Luiza Elena Januário*
Uma revigorada preocupação com os perigos representados pelas armas nucleares foi despertada desde os momentos iniciais da invasão russa da Ucrânia, no dia 24 de fevereiro de 2022. Em seu discurso anunciando o curso de ação tomado, o presidente da Rússia, Vladimir Putin, assegurou que seu país “é hoje uma das potências nucleares mais poderosas do mundo […] não deve haver dúvidas de que um ataque direto ao nosso país levaria à derrota e a consequências terríveis para qualquer potencial agressor”. O arsenal nuclear em pauta é, de fato, amplo e a menção aos efeitos de uma agressão externa contra a Rússia pode ser entendida como um lembrete para os países ocidentais acerca do poderio russo nessa seara e dos altos custos – em todos os sentidos – implicados em uma ação direta contra a nação eurasiática.
Tal entendimento foi reforçado com a declaração de Putin do dia 27 do mesmo mês, em que o mandatário afirmou colocar as forças de dissuasão do país em “estado especial de alerta”. As armas nucleares são o elemento central em questão e, ao sinalizar uma possível disposição em recorrer a esse tipo de armamento, o ex-agente da KGB elevou ainda mais as tensões em uma tentativa de evitar um engajamento direto da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) no conflito da Ucrânia.
Deve-se recordar que bombas atômicas não foram utilizadas em uma situação de conflito desde as explosões de Hiroshima e Nagasaki ao final da Segunda Guerra Mundial, no alvorecer da era nuclear. O potencial de destruição das armas nucleares levou ao esforço de coibir sua difusão, ao mesmo tempo em que era necessário reconhecer as aplicações pacíficas da tecnologia. Sobre essa dualidade foi fundado o regime de não proliferação e a ordem nuclear que se seguiu foi estabelecida com base em dois mecanismos inter-relacionados: um sistema gerenciado de dissuasão e um sistema gerenciado de abstinência, nos termos de Walker. O primeiro diz respeito à manutenção da estabilidade internacional por meio da posse de armas nucleares por um conjunto determinado de Estados, enquanto o segundo refere-se ao compromisso dos demais Estados em não desenvolver ou adquirir esse recurso de poder.
A primeira dinâmica remete a ideia de evitar a utilização da bomba atômica por parte de um Estado mediante a ameaça de represália por outros que também dispõem de dispositivos explosivos nucleares, considerando o potencial de destruição do armamento. A lógica da dissuasão implica na necessidade de manter crível a ameaça de utilização dos arsenais nucleares, tanto no sentido da capacidade militar como da disposição política. Porém, a forma como a possibilidade de uso das armas nucleares foi abertamente colocada como uma opção é fonte, com razão, de preocupação e condenação.
A doutrina militar russa atual estabelece grande importância para a dissuasão, indicando que o recurso às armas nucleares poderia ser utilizado como resposta a um ataque perpetrado com armas nucleares, outras armas de destruição em massa ou em caso de um ataque convencional massivo, restringido a última possibilidade a uma situação em que a própria existência do país estivesse ameaçada. A questão aventada então refere-se à possibilidade de que a guerra da Ucrânia seja enquadrada como tal caso. Ao se considerar o já citado discurso inicial de Putin acerca da invasão, pode-se concluir que há uma caracterização nesse sentido, em que se ressalta o ambiente mais amplo de segurança internacional com a expansão para leste da OTAN e o posicionamento dos EUA. O presidente afirmou claramente que “a Rússia não pode se sentir segura, se desenvolver ou existir com a ameaça constante proveniente do território da Ucrânia contemporânea”, exacerbando o receio que o país quebre a tradição de não uso de armas nucleares.
É pertinente recordar também que a noção de que um ataque nuclear limitado poderia ser utilizado para convencer um inimigo a desistir de uma agressão foi introduzida na doutrina russa em 2000 com o conceito de ‘de-escalação’, no sentido justamente de que se o país enfrentasse um ataque convencional que ultrapassasse sua capacidade de defesa, um ataque nuclear limitado poderia ser utilizado como resposta. Desse modo, a perspectiva seria escalar as hostilidades com a utilização de armas nucleares com o objetivo de desescalar um conflito de modo geral. O conceito foi retomado por muitos analistas diante da invasão da Ucrânia.
De todo modo, o conflito tem estimulado diversas análises sobre o perigo das armas nucleares. Assim, alguns tópicos de interesse foram o risco de escalada acidental e proposital, os cenários em que a Rússia poderia recorrer ao seu arsenal nuclear e a visão do líder russo sobre o ambiente de segurança internacional e o uso de armas nucleares. Outra faceta dessa questão é representada pela presença de reatores nucleares em zonas de guerra, havendo grande preocupação com relação às plantas nucleares de Chernobyl e Zaporizhzhia.
Apesar da relevância de todos esses temas, propõe-se aqui discutir o significado da postura russa face ao regime de não proliferação nuclear e à ordem nuclear global. Um aspecto relevante nesse sentido diz respeito ao fato de que a Ucrânia possuía armas nucleares soviéticas em seu território quando se tornou independente em 1991 e abriu mão desse arsenal em 1994, em troca de garantias de segurança em termos de sua soberania e integridade territorial. Diante desse quadro, já foram realizadas considerações sobre os efeitos nocivos da postura russa para o regime de não proliferação, pois a confiança nas iniciativas diminuiria ao passo que se desenha uma imagem de que o objetivo do Tratado de Não Proliferação Nuclear (TNP) é oferecer cobertura para que os países nuclearmente armados reconhecidos como legítimos tomem as ações necessárias para atender seus interesses sem repercussões. Assim, difunde-se um entendimento de que a Ucrânia estaria mais segura com armas nucleares e que a Rússia pode realizar ações agressivas impunemente justamente por possuir a bomba atômica, parecendo indicar que a proliferação compensa.
O ponto defendido aqui é que o momento atual evidencia com dramaticidade as contradições intrínsecas do regime de não proliferação e da ordem nuclear derivada. Não se trata de uma perversão do espírito das iniciativas, mas de uma demonstração crua de sua desigualdade estrutural. A ordem nuclear construída ainda durante a Guerra Fria apresenta um paradoxo, já que, por um lado, seus valores e suas normas são difundidos com pesado financiamento por todo o mundo não só por meio de organizações internacionais, mas também por uma série de outras dinâmicas, incluindo a produção do conhecimento em universidade e think thanks – algo que foi denominado de complexo de não proliferação. Por outro lado, é muito presente uma sensação de crise iminente do ordenamento.
Tal sensação se deve, em grande medida, à existência de uma série de injustiças relacionadas a um caráter discriminatório e desigual da ordem nuclear que assume forma clara por meio do TNP, a espinha dorsal do regime. O tratado, finalizado em 1968 e em vigor desde 1970, estabeleceu duas categorias de países, com direitos e obrigações distintas. De um lado, estavam as potência nucleares legítimas, os países que desenvolveram a bomba atômica até 1967, e de outro, todo o resto. Com essa configuração, o TNP foi acusado desde sua fundação de ser um sustentáculo do status quo, inquietação presente ao se refletir sobre as implicações da postura russa hodierna. Além do mais, o mal-estar provocado pela perspectiva de que a Ucrânia estaria mais segura com armas nucleares e que as garantias de segurança se mostraram inúteis está relacionado a um dos problemas de justiça que remete justamente à situação dos países que não possuem armas nucleares e não estão sob guarda-chuvas nucleares. Nesse contexto, só podem contar com a proteção do Direito Internacional, das normas e da moralidade – o que representa um acesso desigual à segurança global.
Propõe-se que uma noção de confiabilidade, visivelmente abalada atualmente, também é chave para essa construção. A divisão do mundo em duas categorias de países implica no entendimento de que alguns são responsáveis e confiáveis para deter armamento nuclear, e os outros não. Assim, o regime é sustentado por meio de double standarts, sendo muitas vezes difundido um discurso que estabelece que os países nuclearmente desarmados seriam irresponsáveis e não confiáveis devido à falta de maturidade política dos países, à falta de competência técnica para lidar com armas nucleares e à própria condição de subdesenvolvimento em muitos casos. Assim, está em pauta uma perspectiva que coloca em relevo as relações de poder na política internacional e um passado de colonialismo e imperialismo, constituindo outro problema da justiça na ordem nuclear. Talvez o ponto nevrálgico da situação atual seja a evidência de que as potências nucleares legítimas podem não ser tão confiáveis e responsáveis assim – como toda a discussão sobre a racionalidade de Putin indica.
Não se pretende aqui defender a proliferação de armas nucleares. Pelo contrário, postula-se a necessidade de se repensar os fundamentos das iniciativas destinadas a lidar com a questão nuclear, escapando do labirinto que impede a reflexão sobre futuros alternativos no tocante à não proliferação. Assim, a reflexão aqui proposta diz respeito ao entendimento de como o significado nocivo da postura russa com respeito à possível utilização de armas nucleares na Guerra da Ucrânia para o próprio regime de não proliferação e para a ordem nuclear global têm raízes mais profundas. A situação atual evidencia inquietudes presentes desde os momentos fundacionais das iniciativas e aponta a necessidade de repensar os parâmetros para lidar com a questão nuclear.
*Doutora e mestra em Relações Internacionais pelo Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (UNESP-UNICAMP-PUC-SP). Professora da Universidade Paulista (UNIP). Membro do Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional (GEDES).
Imagem: Tsar Bomba Revised. RDS202 (similar à AN602 “Tsar Bomba”) no Museu da Bomba Atômica de Sarov. Por: Croquant/Wikimedia Commons.