João Vitor Tossini*
Em 15 de setembro de 2021, o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, anunciou em conjunto com os primeiros-ministros do Reino Unido, Boris Johnson, e da Austrália, Scott Morrison, o estabelecimento de uma parceria de segurança envolvendo os três países. Intitulado de AUKUS (acrônimo do nome dos três membros em inglês), a parceria simboliza a crescente disposição de seus governos em estabelecer iniciativas que permitam o fortalecimento de suas posições estratégicas no Indo-Pacífico (AUSTRALIA, 2021). No caso britânico, o AUKUS pode ser compreendido por meio da política da “Grã-Bretanha Global” (Global Britain), lançada em 2016, que busca consolidar o Reino Unido como a principal potência militar na Europa, fortalecer laços diplomáticos e econômicos com antigos parceiros para além da União Europeia e, desde março de 2021, restabelecer o país como a principal potência europeia no Indo-Pacífico (UNITED KINGDOM, 2021).
Ademais, de forma similar ao que se entende como uma escolha estratégica da Austrália pelos Estados Unidos no lugar de outra posição na competição com a China (MAO, 2021), os termos e as consequências do AUKUS indicaram a preferência da Austrália pela parceria estratégica com o Reino Unido ao invés da União Europeia, mais especificamente, a França. Logo, indica-se que a posição britânica na iniciativa representa o avanço da agenda da Grã-Bretanha Global no Indo-Pacífico, região em que, desde meados dos anos 1990, a França ocupou por meio de seus territórios e departamentos ultramarinos uma posição relativa mais robusta do que Londres no âmbito geoestratégico. Assim, no caso do Reino Unido, o AUKUS está inserido em uma política de retorno do enfoque britânico a regiões fora do eixo euro-atlântico, simbolizando modificações em relação à política estratégica desse país que esteve marcada pela ênfase na Europa durante parte significativa da Guerra Fria.
Grã-Bretanha Global e o AUKUS
A política da Grã-Bretanha Global, lançada pelo Governo Theresa May (2016-2019) após a decisão pela saída do Reino Unido da União Europeia (Brexit), nomeou uma tendência britânica iniciada no pós-Guerra Fria de crescente engajamento internacional com maior ênfase na projeção de poder militar e político do país fora do cenário europeu (HYDE-PRICE, 2007; UNITED KINGDOM, 1998; 2015; 2021). Nos governos John Major (1990-1997) e, especialmente, Tony Blair (1997-2007), o Reino Unido retomou um posicionamento internacional intervencionista que levou a participação britânica em uma série de conflitos militares nos Balcãs, em Serra Leoa, Afeganistão e Iraque (LUNN; MILLER; SMITH, 2008).
Os sucessores de Blair mantiveram parte das operações iniciadas em seu governo, além de participarem de outras na Líbia e na Síria. Gradativamente, o governo em Londres retomava um enfoque em capacidades expedicionárias e reduziam a prioridade de compromissos militares no continente europeu, alterando a prática vigente na Guerra Fria que era centrada na defesa terrestre convencional da Alemanha Ocidental e outros aliados continentais contra uma ofensiva soviética (HYDE-PRICE, 2007). Em 2020, a conclusão de um plano de 2010 de retirada da maioria das forças militares do Reino Unido da Alemanha apresenta-se como outro evento simbólico dessa reorientação estratégica britânica.
Dessa forma, o voto da maioria dos britânicos pelo Brexit em 2016 ocorreu em meio ao crescente enfoque estratégico de Londres em regiões ultramarinas. No início de 2021, o governo britânico passou a incluir formalmente o Indo-Pacífico como uma de suas áreas prioritárias de atuação (UNITED KINGDOM, 2021), além da tradicional presença e intervenções dos anos anteriores no Oriente Médio e na África. Denominada de “tilt” ou pivô para o Indo-Pacífico, a “nova” prioridade estratégica do Reino Unido pode ser considerada como uma pontuação dos objetivos presentes na política da “Grã-Bretanha Global”. Ademais, a crescente expansão da atuação diplomática e militar do Reino Unido pode ser relacionada à percepção da ascensão da China no Indo-Pacífico e ao crescente peso econômico da região no sistema internacional, especialmente no quesito de busca de novos mercados que substituem parcialmente a União Europeia no comércio britânico (HARPER, 2020). Em suma, o Reino Unido deseja restabelecer sua posição como a principal potência europeia nessa região, que foi eclipsada pela França desde o fim de sua presença militar e controle de Hong Kong em 1997, ao passo que busca equilibrar a oposição ao crescimento chinês e desfrutar do crescimento econômico regional (UNITED KINGDOM, 2021).
O AUKUS envolve três Estados com relativa proximidade no campo de defesa e segurança. Os Estados Unidos, a Austrália e a Nova Zelândia constituem o Tratado ANZUS, aliança de defesa e cooperação militar formada em 1951. Apesar de a Nova Zelândia não aderir totalmente ao ANZUS devido a sua política de proibição de armas nucleares em seu território, o Tratado apresenta-se como uma das bases da cooperação bilateral em defesa dos Estados Unidos com a Austrália (MCCLURE, 2021). Desde 1971, o Reino Unido possui um acordo similar com Austrália, Nova Zelândia, Singapura e Malásia, intitulado “Cinco Acordos de Força de Defesa” (Five Power Defence Arrangements). Além disso, o Reino Unido, a Austrália e os Estados Unidos – em conjunto com o Canadá e a Nova Zelândia –, constituem os “Cinco Olhos” (Five Eyes), um sistema de cooperação em questões de inteligência e comunicações estabelecido entre Londres e Washington durante a Segunda Guerra Mundial.
Com isso torna-se possível compreender a relevância dos termos do AUKUS. A iniciativa possui como aspecto central a criação de uma “parceria trilateral de segurança”, em conjunto com a cooperação no quesito de inteligência e comunicações dos Cinco Olhos, que envolva os três países, possibilitando um novo meio de diálogo estratégico. Adicionalmente, o AUKUS possui como objetivo maximizar a cooperação e a interoperabilidade entre as forças armadas de seus membros, além de incrementar a “integração” de suas capacidades tecnológicas e industriais de defesa. Consequentemente, o AUKUS pode reafirmar a preponderância de artigos da indústria bélica do Reino Unido e, especialmente, dos Estados Unidos na composição das capacidades militares da Austrália, consolidando esse crescente mercado como compradores do complexo industrial norte-americano e britânico (GILL, 2021).
Assim, o primeiro projeto significativo do AUKUS incluiu a venda de artigos militares para os australianos. A parceria estabeleceu um acordo que visa à venda de submarinos de propulsão nuclear aos australianos, sendo a tecnologia de propulsão nuclear fornecida por parte dos Estados Unidos e do Reino Unido (AUSTRALIA, 2021). Além dos questionamentos sobre o aspecto da proliferação nuclear, ainda que a iniciativa não envolva a transferência de armamentos nucleares, o AUKUS resultou no cancelamento da compra australiana de 12 submarinos convencionais franceses, que totalizaria aproximadamente 66 bilhões de dólares (JONES, 2021). Em contraste, além dos submarinos nucleares, em 2018, o Reino Unido assegurou a venda da próxima geração de fragatas da Marinha Real Australiana, vencendo competidores europeus, enquanto que as aquisições australianas de outros artigos militares dos Estados Unidos contribuíram para elevar o país para a segunda posição entre os importadores de produtos militares (GILL, 2021).
Concernente à decisão australiana de cancelar a compra dos submarinos franceses, ainda que os dois países mantenham cooperação em assuntos de defesa e segurança na região do Pacífico, o AUKUS exclui a França dos projetos de aquisição da Marinha Real Australiana para os anos 2020. A decisão posterior da União Europeia em postergar as negociações de um Acordo de Livre-Comércio com a Austrália, apresenta-se como uma resposta conjunta do bloco em apoio ao governo francês. Contudo, o impacto dessa decisão foi previamente amenizado pela Austrália com o avanço das negociações de livre-comércio com o Reino Unido em julho de 2021. Tendo que, em 2019, o comércio total australiano com o Reino Unido (30 bilhões de dólares) representava quase 40% das trocas com a União Europeia (78 bilhões de dólares), o avanço das negociações com os britânicos apresenta-se como significativa, compensando parcialmente os atritos comerciais com o bloco europeu. Nesse sentido, a aproximação estratégica australiana com o Reino Unido possui reverberações adversas para o papel da França e de outros membros da União Europeia em aspectos militares e comerciais no Indo-Pacífico.
Dessa forma, a iniciativa trilateral envolvendo o Reino Unido, os Estados Unidos e a Austrália encontra-se em um contexto de convergência da ampliação da zona de atuação estratégica de Londres (UNITED KINGDOM, 2021) com os anseios da Austrália por capacidades militares robustas (AUSTRALIA, 2020) e com o “pivô para a Ásia” dos Estados Unidos. Em adição, o caso do AUKUS representou uma convergência de interesses estratégicos de Londres na região. A formação dessa parceria contribuiu para o avanço de dois objetivos da Grã-Bretanha Global.
No aspecto econômico, a AUKUS detém o potencial de fornecer um dos acordos mais substanciais ao setor industrial de defesa do Reino Unido em anos, ao passo que, estrategicamente, fornece a um aliado próximo os meios militares para contribuir na contenção da ascensão militar chinesa na região. Além disso, os poucos detalhes da transferência de tecnologia nuclear indicam que Londres e Washington planejam capacitar a Austrália para a manutenção dos reatores nucleares, enquanto o funcionamento da tecnologia e dos sistemas de propulsão nuclear serão retidos pelos dois países. Logo, a Austrália passará a deter uma dependência dos demais membros do AUKUS para a continuidade da operação dessa tecnologia (GILL, 2021), contribuindo para a persistência do alinhamento estratégico australiano com os Estados Unidos e o Reino Unido em detrimento de outras parcerias.
* João Vitor Tossini é doutorando em Relações Internacionais pelo PPGRI San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP, PUC-SP).
Imagem:UK Carrier. Por: U.S. Indo-Pacific Command.
Referências Bibliográficas:
AUSTRALIA. Department of Defence. 2020 Defence Strategic Update. 1 July 2020. Disponível em https://www1.defence.gov.au/about/publications/2020-defence-strategic-update Acesso em 03 out. 2021.
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GILL, Bates. AUKUS is a Big Deal, but Needs to be Put in Perspective. Royal United Services Institute (RUSI). 20 September 2021. Disponível em: https://rusi.org/explore-our-research/publications/commentary/aukus-big-deal-needs-be-put-perspective Acesso em: 03 out. 2021.
HARPER, Stephen J. A Very British Tilt. Towards a new UK strategy in the Indo-Pacific Region. Policy Exchange. Report by Policy Exchange’s Indo-Pacific Commission, London, 2020.
HYDE-PRICE, Adrian. European Security in the Twenty-First Century: The Challenge of Multipolarity. London: Taylor & Francis Group, 2007.
JONES, Dustin. Why A Submarine Deal Has France At Odds With The U.S., U.K. And Australia. NPR News. September 19, 2021. Disponível em: https://www.npr.org/2021/09/19/1038746061/submarine-deal-us-uk-australia-france Acesso em 03 out. 2021.
LUNN, Jon; MILLER, Vaughne; SMITH, Ben. British foreign policy since 1997. Research Paper 08/56. House Commons Library. 23 June 2008.
MAO, Frances. Aukus: Australia’s big gamble on the US over China. Sydney, British Broadcast Corporation. 22 September. Disponível em: https://www.bbc.com/news/world-australia-58635393 Acesso em: 30 set. 2021.
MCCLURE, Tess. Aukus submarines banned from New Zealand as pact exposes divide with western allies. New Zealand, The Guardian, 16 set. 2021. Disponível em https://www.theguardian.com/world/2021/sep/16/aukus-submarines-banned-as-pact-exposes-divide-between-new-zealand-and-western-allies Acesso em 01 out. 2021.
UNITED KINGDOM. Integrated Review of Security, Defence, Development and Foreign Policy. CP 403. Presented to Parliament by the Prime Minister by Command of Her Majesty. 16 March 2021.