O início do mandato presidencial de Jair Bolsonaro foi submetido a um minucioso escrutínio pelos grandes veículos de mídia brasileiros e pela oposição. Para além das investigações em torno do núcleo familiar, resultou da atenção conferida aos primeiros passos do novo governo uma série de ruídos em torno dos ministros de Estado. Distando das expectativas de discrição e sigilo que se avolumam em torno das ações estatais de inteligência, o Gabinete de Segurança Institucional (GSI) tornou-se epicentro das reportagens ao incluir a realização do Sínodo Amazônico, um encontro sobre a região amazônica realizado pela Igreja Católica em Roma, como uma preocupação à soberania nacional.
Assinala-se, no entanto, que o pensamento militar sobre a região amazônica foi reiteradamente marcado por inquietudes em relação à presença de atores favoráveis à preservação ambiental e à promoção dos direitos fundamentais dos povos amazônicos. Em entrevista, o ministro do GSI, general Augusto Heleno, reforçou que os “palpites” de atores internacionais sobre as questões amazônicas constituempreocupação na pauta de segurança internacional. Uma nota de imprensa do ministério contribuiu para fomentar o ruído em torno da questão ao afirmar que, apesar de não investigar os membros do clero, a pauta amazônica permaneceria em voga nas ações do órgão. Em agravo, o GSI considerou o envolvimento do Itamaraty, para acompanhar debates no exterior, e do Ministério do Meio Ambiente, para identificar participações ocasionais de organizações não-governamentais e ambientalistas no Sínodo Amazônico.
O evento envolve um cronograma de reuniões de bispos católicos, convocados pelo Papa Francisco I para discutir a atuação da Igreja Católica diante dos obstáculos à ação eclesial por todo o globo. O documento preparatório para o evento de 2019 exortou as comunidades eclesiais a discutir questões como a preservação da diversidade ambiental e cultural da região e a vulnerabilidade dos povos amazônicos, temas vilipendiados no discurso e nas políticas concretas dos novos mandatários no Brasil. Recorda-se que o atual presidente da República, Jair Bolsonaro, descreveu pejorativamente indígenas, quilombolas e ambientalistas em diversas ocasiões.
As políticas adotadas ao início de seu mandato presidencial corroboram o discurso negativo. A disposição em incluir a reunião eclesial como potencial ameaça à integridade territorial brasileira ocorre simultaneamente aos esforços econômicos liberalizantes traçados pelo governo, e especialmente pelo ministro da Economia, Paulo Guedes. O recurso ao argumento da soberania não ecoa na política irrefreável de privatizações e abertura ao capital internacional. Observa-se a emergência concreta de contradições entre diferentes grupos que compõem e sustentam o governo de Jair Bolsonaro.
É prudente indicar que as presidências de órgãos vinculados às questões agrárias, diretamente relacionados aos temas ambientais, foram distribuídas a oficiais das Forças Armadas. O Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), hoje subordinado ao Ministério da Agricultura, é presidido pelo general do Exército Jesus Corrêa; a Fundação Nacional do Índio (Funai) é atualmente presidida pelo general do Exército Framklimberg Ribeiro de Freitas. Esse último é suspeito de conflito de interesses por ter ocupado cargo em conselho consultivo de uma mineradora que atua no Pará após ter presidido a Funai entre maio de 2017 e abril de 2018.
A interpretação contravertida em relação às ações de movimentos sociais pela preservação ambiental e pelos direitos das populações locais, expressa na ação recente do GSI, não é recente e tampouco inovadora. A percepção militar em relação aos movimentos ambientais e indigenistas foi recorrentemente traçada através da designação de potenciais ameaças à integridade territorial brasileira nos movimentos favoráveis a medidas de proteção ambiental ou que clamassem por direitos dos povos amazônicos. A ideia da cobiça internacional pelo território amazônico está presente no pensamento militar sobre a região, atribuindo a esses atores o potencial de “desnacionalização” da Amazônia (MARQUES, 2007). A estratégia para evitar tais potenciais ameaças somou a vigilância das fronteiras e a ocupação populacional do território amazônico. Ressalta-se, no entanto, que essa estratégia de ocupação demográfica frequentemente ignorou a presença de comunidades indígenas, de ribeirinhos e outras populações amazônicas, demandando fluxos migratórios extraordinários para a sua conclusão.
A designação do Sínodo da Amazônia de 2019 como uma potencial ameaça para os interesses brasileiros no território amazônico divergiu a atenção a problemas latentes na região. Segundo o Atlas da Violência elaborado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), a região Norte teve o maior crescimento no número de homicídios no período entre 2006 e 2016. Em consonância com as estatísticas sobre homicídios na região, outro dado alarmante é o do aumento da violência no campo, ocasionado pelos conflitos por terras. De acordo com a Comissão Pastoral da Terra, no ano de 2017, Rondônia e Pará concentravam 54% dos 70 assassinatos no campo em todo o país. Ademais, é amplamente reconhecida a necessidade de desenvolver políticas púbicas de combate ao tráfico de drogas e à biopirataria.
Os dados referentes à depredação ambiental são igualmente alarmantes. Estatísticas recentes indicam o crescimento na taxa de desmatamento da região de floresta amazônica. De acordo com o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), 59% do desmatamento aconteceu em terras privadas ou de grilagem de áreas públicas, e, somente 15% do total são de terras indígenas. Em 2017, 46% das emissões de carbono no Brasil vieram da destruição de florestas, o que causa um agravamento do aquecimento do planeta.
Um conjunto variado de questões constitui preocupação mais urgente na agenda de preservação da Amazônia e de conservação dos interesses nacionais na região quando comparado à reunião eclesial a ser realizada em outubro de 2019. Em agravo, as soluções para essa miríade de problemas que incide sobre o território amazônico distam da proliferação da presença militar ou da promoção da ocupação demográfica. Nesse sentido, faz-se necessário promover ativamente políticas públicas que conciliem a preservação ambiental e os direitos das populações amazônicas diante do quadro de exploração irrefreável e insegurança cotidiana que se instala na região.
Leonardo Dias de Paula é mestrando em Relações Internacionais pelo PPG RI San Tiago Dantas e pesquisador do Gedes; Débora Reis é graduanda em Relações Internacionais pela Unesp-Franca.
Referência Bibliográfica:
MARQUES, Adriana Aparecida. Amazônia: pensamento e presença militar. Orientada por: Rafael A. Duarte Villa. 2007. 232 f. Tese (Mestrado em Ciência Política) – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2007.
Imagem: Vista Aérea da Floresta Amazônica. Por: Neil Palmer/CIAT.