51885729559_90ad28b95a_k

A Política Externa Brasileira frente à invasão russa na Ucrânia

Guilherme Paul Berdú*

Ao completar trinta anos de independência, a Ucrânia se vê mais uma vez ameaçada pelo ataque russo deflagrado no dia 24 de fevereiro de 2022. Este contexto tem demandado um posicionamento do Brasil, em razão da precedente aproximação diplomática com a Rússia. Historicamente, o Brasil carrega em suas relações diplomáticas os princípios de não intervenção, autodeterminação (CERVO, 2008), não ingerência e resolução pacífica de controvérsias, construindo a imagem de um país que pauta suas ações dentro desses princípios, em defesa dos valores democráticos, dos direitos humanos, do meio ambiente, da paz e da justiça social (LAMPREIA, 1998). O estreitamento das relações do Brasil com a Rússia ocorre no contexto da ascensão das relações globais-multilaterais para além das relações hemisféricas-bilaterais, conforme apresentado por Cristina Pecequilo (2008), especialmente no contexto do grupo BRICS (Brasil, Rússia, índia, China e África do Sul).  Neste artigo, busca-se analisar a ação externa brasileira frente à ação militar da Rússia na Ucrânia.

O presidente brasileiro eleito em 2018, Jair Bolsonaro, afirmou em sua proposta de governo que, quando eleito, libertaria o Ministério das Relações Exteriores (MRE) de cooperações ideológicas, apoiando e alinhando-se incondicionalmente aos Estados Unidos da América (EUA) (CASARÕES, 2019). Coerente com seu discurso, o primeiro país a ser visitado por Bolsonaro foram os EUA (OPEX – INFORME 597, 2019). Assim, a ação inicial do Brasil, em 2022, foi discutir a situação ucraniana com o Secretário de Estado dos EUA, Antony Blinken, em ligação telefônica com o ministro das Relações Exteriores do Brasil, Carlos França, que defendeu uma solução de acordo com o Direito Internacional (OPEX – INFORME 691, 2022). 

Por outro lado, o dilema do governo brasileiro está posto pelo caráter conservador, segundo Bolsonaro, do presidente da Rússia, Vladimir Putin, estando entre os presidentes com os quais Bolsonaro busca construir uma rede conservadora. Ao ser convidado por Putin para visitar o país, Bolsonaro recebeu questionamentos dos EUA, que enfatizaram o compromisso brasileiro de confrontar Putin em defesa dos princípios democráticos e da ordem. Por sua vez, Bolsonaro afirmou que a viagem para a Rússia teve como objetivo melhorar o entendimento e as relações comerciais. Pressionado novamente, o governo argumentou que a situação entre os países não diz respeito ao Brasil, recorrendo ao vice-presidente Hamilton Mourão para defender tal posicionamento (OPEX – INFORME 693, 2022).

Em mais um telefonema entre França e Blinken, o secretário dos EUA se declarou preocupado com a visita de Bolsonaro à Rússia, e que esta poderia sinalizar apoio a uma possível invasão à Ucrânia. Por sua vez, Bolsonaro afirmou que manteria a visita e negou desgastes entre Brasil e EUA (OPEX – INFORME 694, 2022). Buscando equilibrar a balança, o Itamaraty publicou uma nota oficial, às vésperas da viagem de Bolsonaro, celebrando os trinta anos de relações diplomáticas com a Ucrânia e o aumento das parcerias e comércio entre os países (OPEX – INFORME 695, 2022). 

O presidente brasileiro desembarcou na Rússia no dia 15 de fevereiro e declarou que o Brasil é solidário à Rússia. Ainda, comentou as áreas de cooperação entre os países e destacou a defesa de valores comuns, como a crença em Deus e a defesa da família. Bolsonaro agradeceu o apoio ao Brasil no pleito a um assento permanente no Conselho de Segurança (CS) da Organização das Nações Unidas (ONU), e na defesa da soberania do Brasil sobre a Amazônia. O ministro brasileiro ressaltou que o Brasil busca, junto à Rússia, a promoção de uma ordem multipolar, e Bolsonaro destacou que leva de volta ao Brasil o sentimento de casamento perfeito com Putin (OPEX – INFORME 696, 2022). 

A resposta estadunidense foi imediata. Em nota, o Departamento de Estado dos EUA afirmou que o momento para o Brasil se declarar solidário à Rússia não poderia ter sido pior, enfraquecendo o esforço por evitar um desastre estratégico e humanitário, e as chances de se obter uma solução pacífica para a crise. O presidente brasileiro negou ter tomado partido na questão e afirmou ter transmitido uma mensagem de paz. A porta-voz da Casa Branca, Jen Psaki, criticou a declaração de Bolsonaro em solidariedade à Rússia, afirmando que o país pode estar em oposição à maioria da comunidade internacional (OPEX – INFORME 696, 2022). Em nota, o MRE lamentou o teor das declarações da Casa Branca, e afirmou que não as considera construtivas ou úteis (OPEX – INFORME 697, 2022).

No dia 21 de fevereiro, em sessão do CS da ONU, o embaixador brasileiro no organismo, Ronaldo Costa Filho, defendeu a retirada de tropas de Donetsk e Lugansk – territórios separatistas pró-Rússia reconhecidos como independentes por Putin. Na sequência, no dia 22, por meio de nota, o MRE pediu uma solução negociada, em que as partes evitem a escalada da violência e estabeleçam canais de diálogo rumo a uma solução pacífica. No dia 23, Mourão declarou que o Brasil não iria reconhecer as regiões separatistas do leste ucraniano como independentes, condenou as ações de Putin, asseverou que o país não está neutro, que o Ocidente deve ajudar militarmente a Ucrânia e comparou a expansão russa aos movimentos de Adolf Hitler. Tal declaração e seu emissor foram desautorizados por Jair Bolsonaro no dia seguinte, que convocou seus ministros para uma análise da situação a fim de emitir um parecer. A posição brasileira foi cobrada pelo embaixador estadunidense em exercício no Brasil, Douglas Koneff, que classificou as ações russas como a maior invasão entre países europeus desde a Segunda Guerra Mundial. Ainda, sem emitir uma decisão, Bolsonaro e ministros afirmaram que a prioridade do governo seria coordenar a saída dos brasileiros que estão na Ucrânia (OPEX – INFORME 697, 2022).

Um dia após a ofensiva russa, no dia 24, o ministro Carlos França conversou novamente com o secretário de Estado dos EUA, Anthony Blinken, para tratar da visão do Brasil sobre o tema. Segundo França, os representantes debateram formas de restaurar a paz e proteger os civis. Blinken reiterou o pedido de que o Brasil condene publicamente as ações russas e que se alinhe ao discurso da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN). Em nova reunião do CS da ONU, o Brasil votou a favor da resolução que pede o fim dos ataques russos à Ucrânia, condenou a Rússia por ameaçar a integridade e a soberania de outro país, pediu a suspensão dos ataques e clamou por uma solução diplomática do conflito. Ademais, o MRE pulicou uma nota discordando das operações militares da Rússia contra a Ucrânia, e pedindo a suspensão das agressões (OPEX – INFORME 697, 2022).

Na sequência, o governo brasileiro optou por não propor uma data para o encontro entre o vice-presidente brasileiro, Hamilton Mourão, e o primeiro-ministro da Rússia, Mikhail Mishustin, cancelando a reunião (OPEX – INFORME 696, 2022), ao considerar que recebê-lo poderia ser interpretado como apoio às ações russas (OPEX – INFORME 697, 2022). No dia 27, em reunião do CS da ONU, o embaixador brasileiro, Ronaldo Costa Filho, pediu cautela nas medidas tomadas para não aumentar a tensão entre as partes, afirmando que as sanções poderiam agravar o conflito ao invés de resolvê-lo, apelando por um cessar-fogo. Já em reunião da Assembleia Geral (AG) da ONU, no dia 28, o embaixador brasileiro condenou a invasão russa, defendeu o cessar-fogo e questionou o envio de armas à Ucrânia pelas potências ocidentais. No mesmo dia, em reunião do CS da ONU, o representante alterno do Brasil, João Genésio de Almeida Filho, reiterou as críticas às sanções e ao suprimento de armas, argumentando que esta contribui para a militarização do conflito, e não para o diálogo. Bolsonaro, por sua vez, no dia 28 de fevereiro, informou que o Brasil concederia vistos humanitários a ucranianos, mas reafirmou a posição neutra no conflito (OPEX – INFORME 698, 2022), reiterada nos dias 02 e 03 de março (OPEX – INFORME 698, 2022).

No dia 02 de março, o Brasil reforçou seu posicionamento ao votar a favor da resolução da AG da ONU que condenou a invasão da Ucrânia e pediu a retirada imediata das tropas do país vizinho. Na ocasião, o embaixador brasileiro reiterou a defesa da paz, o cessar-fogo e a construção do diálogo. Já no dia 07, o governo brasileiro enviou uma aeronave contendo itens de ajuda humanitária aos ucranianos, mesmo dia em que Bolsonaro comentou a importância do veto russo na defesa da soberania brasileira sobre a Amazônia (OPEX – INFORME 699, 2022).

A mudança da postura brasileira gerou elogios dos EUA. Em mídia social, o secretário-assistente para o Hemisfério Ocidental do Departamento de Estado, Brian Nichols, elogiou a atuação do Brasil no Conselho de Direitos Humanos da ONU, bem como o posicionamento brasileiro no CS. Enquanto isso, preocupada com a compra de fertilizantes russos, a ministra da Agricultura do Brasil, Tereza Cristina, buscou apoio para uma proposta que exclui o item das sanções impostas à Rússia (OPEX – INFORME 699, 2022), posição reiterada pela ministra por meio de veículos de imprensa e em reunião do Instituto Interamericano de Cooperação para a Agricultura (IICA) na segunda quinzena de março. No dia 24 de março, o Brasil reafirmou sua posição ao aprovar a segunda resolução da AG da ONU pedindo o fim do cerco russo e a proteção de civis (OPEX – INFORME 701, 2022). 

Internamente, durante sessão no Senado, França defendeu Bolsonaro e criticou as sanções impostas por acabarem prejudicando mais as nações em desenvolvimento do que a própria Rússia, tal como ocorre com o próprio Brasil no acesso a fertilizantes russos, prejudicando a agricultura do país (OPEX – INFORME 701, 2022).

O posicionamento do Brasil com relação à invasão russa na Ucrânia se apresenta em dois tempos: 1) descrença de que uma ação militar russa se concretizaria; momento no qual prevalecem o presidente Jair Bolsonaro, que mantém sua visita oficial à Rússia, e seu ministro das Relações Exteriores, Carlos França, que em março defendeu o posicionamento inicial do governo ao afirmar que seu homólogo ucraniano, Dmytro Kuleba, o havia tranquilizado quanto à iminência de um conflito; 2) defesa de uma solução pacífica com retirada das tropas russas da Ucrânia; momento no qual prevalecem as ações no âmbito da ONU através do embaixador brasileiro no organismo, Ronaldo Costa Filho. Mesmo no segundo momento, defendido pelo ministro Carlos França, Bolsonaro preferiu destacar o apoio russo ao Brasil na candidatura a um assento permanente no CS da ONU e na defesa da Amazônia.

O devido funcionamento das instituições brasileiras ainda é colocado em dúvida. Apesar das contradições entre a postura inicial do Brasil e aquela adotada após a invasão russa, neste caso, parece prevalecer a cultura da resolução pacífica de controvérsias através da ação do corpo diplomático brasileiro em espaços multilaterais, mais propriamente, na AG e no CS da ONU.

* Guilherme Paul Berdú – Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP, PUC-SP). Membro do Observatório de Política Exterior (OPEx). Contato: guilherme-paul.berdu@unesp.br

Imagem: Jair Bolsonaro acompanhado de Vladmir Putin durante declaração à Imprensa. Foto: Alan Santos/PR. Palácio do Planalto

 

Referências Bibliográficas

CASARÕES, Guilherme. Eleições, política externa e os desafios do novo governo brasileiro. Pensamiento Próprio, 49-50. 2019. Ano 24. 

CERVO, Amado Luiz. Inserção internacional: formação dos conceitos brasileiros. São Paulo:  Saraiva, 2008, 297 p.

LAMPREIA, Luiz Felipe. A política externa do governo FHC: continuidade e renovação. Revista Brasileira de Política Internacional, 42 (2): 5-17, 1998. 

OBSERVATÓRIO DE POLÍTICA EXTERIOR DO BRASIL (OPEX). São Paulo: Grupo de Estudos  de Defesa e Segurança Internacional, Jan-Mar. 2022. Semanal.

PECEQUILO, Cristina Soreanu. A política externa do Brasil no século XXI: os eixos combinados  de cooperação horizontal e vertical. Revista Brasileira de Política Internacional, Brasília, n.51, 136-153. 2008.

compartilhe este post