soldo-base (salário) de um militar na fase intermediária da carreira (capitães e majores) gira em torno de R$ 9.200,00 a R$ 11.200,00, sem contar os adicionais e gratificações, podemos fazer uma conta simples e chegar aos seguintes números: cada “oficial-professor” receberá, na média, em torno de R$ 3.000,00 a mais por mês– salário superior ao da maioria absoluta dos trabalhadores da redes estaduais do país[ix] – e custará aos cofres públicos cerca de R$ 45.000,00 por ano.
Considerando-se a duração projetada para o PECIM, ainda que mantendo o tamanho atual, devemos multiplicar por 18, o que representa um gasto de R$ 810.000,00 por escola, só em pagamento dos militares que atuarão nessas escolas em desvio de função – não serão empregados nem na defesa (caso dos militares) e nem em segurança (caso dos policiais e bombeiros). Tomando o orçamento do projeto, retirando o pagamento de pessoal, restaria, em média, R$ 200 mil por ano para a própria escola gastar. Para uma unidade escolar com mil alunos, o saldo final é muito pequeno, talvez suficiente para uma reforma em quadra esportiva, por exemplo. E detalhe: mesmo com a pandemia e as escolas paralisadas, muitos desses militares foram contratados no ano passado e estão recebendo normalmente.
Então, para que servem as escolas cívico-militares?
Em primeiro lugar, elas servem para fazer proselitismo político e alimentar uma base conservadora, inclusive alguns neofascistas, que elegeram o presidente em virtude da sua disposição em usar a força, inclusive das armas, para resolver todo e qualquer problema. Em segundo lugar, elas passam uma mensagem de patriotismo, como se este pudesse ser garantido pela maquiagem verde amarela nas escolas. Esta foi a mesma pretensão quando, em 1969, o regime burocrático-autoritário (1964-1985) introduziu as disciplinas de Moral e Cívica (ensino fundamental), Organização Social e Política do Brasil, OSPB (ensino fundamental e médio) e Estudos dos Problemas Brasileiros, EPB (ensino superior), tornando-as obrigatórias para todos os níveis. Mesmo controlando os conteúdos dessas disciplinas – também elas foram uma forma de empregar militares da reserva, especialmente coronéis, que preparam conteúdos e escreviam apostilas e livros didáticos (Mathias, 2004, p. 170) –, em pouco tempo o próprio governo passou criticá-las, afirmando que não cumpriam os objetivos de forjar o cidadão patriótico que desejavam. De fato, como o cultivo artificial de símbolos e bandeiras nacionais pode tornar um jovem mais amante de sua pátria? É possível dizer que a geração dos anos 1990 é mais patriota que a dos anos 2000?
Em terceiro lugar, as escolas cívico-militares normalizam a militarização da educação, em seus aspectos éticos, políticos, morais, financeiros. Trata-se de uma espécie de amostra, um laboratório daquilo que está por vir. Trata-se de um projeto de militarização da vida (do individuo como um todo, compreendendo os aspectos sociais, políticos, econômicos, etc.) já em curso no Brasil. Da mesma forma que não se cria o cidadão patriota por imposição, a ‘paz dos quartéis’ imposta à sociedade como um todo tende, como mostrou a História, a vir acompanhada do esgarçamento crescente da solidariedade social, desorganizando de tal forma as relações sociais que a única ordem que prevalecerá ao final é a ‘paz dos cemitérios’.
Em quarto lugar, as ECIM, embora sustentem que sua implantação depende de consulta e sinal positivo da comunidade que a receberá, é uma forma dissimulada de cumprir a lei, que estabelece que as escolas públicas devem ter gestão democrática. Isso implica na não imposição de regras alheias àquela comunidade de estudantes. Implica que todo o corpo de funcionários, professores e responsáveis pelos estudantes, e até esses mesmos, sejam não apenas ouvidos, mas participem do planejamento pedagógico e gestão administrativa das escolas. O PECIM, como as escolas militarizadas antes dele confirmam, afasta esta possibilidade, pois submete inclusive as direções e coordenações das escolas aos preceitos trazidos pelos militares, que passam a tutelar a gestão escolar. A consulta à comunidade, realizada apenas no início do processo, é, portanto, um simulacro da necessária, inclusive porque determinada pela Lei, gestão democrática das escolas.
Por último, mas não menos importante, as ECIM são a forma que o presidente Jair Bolsonaro encontrou para manter fiel, principalmente por meio de benefícios financeiros, o núcleo mais tradicional de sua base eleitoral, composta por policiais militares, bombeiros e membros das forças armadas, em especial das patentes mais baixas. A seleção dos profissionais a serem contratados é feita pelos próprios militares, baseada em critérios como camaradagem, lealdade, honra… Ou seja, atributos bonitos para justificar a escolha dos apadrinhados políticos comprometidos com a sustentação do governo. O objetivo aqui nem é tão oculto: em uma situação de insatisfação do povo com o presidente, esses profissionais da segurança dificilmente ficarão contra quem garantiu o seu “extra”.
Considerações Finais
Em resumo, as escolas cívico-militares são caras, mas não o são porque investem na comunidade escolar, valorizando novos métodos pedagógicos e seus profissionais. Elas são caras e, como provavelmente veremos no futuro, tão ineficientes quanto as escolas civis militarizadas que já se espalharam pelo Brasil a partir das diversas métricas educacionais apresentadas ao longo do texto, servindo exclusivamente para desestruturar ainda mais a educação pública no Brasil.
A principal conclusão que chegamos desse debruçar sobre o PECIM não é, todavia, sobre a não novidade do projeto, mas sim que o principal projeto para a educação do governo Bolsonaro é, na prática, um “programa de transferência de renda” para militares da reserva. Mais que governar para a própria base que o elegeu, o presidente remunera essa base. E o principal, não é uma base qualquer, é uma base ARMADA.
*Ana Amélia Penido Oliveira é pesquisadora de pós doutorado no Instituto de Políticas Públicas e Relações Internacionais da Unesp e do Gedes. Suzeley Kalil Mathias é professora do Departamento de Relações Internacionais da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Unesp-Franca e pesquisadora do Gedes.
Imagem: Inauguração de escola cívico-militar no Rio de Janeiro. Por Palácio do Planalto.
Referências
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BRASIL (2019). Decreto 10.004, de 04 de setembro de 2019. Institui o Programa de Escolas Cívico-Militares (PECIM). Diário Oficial da União – Seção 1 – 6/9/2019, Página 1 (Publicação Original). Disponível em <https://www2.camara.leg.br/ legin/fed/decret/2019/decreto-10004-5-setembro-2019-789086-norma-pe.html>. Consultado entre setembro de 2019 e março de 2021.
MARTINS, A. A. (2019). Sobre os dias atuais: neoconservadorismo, escola cívico-militares e o simulacro da gestão democrática. RBPAE 35 (3): 689-699, set-dez.
MATHIAS, S. KALIL (2003). A militarização da burocracia: a participação militar na administração das Comunicações e da Educação, 1963-1990. São Paulo, Ed. Unesp/Fapesp.
RATTENBACH, B. (1972). El sistema social-militar en la sociedad moderna. Buenos Aires, Pleamar.
RIBEIRO, A. C.; RUBINI, P. S. (2019). Do Oiapoque ao Chuí – As escolas civis militarizadas: a experiência do extremo norte do Brasil e o neoconservadorismo da sociedade brasileira. RBPAE 35 (3): 745-765, set.-dez. [DOI: 10.21573/vol35n32019.95997].
Notas
[i] Sugerimos a leitura do levantamento feito por Alves e Toschi (2019), o qual mostra que os estudos da militarização do ensino não são novos, mas são numericamente pouco significativos diante do avanço do processo de criação de ‘parcerias’ entre as escolas públicas e as instituições militares.
[ii]Por didático, vale reproduzir a fala do presidente: “E temos aqui a presença física do nosso governador do DF, o Ibaneis. Parabéns, governador, por esta proposta. Vi que alguns bairros tiveram votação e não aceitaram, me desculpa, não tem que aceitar não, tem que impor. Se aquela garotada não sabe… está na quinta série, está na nona série e na prova do Pisa ele não sabe uma regra de três simples, não sabe interpretar um texto, não responde uma pergunta básica de ciências, me desculpa, não tem que perguntar para o pai irresponsável, nessa questão, se ele quer ou não uma escola com uma, de certa forma, militarização, tem que impor, tem que mudar. Porque nós não queremos que essa garotada cresça e vá ser, no futuro, um dependente, até morrer, de programas sociais do governo.” Disponível em: <https://www.gov.br/planalto/pt-br/acompanhe-o-planalto/discursos/2019/discurso-do-presidente-da-republica-jair-bol sonaro-durante-cerimonia-de-lancamento-do-programa-nacional-de-escolas-civico-militares-pecim>
[iii] Disponível em <http://portal.mec.gov.br/component/tags/tag/51651-escolas-civico-militares>, consultado em 03/03/21.
[iv] Disponível em <http://portal.mec.gov.br/component/tags/tag/51651-escolas-civico-militares>, consultado em 03/03/21.
[v] Disponível em: <G1: https://g1.globo.com/educacao/noticia/2019/09/10/investimento-por-aluno-no-brasil-esta-abaixo-da-media-dos-paises-desenvolvidos-diz-estudo-da-ocde.ghtm>, consultado em 04/03/21.
[vi] Disponível em <https://www1.folha.uol.com.br/educacao/2019/02/escolas-militares-e-colegios-civis-com-mesmo-perfil-tem-desempenho-similar.shtml>. Consultado em 03/03/21.
[vii] Disponível em <http://portal.mec.gov.br/component/content/index.php?option=com_content&view=article&id =85371:mec-capacita-policiais-e-bombeiros-para-atuacao-nas-escolas-civico-militares&catid=12&Itemid=86>
[viii]http://portal.mec.gov.br/component/tags/tag/51651-escolas-civico-militares
[ix] Segundo a mesma pesquisa da OCDE, “(…) o salário médio dos professores no Brasil é menor do que na maioria dos países da OCDE, e que também é ao menos 13% menor do que o salário médio dos trabalhadores brasileiros com ensino superior.” Disponível em: <https://g1.globo.com/educacao/noticia/2019/09/10/investimento-por-aluno-no-brasil-esta-abaixo-da-media-dos-paises-desenvolvidos-diz-estudo-da-ocde.ghtm>, grifos no original. Consultado em 04/03/21.