Laurindo Tchinhama[1]
Desde o início das guerras civis em 1997 até os dias de hoje, a República Democrática do Congo (RDC) luta contra a insegurança e a instabilidade nacional que afetam principalmente a região Leste do país, fronteira com Ruanda e Uganda, ocupada por aproximadamente 130 grupos armados compostos por nacionais e estrangeiros.
Entre os principais problemas que mantêm a instabilidade está a incapacidade de resposta militar e técnica das Forças Armadas da República Democrática do Congo (FARDC) para desmantelar esses grupos. Por outro lado, a corrupção institucionalizada no setor de segurança, tanto no exército como na polícia nacional congolesa, afeta em grande medida as atividades do exército, bem como a má remuneração dos soldados. Ademais, a Reforma do Setor Segurança (RSS) realizada no país após o fim oficial dos conflitos em 2003, com inclusão de ex-membros de grupos rebeldes nas FARDC, fracassou e gerou revoltas internas em termos hierárquicos que se estenderam durante todo o governo do presidente Joseph Kabila.
Os esforços empreendidos pela Organização das Nações Unidas (ONU), principalmente a Missão da Organização das Nações Unidas no Congo (MONUC) (1999-2010) e a Missão de Estabilização da Organização das Nações Unidas (MONUSCO) (2010 até os dias de hoje), são insuficientes para atender de forma holística a proteção dos civis e o processo de RSS (MOBEKK, 2009). Historicamente, a MONUC teve a missão de acompanhar o cumprimento dos acordos de paz de Lusaka (1999) e de Sun City (2002), a RSS e a realização das eleições, porém, debilidades na coordenação e financiamento limitado ocasionaram o fracasso da proteção dos civis (MOBEKK, 2009). Por seu turno, a MONUSCO teve como objetivo primordial proteger os civis, pessoal humanitário e a equipe da missão com uso de todos os meios necessários.
Percebe-se que a estabilidade nacional depende primeiramente da vontade do governo para direcionar as prioridades para o setor de segurança com a ajuda de atores internacionais e regionais. Nesse contexto, desde que assumiu a presidência da RDC, em 2019, Félix Tshisekedi tem a difícil tarefa de realizar a RSS e garantir o controle e a estabilidade em território nacional com foco na reforma do exército. De acordo com Nantulya (2018) dois desafios devem marcar a nova administração: a profissionalização do setor segurança e a reforma da estrutura do poder marcado pelo clientelismo e corrupção desenfreada. O primeiro desafio é urgente e indispensável.
O primeiro movimento do presidente para criar condições de mudança foi garantir a lealdade do exército devido ao clima de desconfiança e desavença entre os membros da cúpula militar do país diante das atitudes do presidente. Vale ressaltar que essa mudança procura combater a corrupção e o desvio de armamentos perpetrados por muitos oficiais superiores (KAM, 2020a). Nantulya (2018) lembra que a corrupção institucionalizada é resultado do desgoverno do regime de Mobutu cuja frase “você tem armas, não precisa de salários” parece perpetuar e direcionar os oficiais do exército.
Alguns observadores e críticos congoleses argumentam que atores internacionais influenciaram na escolha e reforma dos oficiais militares, inclusive com indicação de nomes. A título de exemplo, “Peter Pham, o enviado Especial dos EUA para os Grandes Lagos, visitou Kinshasa em fevereiro como um gesto para atender a essas demandas… colocou nomes específicos de generais na mesa e pediu ao presidente Tshisekedi para agir.” (KAM, 2020c, tradução nossa).
Outra iniciativa recrudescente do presidente congolês que causou enorme impacto foi a exigência de pagamentos de salários pontualmente aos soldados. Essa medida é um passo importante na reforma do exército para evitar desmotivação dos corpos militares na linha de frente, assim como saques, estupros e rebeliões anteriormente cometidas contra os civis como forma de sustento, pois alguns generais se apropriavam dos salários de seus subordinados (RAYROUX; WILÉN, 2014; KAM, 2020b). Nessa interface está o projeto de lei denominado “Uma nação – um exército”, medida com a qual o governo visa contornar a RSS.
Para responder a crise institucional na área de defesa e segurança, Tshisekedi tem assinado acordos bilaterais de cooperação militar para concretizar tais propostas, sobretudo no âmbito da formação e apoio de equipamento militar. Com a Sérvia, a RDC contará com apoio às reformas técnicas na área militar, além de setores agrícola, educação e saúde (ACTUALITÉ, 2020). Já com os Estados Unidos da América (EUA) e o Egito, os acordos abordam treinamento civil militar, comunicação, engenharia e ensino de idiomas visando a consolidação da paz e segurança.
Com a França, o acordo enfoca na formação geral do exército congolês e na criação de uma escola de guerra para formação e treinamento de soldados na capital, Kinshasa. Para auxiliar no desenvolvimento e paz, conta com o financiamento de cerca 65 milhões de euros (AFRICANEWS, 2019). A África do Sul irá colaborar na elaboração do documento chamado Estratégia Militar. Vale destacar que os sul-africanos vêm atuando no país desde a década de 1990, tanto na mediação de acordos de paz, como na RSS congolesa. Por último, com Angola, os acordos se atentaram à troca de experiência, acordo interministerial para controle fronteiriço e estabelecimento de um memorando para criação de uma Comissão Mista Permanente de Defesa e Segurança.(MAKI, 2020; DW, 2020).
É importante lembrar que as relações de ambos os Estados datam da divisão territorial colonial conturbada que os tornou mais próximos devido à região de Cabinda, rica em petróleo, pertencente à Angola, porém envolvida no território congolês. Ademais, a Angola participou da segunda guerra do Congo (1998-2002), quando deu suporte ao ex-presidente Laurent Kabila para combater as forças de Ruanda, Uganda, Burundi e grupos rebeldes apoiados por estes países. Vale destacar que Angola tem atuado como mediador nas negociações para a paz quadripartite entre esses países e a RDC mediante estabelecimento de memorandos de entendimento (OBSERVADOR, 2020).
Paradoxalmente, dos países priorizados para realização dos acordos e cooperação militar pelo governo congolês, chama atenção a pouca ênfase dada ao Ruanda, Uganda e Burundi. Apesar das iniciativas existentes entre a RDC com esses países, há necessidade de serem reforçados e reafirmados veementemente novos acordos devido à presença e atuação dos grupos armados oriundos desses países tais como as Forças Democráticas Aliadas (ADF, em inglês) de Uganda, Forças Democráticas pela Libertação de Ruanda (FDLR) de Ruanda e as Forças de Libertação Nacional (FNL) de Burundi que ainda atuam na região leste do território congolês causando instabilidade e violações de direitos humanos.
Nesse sentido, o desmantelamento desses atores não estatais é primordial devido à proximidade geográfica, que lhes permite utilizar a RDC como seu reduto. Haja vista o histórico de participação destes países nos conflitos do Congo durante a primeira e segunda guerra (1996-1998; 1998-2002), seja por meio do apoio a grupos rebeldes ou participação no tráfico de recursos naturais. Também chama atenção fluxo migratório, de Ruandeses tutsis e hutus, principalmente, originado pelo genocídio de Ruanda em 1994 que permitiram a formação de grupos armados na região leste e comportamentos xenofóbicos de alguns cidadãos congoleses.
Vale observar que algumas atividades conjuntas realizadas entre a RDC e esses Estados, seja no âmbito bilateral ou multilateral, foram fundamentais durante o fim da década de 1990 e início dos anos 2000 e vários domínios. Com Ruanda, por exemplo, destaca-se o Acordo de Lusaka assinado em 1999 no âmbito da ONU com o objetivo de retirar as tropas ruandesas da RDC e desmantelar a milícia Interahamwe, que culminou com a criação da Missão da Organização das Nações Unidas no Congo (MONUC) e o acordo para exploração conjunta de petróleo no Lago Kivu, região fronteiriça, descoberta em 2014 (OLUKYA, 2017; NACIONES UNIDAS, 1999).
Nesse contexto, Gras (2020) observa a falha no avanço do projeto regional, envolvendo Ruanda, Burundi, Uganda e a RDC, para criação de um gabinete integrado dos exércitos da região cujo objetivo é combater grupos armados que atuam no leste. Ademais, outro acordo importante entre os países foi o Tripartite Plus Joint Commission assinado em 2007, tendo como facilitador e financiador os EUA (205 milhões de dólares em 2008 e 111 em 2009), com o objetivo de eliminar ameaças à paz e segurança regional e desmantelar e desmobilizar os grupos armados nacionais e estrangeiros atuantes na RDC com auxílio da MONUC (MCCORMACK, 2007; DAGNE, 2012). No entanto, percebe-se a falha dos governos em robustecer as ações em andamento em prol da segurança e estabilidade da região.
Outro aspecto importante é o fato desses países serem membros da Conferência Internacional da Região dos Grandes Lagos (ICGLR), fundado em 2004, que tem dentre os seus objetivos garantir a paz, segurança e integração regional. Ou seja, uma cooperação militar de âmbito regional consistente, no primeiro momento, é imperiosa para o sucesso do combate e consolidação da paz e segurança na região. Ainda, a atuação de instituições como a Comunidade de Desenvolvimento da África Austral (SADC) e a União Africana (UA) são fundamentais para a paz e estabilidade da região.
Todavia, pelo histórico dos países, a indagação está na celeridade para a implementação e cumprimento desses acordos. De um lado, porque a RDC comumente tende a priorizar os acordos de cunho bilateral para resolução das questões internas e, de outro, fica claro que a resolução dos conflitos e a RSS no país passam por iniciativas regionais práticas mediante força tarefa quadripartite (Burundi, Ruanda, Uganda e RDC), do qual sua concretização depende em grande medida da contribuição das partes.
Ações no âmbito regional mostram não só capacidade e engajamento dos Estados africanos na busca pela paz, segurança e desenvolvimento na região, como também um olhar do papel emancipatório da perspectiva de construção da paz de baixo para cima (bottom up), rompendo com o princípio de cima para baixo (top down), uma vez que a paz sustentável depende da boa relação com os Estados vizinhos e da participação da sociedade civil congolesa. Por exemplo, em Goma, cerca de 500 organizações da sociedade civil instituíram uma campanha evocando a unidade nacional em prol do desenvolvimento e segurança do país. Na região do Kivu, a iniciativa veio da Associação das Conferências Episcopais da África Central (ACEAC) e da Conferência Episcopal Nacional do Congo (CENCO) com a realização de um encontro ecumênico denominada “missa pelos tempos de guerra ou graves perturbações” (OKAPI, 2021). No entanto, percebe-se a existência de movimentos e iniciativa locais que buscam alcançar a paz que assola o país há anos.
Entretanto, argumenta-se que o mérito do presidente Tshisekedi na busca para consolidação da paz sustentável, estabilidade política e RSS é fundamental desde o momento em que valoriza tanto os atores regionais, extrarregionais e principalmente locais. Estes últimos, vítimas dos grupos beligerantes, devem ser mais ouvidos e terem suas necessidades atendidas. Contudo, os esforços para a consolidação da paz congolesa perpassam pelo tripé: atores locais (sociedade e líderes políticos), regional e extrarregional.
Referências Bibliográficas
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AFRICANEWS. France to support DRC fight armed groups | Africanews. 13 Nov. 2019. Disponível em: https://www.africanews.com/2019/11/13/france-to-support-drc-fight-armed-groups/. Acesso: 24/01/2021.
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GRAS, R. Rwanda: ‘Our rapprochement with the DRC can’t please everyone’ – Vincent Biruta. 2 Oct. 2020. Disponível em: https://www.theafricareport.com/44287/rwanda-our-rapprochement-with-the-drc-cant-please-everyone-vincent-biruta/. Acesso: 02/02/2021.
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MCCORMACK, S. Summary of Conclusions: Tripartite Plus Joint Commission Member States Meeting. 5 Dec. 2007. Disponível em:: https://2001-2009.state.gov/r/pa/prs/ps/2007/dec/96318.htm. Acesso: 02/02/ 2021.
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[1] Laurindo Tchinhama é doutorando em Relações Internacionais pelo PPGRI San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP, PUC-SP).
Imagem: TARRIFA (2021). Disponível em: President Tshisekedi Makes Major Changes In Military – Taarifa Rwanda. Acesso:11/02/2021.