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Capitalismo de vigilância, gestão da pandemia e relações internacionais

 

Murilo Motta*

 Este ensaio é um resumo do artigo “Dados, vigilância e o setor privado no desenvolvimento de ferramentas de rastreamento de contatos durante a pandemia de COVID-19” publicado pela Revista Aurora, v. 14, n. 2, 2021. A versão completa está disponível no site da revista.

 

A pandemia de COVID-19 forçou a migração de diversos direitos e serviços para plataformas digitais. Pessoas de todo o globo se tornaram usuários de serviços oferecidos por grandes empresas dos Estados Unidos, como Google, Apple, Facebook, Amazon e Microsoft, também conhecidas pela sigla GAFAM. Por exemplo, Google (Gmail, Google Classroom, YouTube) e Microsoft (MS Teams) se tornaram nossas novas salas de aula, o Facebook (Instagram, Whatsapp) passou a ser nosso ponto de encontro para atividades culturais, sociais e de lazer, enquanto a Amazon se tornou a referência para nossas compras. Embora ofereçam estes serviços, dentre muitos outros, a principal fonte de faturamento destas empresas provém da extração, gestão e análise de dados de seus usuários.

Em seu renomado livro sobre o capitalismo de vigilância, Shoshana Zuboff vê o uso de grandes quantidades de dados (Big Data) como componente fundamental de uma nova forma de capitalismo de informação, que ela chama de “capitalismo de vigilância”, em que grandes empresas de tecnologia, como as GAFAM, oferecem serviços e plataformas digitais gratuitos deliberadamente desenhados para extrair o máximo possível de dados de seus usuários; então, esses dados são tratados e vendidos para terceiros, como modelos preditivos do comportamento humano, que também permitem sua modificação por antecipação.

Ainda assim, o anúncio de uma parceria entre Apple e Google para o desenvolvimento de uma Interface de Programação de Aplicativos (API) para o rastreamento de contatos de COVID-19, foi bem recebido em todo o globo, após sua comprovada eficácia na proteção à privacidade dos usuários, mas sem que houvessem maiores questionamentos sobre quais os interesses destas duas grandes empresas com essa estratégia.

A partir desta interface, o governo ou a autoridade sanitária competente puderam desenvolver aplicativos de rastreamento de contatos integrados aos sistemas de saúde nacionais. No Brasil, o Ministério da Saúde usou a API Apple-Google para desenvolver o aplicativo de rastreamento de contatos “Coronavirus – SUS”. Segundo o Ministério da Saúde, o “Coronavirus – SUS” reconhece contatos próximos a uma distância de 1,5 a 2 metros e por um tempo mínimo de cinco minutos. Ele funciona entre smartphones que tenham o aplicativo instalado, através do envio criptografado das informações de contágio, por meio do uso do Bluetooth de baixa energia.

O Ministério também destacou que “além de segura, a nova funcionalidade conserva a privacidade, tanto do paciente infectado como da pessoa que recebe a notificação da possível exposição com o caso confirmado para a COVID-19”, já que o aplicativo funciona sem rastrear os movimentos da pessoa testada positiva e sem conhecer sua identidade ou a identidade com quem ela entrou em contato. Além disso, “todos os dados são criptografados e salvos localmente no smartphone” e “os dados só ficam disponíveis na ferramenta durante o período de 14 dias”.

Embora o conhecimento e a capacidade de inovação de Apple e Google possam ter ajudado a mitigar os efeitos da pandemia, é necessário criticar a invasão da esfera pública por atores privados, uma vez que ela pode implicar a perda de autonomia por parte dos Estados e das sociedades na definição dos usos destas tecnologias. Com efeito, a dependência de atores privados para o desenvolvimento de novas tecnologias contribui não só para a subordinação técnica, mas também para a subordinação cultural, econômica, social e política a algumas poucas empresas sediadas principalmente nos EUA.

Neste sentido, o desenvolvimento desta API faz parte de um fenômeno mais amplo, em que as grandes empresas de tecnologia têm penetrado em cada vez mais esferas da vida social. A transgressão de esferas da vida social é uma estratégia destas empresas, que, assim, concentram uma variedade cada vez maior de dados, que são essenciais para o desenvolvimento de novas tecnologias da informação.

Estas empresas aproveitam suas vantagens na esfera da produção de bens digitais para acessar as esferas da saúde e das políticas públicas, o que pode levar à reorganização destas duas esferas de acordo com os valores e interesses de empresas privadas. Esta crítica pretende ressaltar que Apple e Google não só contribuíram com seus conhecimentos técnicos na formulação de uma resposta à pandemia de COVID-19, mas também determinaram qual caminho poderia ser seguido, uma vez que definiram as condições de existência de aplicativos de rastreamento de contatos e como eles puderam ser usados por governos nacionais.

Para regulamentar as práticas invasivas e desenfreadas de acúmulo de dados, será necessário controlar quais tipos de dados as empresas podem coletar, como podem coletá-los e para onde podem enviá-los e armazená-los, bem como limitar a quantidade de dados que uma empresa pode possuir sobre seus usuários. Ademais, precisaremos de novos modelos de propriedade e de governança de dados, que quebrem as práticas monopolistas de empresas como as GAFAM, o que significa gerir alguns setores da economia de dados como parte da infraestrutura pública.

Nesta nova economia baseada em dados, o conhecimento é radicalmente concentrado em algumas poucas empresas estadunidenses, que buscam ativamente maximizar sua legitimidade, relevância e poder nas relações internacionais. Nos países do Sul Global, a defasagem em conhecimentos de ponta se traduz na necessidade de que empresas privadas estrangeiras preencham a lacuna técnica deixada pelos Estados nacionais. No entanto, é importante considerar que a atuação de empresas privadas é sempre condicionada pela busca de lucros, de modo que devemos estar atentos para os usos que são feitos de nossos dados por empresas como as GAFAM.

 

* Murilo Motta é Mestrando pelo Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (Unesp/Unicamp/Pucsp), bolsista CAPES (PROCAD-DEFESA) e membro da Rede de Pesquisa em Autonomia Estratégica, Tecnologia & Defesa (PAET&D)

Imagem: App para o rastreamento de COVID-19. Por: Pixabay.

A condenação de Bolsonaro na ONU pela exposição de crianças

Giovanna Ayres Arantes de Paiva*
Texto publicado originalmente no Le Monde Diplomatique Brasil.

 

No dia 5 de outubro, o Comitê dos Direitos da Criança – órgão das Nações Unidas que monitora o cumprimento da Convenção sobre os Direitos da Criança –condenou o uso de crianças fardadas em eventos políticos promovidos pelo presidente Jair Bolsonaro. Em comunicado enviado à imprensa brasileira, o Comitê alertou que a exposição de crianças a essas situações viola os compromissos internacionais assumidos pelo Brasil e deve ser criminalizada. O posicionamento da ONU ocorreu depois que oitenta entidades de direitos humanos denunciaram Bolsonaro ao Comitê, após imagens do presidente segurando uma criança fardada circularem na mídia. As fotos foram registradas em evento da Polícia Militar, no dia 30 de setembro, em Belo Horizonte. Na ocasião, Bolsonaro colocou ao seu lado uma criança de 6 anos que usava uma farda policial e portava uma arma de brinquedo. O presidente chegou a erguer a criança acima de seus ombros, posar para fotos e parabenizar os pais do menino pelo exemplo de patriotismo e civilidade.

Dois fatores centrais nesse episódio chamam atenção: o uso político de crianças no governo Bolsonaro e os argumentos que a ONU utilizou ao formular sua resposta.

No que concerne ao primeiro fator, pode-se afirmar que o presidente vem, repetidamente, associando crianças a atividades militares e policiais como parte da promoção de sua agenda política. Em abril deste ano, Bolsonaro realizou atitude semelhante ao pegar no colo uma criança fardada e com um fuzil de brinquedo, durante evento em Manaus. Em outubro de 2019, em cerimônia da Polícia Militar em São Paulo, o presidente exaltou, posou para fotos e mostrou aprovação diante de uma criança fardada, segurando uma réplica de uma arma. Em 2018, durante campanha presidencial, Bolsonaro já demonstrava apologia à associação entre crianças, armas e violência: ao pegar uma criança no colo, o presidente a fez imitar uma arma com as mãos. Também em 2018, o político criticou o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), afirmando que este deveria ser “jogado na latrina”, pois incentivaria a “vagabundagem infantil”, em referência aos direitos que o documento garante como liberdade, educação, lazer, respeito e dignidade.

Em todas essas situações, as crianças são colocadas como símbolos da propaganda de uma agenda política voltada para o discurso de ódio e de incentivo à violência. As crianças também simbolizam as futuras gerações e o futuro de um país. De certa forma, a imagem da criança nesses contextos representa a imagem de um futuro violento e militarizado. Esses episódios recorrentes no governo Bolsonaro expõem as crianças a situações constrangedoras em ambientes adultos e relacionados à glorificação da vida militar e policial. Durante o acontecimento do dia 30 de setembro, por exemplo, Bolsonaro procurou naturalizar a associação entre crianças e armamentos, declarando na ocasião: “Quando eu era moleque, eu brincava com isso: arma, flecha, estilingue. Assim foi criada a minha geração e crescemos homens, fortes, sadios e trabalhadores”. Nessa passagem fica explícita a conexão feita entre um padrão de comportamento infantil voltado para a disciplina, masculinidade e violência e a produção de uma geração de homens que se encaixa no ideal de patriotismo deste governo.

Com relação ao segundo fator – a resposta da ONU – é interessante notar que o Comitê repudiou “o uso de crianças em quaisquer atividades relacionadas a conflitos e a produção e disseminação de imagens de crianças envolvidas em hostilidades reais ou simuladas”, visto que tais ações contrariam tratados internacionais que resguardam os direitos das crianças, das quais o Brasil é signatário. Mais especificamente, as Nações Unidas fazem referência ao “Protocolo Facultativo da Convenção sobre os Direitos da Criança relativo ao envolvimento de crianças em conflitos armados”, de 2002. Tal documento, assinado e ratificado pelo Brasil, conclama os Estados a tomarem todas as medidas possíveis para que menores de 18 anos não participem de hostilidades (art. 1) e para que não sejam recrutados compulsoriamente nas forças armadas (art. 2).

O documento foca essencialmente em contextos de hostilidades e conflitos armados e não faz menção explícita à utilização de imagens de crianças fardadas ou portando armas. Ao ressaltar que a divulgação dessas imagens pode ser um incentivo à participação de crianças em hostilidades, as Nações Unidas fazem uma leitura mais ampla do Protocolo e mostram uma abordagem mais aprofundada sobre o tema. Isto é, a ONU passa a mensagem de que a violência contra a criança pode se expressar de diferentes formas e a preocupação internacional não se refere apenas a crianças utilizadas em conflitos armados, mas a atitudes que fazem apologia a esse treinamento e recrutamento de crianças e que, consequentemente, vão contra todo o esforço internacional de proteção das crianças.

Logo, o problema extrapola a questão do envolvimento direto de crianças em atividades bélicas (na linha de batalha), portando armas reais, que configuram a típica imagem da chamada criança-soldado – geralmente associadas a Estados mais pobres que passam por conflitos armados violentos, principalmente no continente africano e em alguns países do Oriente Médio. Isso significa que o incentivo ao envolvimento de crianças em atividades bélicas não é algo distante da nossa realidade. Pelo contrário, está presente em ações cotidianas que naturalizam e exaltam a participação das crianças em ambientes que glorificam um ideal de força armada que garantiria uma suposta segurança. Está presente também na ideia de que a inserção de crianças em contextos violentos seria necessária para torná-las mais fortes e preparadas para a vida.

O posicionamento da ONU sobre o caso brasileiro abre precedentes para que a organização se manifeste de forma mais explícita em outras situações que envolvam discursos voltados para a violência contra as crianças, naturalização de crianças com armas e disseminação de imagens de crianças em atividades bélicas que ocorram em quaisquer países, sejam nações em desenvolvimento ou desenvolvidas.

As Nações Unidas ainda acrescentaram que “aqueles que envolvem crianças nas hostilidades devem ser investigados, processados e sancionados”. No entanto, não cabe ao Comitê aplicar punições. O que o órgão faz é avaliar o cumprimento dos tratados de proteção à infância assinados pelos países. O membro do Comitê dos Direitos da Criança, Luis Ernesto Pedernera, ressaltou que na última avaliação, em 2015, o Brasil mostrava avanços na adoção da Convenção sobre os Direitos da Criança, a exemplo de sua política pelo desarmamento. Nessa mesma avaliação, também havia sido recomendado que o país criasse um órgão independente para acompanhar a aplicação da Convenção. No entanto, tal iniciativa não avançou.

Na conjuntura atual, a postura da ONU é relevante e chama atenção para a necessidade de um entendimento mais profundo acerca dos documentos internacionais relativos à infância. Ainda que uma agenda de proteção da criança já esteja estabelecida em âmbito internacional, é necessário acompanhar sua adoção nos diferentes países signatários e até mesmo sugerir revisões, com base nos desafios contemporâneos. A menção que o Comitê fez ao uso de imagens de crianças fardadas e envolvimento de crianças em hostilidades simuladas são exemplos de desafios atuais que precisam ser melhor especificados e contemplados pelas Nações Unidas e Estados. Paralelamente, houve uma relativa demora para a ONU assumir um posicionamento mais rígido, haja vista que o governo Bolsonaro já vinha mostrando desprezo pelos direitos das crianças desde sua campanha presidencial e a organização só se posicionou após pressão da sociedade civil brasileira.

Pensando no próximo ano, é provável que imagens de crianças fardadas e com armas sejam usadas no contexto de campanha presidencial do atual governo para se comunicar com uma parte do eleitorado. Não somente imagens, mas falas, ações e discursos de ódio que expõem crianças a situações degradantes e desafiam a integridade infantil também podem ser ferramentas utilizadas com o objetivo de se manter no poder. É preciso atentar para que essas violações – que já se tornaram cotidianas – não sejam ainda mais naturalizadas, pois desafiam décadas de trabalho para consolidar a criança como cidadã e sujeito de direitos.

 

* Giovanna Ayres Arantes de Paiva é doutora em Relações Internacionais (PPGRI “San Tiago Dantas” – Unesp/Unicamp/Puc-Sp) e pesquisadora do Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional (GEDES) e da Rede de Pesquisa em Paz, Conflitos e Estudos Críticos de Segurança (PCECS). É autora do livro Crianças e (in)segurança: a construção de narrativas sobre crianças-soldado na agenda internacional.

Imagem: Imagem comemorativa dos 30 anos da Convenção sobre os Direitos da Criança. UN Photo/Mark Garten.

 

O teste ASAT da Rússia e o uso do espaço cósmico

Raquel Gontijo*

 

Os debates em torno dos riscos de uma corrida armamentista espacial, assim como a necessidade de negociações internacionais mais robustas envolvendo o uso do espaço cósmico, foram reavivados nos últimos dias. No dia 15 de novembro, o governo russo confirmou a realização de um teste de míssil antissatélite de ascensão direta (ASAT), que destruiu o satélite Cosmos-1408. O satélite russo fora lançado na década de 1980, tinha massa de aproximadamente 2.000 kg, orbitava a uma altitude de aproximadamente 480 km, e já não estava mais operacional. O teste do ASAT resultou na liberação de milhares de pequenos detritos, atualmente estimando-se mais de 1.500 objetos rastreáveis (com mais de 10 cm) e milhares de outros fragmentos pequenos demais para serem rastreáveis, mas ainda assim suficientes para causar danos a plataformas orbitais, devido às suas elevadas velocidades.

O satélite Cosmos-1408 encontrava-se na faixa de órbita terrestre baixa (em inglês, low Earth orbit – LEO), que se estende entre aproximadamente 160 km e 1.000 km de altitude (essa demarcação pode variar). Essa faixa concentra uma grande quantidade de satélites, sendo a mais adequada para diversas atividades de observação e monitoramento da superfície terrestre, pela facilidade em obter imagens de alta resolução, e para comunicação com aparelhos portáteis de pequeno porte. Esta é também a faixa onde se encontra a Estação Espacial Internacional (ISS), iniciativa de cooperação científica e tecnológica internacional, que agrega 15 países, incluindo a própria Rússia.

A Rússia não é o primeiro país a realizar um teste de ASAT com destruição de um satélite e a liberação de detritos na faixa orbital LEO. Em 2007, a China destruiu o satélite Feng Yun-1C, em uma altitude de aproximadamente 850 km. Em seguida, os Estados Unidos testaram seu próprio ASAT na operação Burnt Frost, em 2008, destruindo o satélite USA-193, a uma altitude de aproximadamente 250 km (com um planejamento para minimização da liberação de detrito relativamente bem-sucedido). E, em 2019, a Índia realizou a Missão Shakti, em que destruiu um satélite a aproximadamente 300 km de altitude.

A nuvem de detritos lançada pelo teste do ASAT russo, assim como ocorrido nos testes anteriores, resulta em uma elevação significativa dos riscos para as plataformas em órbitas LEO, incluindo a ISS. De fato, os astronautas da ISS (dois russos, quatro americanos e um alemão) receberam um aviso no dia 15 de novembro para se prepararem para o risco de colisão com a nuvem de detritos, antes de o teste ASAT ser confirmado, o que levou a severas críticas ao governo russo, que teria colocado em risco as vidas de seus próprios cosmonautas.

Muitos dos fragmentos produzidos pelo teste serão destruídos ao reentrarem na atmosfera, mas muitos poderão permanecer em órbita durante anos, impondo risco a satélites em um longo horizonte temporal, conforme demonstrado pelas experiências passadas. Ademais, além de poderem causar danos aos satélites operacionais em órbita, os detritos também podem prejudicar os lançamentos espaciais de novas plataformas.

Com a intensificação do uso do espaço cósmico, esses problemas se tornam cada vez mais urgentes e alarmantes. Atualmente, satélites são um recurso essencial para o funcionamento de inúmeras atividades, incluindo a sincronização de equipamentos digitais (que viabiliza, por exemplo, o mercado financeiro e muitos serviços digitais), o monitoramento da superfície terrestre (desde queimadas e desmatamento até padrões de ocupação urbana), comunicações, e atividades militares como navegação de veículos autônomos e monitoramento de alvos.

Mas, a despeito da evidente importância desses recursos para a sociedade contemporânea, nas últimas décadas os instrumentos de cooperação internacional ficaram estagnados em termos de novas propostas para o controle da militarização do espaço. Nas décadas de 1960 e 1970, foram negociados tratados internacionais que estruturam os princípios fundamentais do uso do espaço cósmico. Dentre esses instrumentos legais, o grande expoente é o Tratado de 1967, que estabelece, dentre outras questões, que a Lua e demais corpos celestes poderão ser usados apenas para “fins pacíficos”. No entanto, além de o termo “fins pacíficos” estar sujeito a diversas interpretações, o tratado não indica que o uso do entorno orbital da Terra deva ser igualmente restringido. Ou seja, não há atualmente nenhum instrumento vinculante que determine que o entorno orbital não possa ser militarizado ou usado para alocação de armamentos.

Desde a década de 1980, a Assembleia Geral da ONU vem reiterando a importância de que sejam retomadas negociações sobre o controle de armamentos em relação ao espaço cósmico, com a repetida aprovação de resoluções sobre a prevenção de uma corrida armamentista espacial (resoluções denominadas PAROS – Prevention of an Arms Race in Outer Space). No entanto, as discussões realizadas no âmbito da Conferência de Desarmamento da ONU têm sido travadas pela animosidade e a desconfiança entre as grandes potências.

Diante disso, em 2008, a Rússia e a China propuseram o texto de um novo tratado de proibição de alocação de armamentos no espaço, posteriormente revisado em 2014. Entretanto, o tratado não foi concluído, dentre outras questões, devido a questionamentos levantados sobre sua linguagem vaga e imprecisa. O tratado não previa, por exemplo, a proibição de testes de armamentos ASAT de ascensão direta, como o realizado pela Rússia, já que esses armamentos não são alocados em órbita, mas em solo.

Um dos poucos pontos em que parecia haver algum avanço mais substancial nas negociações internacionais, sobretudo no âmbito do Comitê das Nações Unidas sobre Usos Pacíficos do Espaço Cósmico (COPUOS), era justamente no controle de detritos espaciais. Nas últimas décadas, o tema da sustentabilidade do uso do espaço cósmico tem sido intensamente debatido, e foram propostas inúmeras diretrizes e códigos de conduta para mitigar o problema dos detritos, que afetam indiscriminadamente os satélites de todos os países.

No entanto, os instrumentos internacionais negociados até hoje sobre essa questão não têm caráter vinculante, ficando a cargo de cada país seguir as diretrizes e impô-las às empresas privadas de sua nacionalidade. Eventos como o teste ASAT da Rússia põe em xeque muito do que tem sido conquistado, e geram desconfiança sobre a disposição dos Estados em cumprirem e fazerem cumprir as regras para promoção da sustentabilidade espacial. Além disso, esse teste reforça uma tendência de acirramento da corrida armamentista entre Rússia, Estados Unidos e China, com consequências não só para o espaço cósmico, mas para o delicado equilíbrio político e militar de forma mais ampla.

É urgente a necessidade de avanços concretos nas negociações internacionais para mitigação do problema dos detritos e para prevenção de uma corrida armamentista espacial. E, sem o compromisso das nações com maior presença no espaço cósmico, veremos, nos próximos anos, as consequências de uma tragédia anunciada.

 

* Raquel Gontijo é Professora do Departamento de Relações Internacionais da PUC Minas e pesquisadora do GEDES. Sua tese de doutorado discutiu as forças motrizes da proliferação de armamentos nucleares e mísseis balísticos. Contato: rgontijo@pucminas.br.

Imagem: Space Debris. Por: European Space Agency/Flickr.

O AUKUS e o pivô do Reino Unido para o Indo-Pacífico

João Vitor Tossini*

Em 15 de setembro de 2021, o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, anunciou em conjunto com os primeiros-ministros do Reino Unido, Boris Johnson, e da Austrália, Scott Morrison, o estabelecimento de uma parceria de segurança envolvendo os três países. Intitulado de AUKUS (acrônimo do nome dos três membros em inglês), a parceria simboliza a crescente disposição de seus governos em estabelecer iniciativas que permitam o fortalecimento de suas posições estratégicas no Indo-Pacífico (AUSTRALIA, 2021). No caso britânico, o AUKUS pode ser compreendido por meio da política da “Grã-Bretanha Global” (Global Britain), lançada em 2016, que busca consolidar o Reino Unido como a principal potência militar na Europa, fortalecer laços diplomáticos e econômicos com antigos parceiros para além da União Europeia e, desde março de 2021, restabelecer o país como a principal potência europeia no Indo-Pacífico (UNITED KINGDOM, 2021).

Ademais, de forma similar ao que se entende como uma escolha estratégica da Austrália pelos Estados Unidos no lugar de outra posição na competição com a China (MAO, 2021), os termos e as consequências do AUKUS indicaram a preferência da Austrália pela parceria estratégica com o Reino Unido ao invés da União Europeia, mais especificamente, a França. Logo, indica-se que a posição britânica na iniciativa representa o avanço da agenda da Grã-Bretanha Global no Indo-Pacífico, região em que, desde meados dos anos 1990, a França ocupou por meio de seus territórios e departamentos ultramarinos uma posição relativa mais robusta do que Londres no âmbito geoestratégico. Assim, no caso do Reino Unido, o AUKUS está inserido em uma política de retorno do enfoque britânico a regiões fora do eixo euro-atlântico, simbolizando modificações em relação à política estratégica desse país que esteve marcada pela ênfase na Europa durante parte significativa da Guerra Fria.

Grã-Bretanha Global e o AUKUS

A política da Grã-Bretanha Global, lançada pelo Governo Theresa May (2016-2019) após a decisão pela saída do Reino Unido da União Europeia (Brexit), nomeou uma tendência britânica iniciada no pós-Guerra Fria de crescente engajamento internacional com maior ênfase na projeção de poder militar e político do país fora do cenário europeu (HYDE-PRICE, 2007; UNITED KINGDOM, 1998; 2015; 2021). Nos governos John Major (1990-1997) e, especialmente, Tony Blair (1997-2007), o Reino Unido retomou um posicionamento internacional intervencionista que levou a participação britânica em uma série de conflitos militares nos Balcãs, em Serra Leoa, Afeganistão e Iraque (LUNN; MILLER; SMITH, 2008).

Os sucessores de Blair mantiveram parte das operações iniciadas em seu governo, além de participarem de outras na Líbia e na Síria. Gradativamente, o governo em Londres retomava um enfoque em capacidades expedicionárias e reduziam a prioridade de compromissos militares no continente europeu, alterando a prática vigente na Guerra Fria que era centrada na defesa terrestre convencional da Alemanha Ocidental e outros aliados continentais contra uma ofensiva soviética (HYDE-PRICE, 2007). Em 2020, a conclusão de um plano de 2010 de retirada da maioria das forças militares do Reino Unido da Alemanha apresenta-se como outro evento simbólico dessa reorientação estratégica britânica.

Dessa forma, o voto da maioria dos britânicos pelo Brexit em 2016 ocorreu em meio ao crescente enfoque estratégico de Londres em regiões ultramarinas. No início de 2021, o governo britânico passou a incluir formalmente o Indo-Pacífico como uma de suas áreas prioritárias de atuação (UNITED KINGDOM, 2021), além da tradicional presença e intervenções dos anos anteriores no Oriente Médio e na África. Denominada de “tilt” ou pivô para o Indo-Pacífico, a “nova” prioridade estratégica do Reino Unido pode ser considerada como uma pontuação dos objetivos presentes na política da “Grã-Bretanha Global”. Ademais, a crescente expansão da atuação diplomática e militar do Reino Unido pode ser relacionada à percepção da ascensão da China no Indo-Pacífico e ao crescente peso econômico da região no sistema internacional, especialmente no quesito de busca de novos mercados que substituem parcialmente a União Europeia no comércio britânico (HARPER, 2020). Em suma, o Reino Unido deseja restabelecer sua posição como a principal potência europeia nessa região, que foi eclipsada pela França desde o fim de sua presença militar e controle de Hong Kong em 1997, ao passo que busca equilibrar a oposição ao crescimento chinês e desfrutar do crescimento econômico regional (UNITED KINGDOM, 2021).

O AUKUS envolve três Estados com relativa proximidade no campo de defesa e segurança. Os Estados Unidos, a Austrália e a Nova Zelândia constituem o Tratado ANZUS, aliança de defesa e cooperação militar formada em 1951. Apesar de a Nova Zelândia não aderir totalmente ao ANZUS devido a sua política de proibição de armas nucleares em seu território, o Tratado apresenta-se como uma das bases da cooperação bilateral em defesa dos Estados Unidos com a Austrália (MCCLURE, 2021). Desde 1971, o Reino Unido possui um acordo similar com Austrália, Nova Zelândia, Singapura e Malásia, intitulado “Cinco Acordos de Força de Defesa” (Five Power Defence Arrangements). Além disso, o Reino Unido, a Austrália e os Estados Unidos – em conjunto com o Canadá e a Nova Zelândia –, constituem os “Cinco Olhos” (Five Eyes), um sistema de cooperação em questões de inteligência e comunicações estabelecido entre Londres e Washington durante a Segunda Guerra Mundial.

Com isso torna-se possível compreender a relevância dos termos do AUKUS. A iniciativa possui como aspecto central a criação de uma “parceria trilateral de segurança”, em conjunto com a cooperação no quesito de inteligência e comunicações dos Cinco Olhos, que envolva os três países, possibilitando um novo meio de diálogo estratégico. Adicionalmente, o AUKUS possui como objetivo maximizar a cooperação e a interoperabilidade entre as forças armadas de seus membros, além de incrementar a “integração” de suas capacidades tecnológicas e industriais de defesa. Consequentemente, o AUKUS pode reafirmar a preponderância de artigos da indústria bélica do Reino Unido e, especialmente, dos Estados Unidos na composição das capacidades militares da Austrália, consolidando esse crescente mercado como compradores do complexo industrial norte-americano e britânico (GILL, 2021).

Assim, o primeiro projeto significativo do AUKUS incluiu a venda de artigos militares para os australianos. A parceria estabeleceu um acordo que visa à venda de submarinos de propulsão nuclear aos australianos, sendo a tecnologia de propulsão nuclear fornecida por parte dos Estados Unidos e do Reino Unido (AUSTRALIA, 2021). Além dos questionamentos sobre o aspecto da proliferação nuclear, ainda que a iniciativa não envolva a transferência de armamentos nucleares, o AUKUS resultou no cancelamento da compra australiana de 12 submarinos convencionais franceses, que totalizaria aproximadamente 66 bilhões de dólares (JONES, 2021). Em contraste, além dos submarinos nucleares, em 2018, o Reino Unido assegurou a venda da próxima geração de fragatas da Marinha Real Australiana, vencendo competidores europeus, enquanto que as aquisições australianas de outros artigos militares dos Estados Unidos contribuíram para elevar o país para a segunda posição entre os importadores de produtos militares (GILL, 2021).

Concernente à decisão australiana de cancelar a compra dos submarinos franceses, ainda que os dois países mantenham cooperação em assuntos de defesa e segurança na região do Pacífico, o AUKUS exclui a França dos projetos de aquisição da Marinha Real Australiana para os anos 2020. A decisão posterior da União Europeia em postergar as negociações de um Acordo de Livre-Comércio com a Austrália, apresenta-se como uma resposta conjunta do bloco em apoio ao governo francês. Contudo, o impacto dessa decisão foi previamente amenizado pela Austrália com o avanço das negociações de livre-comércio com o Reino Unido em julho de 2021. Tendo que, em 2019, o comércio total australiano com o Reino Unido (30 bilhões de dólares) representava quase 40% das trocas com a União Europeia (78 bilhões de dólares), o avanço das negociações com os britânicos apresenta-se como significativa, compensando parcialmente os atritos comerciais com o bloco europeu. Nesse sentido, a aproximação estratégica australiana com o Reino Unido possui reverberações adversas para o papel da França e de outros membros da União Europeia em aspectos militares e comerciais no Indo-Pacífico.

Dessa forma, a iniciativa trilateral envolvendo o Reino Unido, os Estados Unidos e a Austrália encontra-se em um contexto de convergência da ampliação da zona de atuação estratégica de Londres (UNITED KINGDOM, 2021) com os anseios da Austrália por capacidades militares robustas (AUSTRALIA, 2020) e com o “pivô para a Ásia” dos Estados Unidos. Em adição, o caso do AUKUS representou uma convergência de interesses estratégicos de Londres na região. A formação dessa parceria contribuiu para o avanço de dois objetivos da Grã-Bretanha Global.

No aspecto econômico, a AUKUS detém o potencial de fornecer um dos acordos mais substanciais ao setor industrial de defesa do Reino Unido em anos, ao passo que, estrategicamente, fornece a um aliado próximo os meios militares para contribuir na contenção da ascensão militar chinesa na região. Além disso, os poucos detalhes da transferência de tecnologia nuclear indicam que Londres e Washington planejam capacitar a Austrália para a manutenção dos reatores nucleares, enquanto o funcionamento da tecnologia e dos sistemas de propulsão nuclear serão retidos pelos dois países. Logo, a Austrália passará a deter uma dependência dos demais membros do AUKUS para a continuidade da operação dessa tecnologia (GILL, 2021), contribuindo para a persistência do alinhamento estratégico australiano com os Estados Unidos e o Reino Unido em detrimento de outras parcerias.

 

* João Vitor Tossini é doutorando em Relações Internacionais pelo PPGRI San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP, PUC-SP).

Imagem:UK Carrier. Por: U.S. Indo-Pacific Command.

 

 

Referências Bibliográficas:

AUSTRALIA. Department of Defence. 2020 Defence Strategic Update. 1 July 2020. Disponível em https://www1.defence.gov.au/about/publications/2020-defence-strategic-update Acesso em 03 out. 2021.

AUSTRALIA. Prime Minister Office. Joint Leaders Statement on AUKUS. Media Statement. 16 set 2021. Disponível em https://www.pm.gov.au/media/joint-leaders-statement-aukus Acesso em 01 out. 2021.

GILL, Bates. AUKUS is a Big Deal, but Needs to be Put in Perspective. Royal United Services Institute (RUSI). 20 September 2021. Disponível em: https://rusi.org/explore-our-research/publications/commentary/aukus-big-deal-needs-be-put-perspective Acesso em: 03 out. 2021.

HARPER, Stephen J. A Very British Tilt. Towards a new UK strategy in the Indo-Pacific Region. Policy Exchange. Report by Policy Exchange’s Indo-Pacific Commission, London, 2020.

HYDE-PRICE, Adrian. European Security in the Twenty-First Century: The Challenge of Multipolarity. London: Taylor & Francis Group, 2007.

JONES, Dustin. Why A Submarine Deal Has France At Odds With The U.S., U.K. And Australia. NPR News. September 19, 2021. Disponível em: https://www.npr.org/2021/09/19/1038746061/submarine-deal-us-uk-australia-france Acesso em 03 out. 2021.

LUNN, Jon; MILLER, Vaughne; SMITH, Ben. British foreign policy since 1997. Research Paper 08/56. House Commons Library. 23 June 2008.

MAO, Frances. Aukus: Australia’s big gamble on the US over China. Sydney, British Broadcast Corporation. 22 September. Disponível em: https://www.bbc.com/news/world-australia-58635393 Acesso em: 30 set. 2021.

MCCLURE, Tess. Aukus submarines banned from New Zealand as pact exposes divide with western allies. New Zealand, The Guardian, 16 set. 2021. Disponível em https://www.theguardian.com/world/2021/sep/16/aukus-submarines-banned-as-pact-exposes-divide-between-new-zealand-and-western-allies Acesso em 01 out. 2021.

UNITED KINGDOM. Integrated Review of Security, Defence, Development and Foreign Policy. CP 403. Presented to Parliament by the Prime Minister by Command of Her Majesty. 16 March 2021.

 

Estabilização vs Reconstrução: os problemas da intervenção internacional no Afeganistão

 

Beatriz Guilherme Carvalho*

Texto publicado originalmente em: Estadão.

Após a decisão de retirar suas tropas do Afeganistão, os Estados Unidos abriram caminho para o avanço do Talibã sobre o território e, em última instância, a tomada de poder pelo grupo, em 15 agosto de 2021. Este evento ilustra o fracasso da operação militar no país ao longo dos últimos vinte anos, de modo que nos resta a seguinte pergunta: o que explica esse fracasso? Ou melhor, quais variáveis nos ajudam a compreender as principais falhas da intervenção internacional em nome da paz no Afeganistão?

Entrando na década de 2000, após inúmeras falhas nos processos de paz anteriores, as Nações Unidas reconheceram o imperativo de práticas de reconstrução e estabilização para a sustentabilidade dos esforços empregados ao longo das intervenções (BRAGA, MATIJASCIC, 2019). Mais especificamente em relação à operação de construção da paz em situações pós-conflito (post-conflict peacebuilding), os processos de construção do Estado, reforma do setor de segurança (RSS) e desarmamento, desmobilização e reintegração (DDR) contribuem para os objetivos centrais: consolidar a paz, evitar a reincidência do conflito e promover o desenvolvimento (SEDRA, 2003).

Dessa forma, a proposta aqui é observar o período entre 2001 e 2014, sublinhando os erros nas estratégias adotadas pelos EUA e pela comunidade internacional como um todo; e os problemas no processo de reconstrução, levando em consideração as três práticas supracitadas que são essenciais para o sucesso da operação de construção da paz.

Em 2001, a intervenção pelo exército estadunidense tinha como objetivo eliminar a Al-Qaeda e o Talibã. Com a rápida vitória sobre a rede terrorista e a oposição do presidente George W. Bush à implementação de iniciativas de reconstrução no país, os EUA optaram por estratégia “pegada leve” (light footprint). As Nações Unidas concordaram com esse posicionamento, a fim de evitar que a operação se assemelhasse à ocupação soviética que ainda alimentava o ressentimento e a resistência da sociedade afegã (GOSSMAN, 2009).

Entretanto, essa abordagem leve se mostrou negligente. Em primeiro lugar, as forças internacionais de assistência à segurança ficaram restritas às áreas urbanas do país, falhando em garantir as condições de segurança necessárias à realização de projetos de reconstrução e desenvolvimento, sobretudo nas regiões do interior, onde os Talibãs remanescentes se aproveitaram do vácuo político e de segurança e fortaleceram-se. E, em segundo lugar, a falha dessa abordagem esteve também em não aproveitar a janela de oportunidade ideal para a implementação do processo de reconstrução do país. A priorização dos interesses de segurança ocidentais em detrimento das necessidades locais colocou o objetivo de construção do Estado afegão em segundo plano (GOSSMAN, 2009; PARIS, 2013).

Não obstante a ONU ter assumido a dianteira do processo de reforma institucional do Afeganistão, ele fracassou desde o início, com as negociações em Bonn. A conferência de 2001 não contou com a presença do Talibã e, por isso, o acordo resultante não é tido como um acordo de paz. Além disso, os principais líderes da Aliança do Norte influenciaram as decisões ao longo da conferência, opondo-se à realização de práticas reformistas e de desarmamento, de modo que o Acordo de Bonn não incluiu diretrizes ou cronogramas para programas de RSS e DDR. E, ao final das negociações, esses indivíduos, também conhecidos como senhores de guerra, asseguraram cargos-chave na nova administração e, principalmente, no setor de segurança, contrariando o princípio de Justiça Compensatória (Transitional Justice) – que visa punir transgressores de direitos humanos, a fim de construir a confiança da população no governo central (GOSSMAN, 2009).

Somente em 2003, após outras conferências entre as nações-doadoras, um projeto de RSS e DDR foi desenhado, o ANBP (Programa Novos Começos do Afeganistão). Com as duas iniciativas fortemente interligadas pelo programa, a desmobilização esteve voltada à reconstrução das forças de segurança nacionais e, por isso, negligenciou a participação de grupos armados ilegais. Estes só foram tratados pelo programa de Dissolução de Grupos Armados Ilegais (DIAG), a partir de 2005. No entanto, ambos falharam na etapa mais importante do processo de DDR: a reintegração. Dada a incapacidade das forças armadas afegãs absorverem todos os ex-combatentes e a falta de alternativas em empregos e meios de sobrevivência, muitos indivíduos foram remobilizados por grupos armados ilegais (BHATIA, MUGGAH, 2008; THRUELSEN, 2006).

A partir de 2006, diante das campanhas de retorno do grupo, o exército dos EUA optou por uma nova abordagem: combate à insurgência (COIN). A princípio, ela concentrou-se no enfrentamento da rede terrorista no Afeganistão e, para isso, aprofundou as alianças estabelecidas anteriormente com senhores de guerra e milícias, como forma de facilitar o avanço sobre o território. A participação das forças armadas afegãs não era uma opção confiável, uma vez que sua reconstrução não era o objetivo central do exército norte-americano.

A consequência dessa nova estratégia, porém, foi a continuidade do conflito e o aumento dos níveis de violência e insegurança, constituindo um cenário inviável à implementação de projetos de reconstrução e desenvolvimento. De fato, o período até 2008 não apresentou novidades em termos de RSS e DDR, mas sim retrocessos, como rearmamento de civis e milícias e remobilização de ex-combatentes, particularmente por grupos armados ilegais associados às tropas internacionais (DERKSEN, 2014; GOODHAND, HAKIMI, 2014; GOSSMAN, 2009).

Já em 2009, as circunstâncias indicavam o fracasso da intervenção no Afeganistão e o apoio pela presença internacional no país diminuiu (JALALI, 2009). Ainda assim, o presidente Barack Obama optou pelo envio de um maior contingente militar e civil e pela ampliação da abordagem COIN, concentrando-se na insurgência de quaisquer grupos armados ilegais (MARSH, 2014). Ao mesmo tempo, Obama estabeleceu o prazo para a retirada das tropas até 2014, delimitando um período curto entre a chegada das novas tropas e o término da operação. Isso gerou uma dinâmica bastante acelerada e inadequada à implementação de projetos de reconstrução e desenvolvimento, bem como à conclusão da transição da responsabilidade sobre a segurança do país ao governo afegão – o qual ainda carecia de robustez institucional e capacidade orçamentária (COBURN, 2016; MCCRISKEN, 2012; PARIS 2013).

Por fim, em 2014, diante do prazo estabelecido para encerramento da missão e da realização de novas eleições presidenciais, o cenário no Afeganistão era de incerteza acerca do futuro. Até então, a intervenção internacional havia adotado estratégias desconectadas das necessidades da população e do governo local. Na verdade, as iniciativas implementadas eram orientadas muito mais por seus cronogramas do que pela criação de condições adequadas que permitiriam a saída responsável das tropas estrangeiras (CLEARY et al, 2016; QUIE, 2018).

Além disso, o processo de construção da paz foi conduzido sem um acordo que vinculasse todas as partes interessadas politicamente, particularmente o Talibã.  Quase duas décadas depois do início da intervenção militar, os EUA, sob o governo de Donald Trump, firmaram um acordo com o grupo. No entanto, mais uma vez, para ambas as partes, a pauta central era o prazo (e não a garantia de condições de segurança adequadas) para a retirada das tropas estrangeiras do país. Resolução que Joe Biden seguiu à risca, desocupando-se dos impactos que tal decisão teria sobre as negociações entre o governo afegão e o Talibã.

 

* Beatriz Carvalho é formada em Relações Internacionais pela Universidade Federal de Uberlândia (IERI-UFU). Redigiu sua monografia sobre a intervenção no Afeganistão e as variáveis que explicam o fracasso do processo de construção da paz no país.

Imagem: Marines no Afeganistão, Operação Moshtarak, 30/01/2010. Por Departamento de Defesa – Estados Unidos/ Wikimedia Commons.

 

Referências Bibliográficas:

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BRAGA, Camila de Macedo; MATIJASCIC, Vanessa Braga. Operações de Paz: Passado, Presente e Futuro. In: FERREIRA, Marcos Alan S. V.; MASCHIETTO, Roberta Holanda; KUHLMANN, Paulo Roberto Loyolla (Org.) Estudos para a Paz: Conceitos e Debates. São Cristóvão: Editora UFS, 2019, cap. 5.

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A escalada da violência contra crianças no Afeganistão

Leonardo Taquece*

Texto publicado originalmente em Le Monde Diplomatique Brasil

 

O mundo inteiro ficou em alerta quando o Talibã voltou à capital do Afeganistão, Cabul, no dia 15 de agosto. Contudo, as movimentações do grupo estavam acontecendo desde maio, quando reuniram 85 mil combatentes, de acordo com as estimativas da Otan — um número significativamente maior do que 20 anos atrás.

No mês de julho, o grupo já havia tomado metade do território nacional e, de acordo com relatório publicado em conjunto pelo escritório de direitos humanos da ONU (OHCHR) e a Missão de Assistência da ONU no Afeganistão (Unama), mais mulheres e crianças foram mortas e feridas na primeira metade de 2021 do que nos primeiros seis meses de qualquer ano desde que os registros começaram em 2009.

O Unicef soltou um comunicado de imprensa alertando para a rápida escalada de violações graves contra crianças, apontando que pelo menos 27 haviam sido mortas enquanto 136 ficaram feridas em apenas três dias. Esses números foram registrados em três províncias: Kandahar, Khost e Paktia; e o chefe de operações de campo, Mustapha Ben Messaoud, observou que é notável que há um “aumento muito significativo” das mortes infantis no Afeganistão nessas últimas quatro semanas.

Hoje, a estimativa do Unicef é de que uma em cada duas crianças menores de cinco anos no país sofre de desnutrição aguda grave — e com a falta de acesso a água potável e higiene nos acampamentos humanitários, o risco de cólera e outras doenças segue aumentando de forma exponencial. Além disso, a mais recente onda de infecção de Covid-19 já estava “matando 100 pessoas por dia […] e esses são apenas os casos que são contados”, o que aumentou ainda mais os riscos à vida dessas crianças.

Tendo em vista a situação humanitária e ecoando os temores internacionais sobre o impacto dos combates recentes sobre os civis, o porta-voz do Programa Mundial de Alimentos (PMA), Tomson Phiri, afirma que o conflito “acelerou muito mais rápido do que todos prevíamos e a situação tem todas as marcas de uma catástrofe humanitária”. É difícil enxergar quais raízes estão diretamente ligadas aos movimentos recentes de expansão do Talibã e quais violações já estavam estabelecidas nos últimos anos, mas é inegável o aumento da violência nos últimos meses trouxe consequências devastadoras.

Crianças foram deliberadamente alvejadas em pelo menos uma ocasião: um ataque no dia 8 de maio, em frente à escola Sayed ul-Shuhuda, na cidade de Cabul com mais de 300 vítimas civis, sendo a maioria delas meninas com menos de 18 anos. Totalizando 85 mortes, nenhum grupo assumiu a responsabilidade do ataque, mas tanto a Unama quanto a missão da ONU registraram o ressurgimento de ataques, assassinatos, maus-tratos, perseguição e discriminação nas comunidades afetadas pelos combates da expansão do Talibã desde sua reorganização.

À medida que os combates se intensificam, a Unama demonstrou estar particularmente preocupada com o aumento agudo no número de vítimas civis após 1º de maio, com quase o mesmo número de mortes dos quatro meses anteriores sendo registrado apenas no período de maio a junho. De acordo com o relatório, mulheres e crianças representaram quase metade de todas vítimas civis: 32% eram crianças (468 mortos e 1.214 feridos) enquanto 14% foram mulheres (219 mortas e 508 feridas). A trajetória assustadora desses números aponta para o impacto devastador do conflito sobre os civis.

Dessa forma, a escalada de violência no Afeganistão e suas consequências para as crianças ligam o alerta para um possível número sem precedentes de mortes este ano se a situação não se estabilizar. Por isso, é imprescindível acompanhar a resposta da comunidade internacional em relação à crise de deslocamento forçado que irá se intensificar nos próximos dias, da qual 80% dos quase 250.000 afegãos forçados a fugir desde o final de maio são mulheres e crianças. Com inúmeras vidas em risco, falar sobre a abertura de fronteiras é essencial.

Imagem: Crianças afegãs. Por: isafmedia, Kabul, Afghanistan/ Wikimedia Commons.

Leonardo Rodrigues Taquece é mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (Unesp, Unicamp, PUC-SP), membro do Grupo de Estudos em Defesa e Segurança Internacional (GEDES) e do Grupo de Estudos sobre a Infância nas Relações Internacionais (GeiRI), e do Núcleo de Pesquisas e Estudos em Direitos Humanos (NUPEDH).

A Grã-Bretanha Global e o HMS Defender no Mar Negro

João Vitor Tossini*

 

A concepção de sucessivos governos britânicos sobre a posição do Reino Unido como uma grande potência persiste apesar do período de declínio relativo que afetou o país após a Segunda Guerra Mundial. Com o fim da Guerra Fria, sucessivos governos em Londres buscaram reafirmar o Reino Unido como uma das lideranças do Ocidente e, consequentemente, como uma grande potência. O Governo Tony Blair (1997-2007) foi um dos expoentes desse objetivo de conservação e reafirmação de status, retomando o enfoque britânico na projeção de poder para além da Europa e empregando estas capacidades militares no Afeganistão, Iraque, Serra Leoa, dentre outros países (BROWN, 2010).

Apesar de variações políticas em cada novo governo, incluindo períodos de austeridade como no primeiro Governo David Cameron (2010-2015), todos concebiam o Reino Unido como uma grande potência – ou uma potência de primeira grandeza – e almejavam a conservação desse status. Em 2016, o Governo Theresa May (2016-2019) adota o termo “Grã-Bretanha Global” (Global Britain) como uma nova definição para a política externa britânica após o voto pela saída da União Europeia. O sucessor de Theresa May, Boris Johnson, incluiu a “Grã-Bretanha Global” como o centro de sua primeira Revisão de Defesa, indicando o compromisso do governo em expandir o engajamento britânico para além da União Europeia e do eixo euro-atlântico, além de apoiar aliados contra Estados considerados revisionistas, como a China e a Rússia (UNITED KINGDOM, 2021). Assim, a Grã-Bretanha Global simboliza a disposição do Reino Unido em adotar um novo meio de se reafirmar como uma grande potência e como uma das lideranças ocidentais, ainda que isso possa representar crescente oposição e atritos com China e Rússia, como observado nas recentes incursões navais britânicas no Mar Negro.

O HMS Defender no Mar Negro 

Nesse contexto, em 23 de junho de 2021, um contratorpedeiro (destroyer) da Marinha Real Britânica (Royal Navy), o HMS Defender, adentrou as águas territoriais disputadas da Crimeia, território ucraniano controlado pela Federação Russa desde 2014, visando exercer o princípio do direto de liberdade de navegação e demonstrar o apoio britânico à Ucrânia na questão do território em litígio. Segundo o Governo Britânico, o HMS Defender transitava pela rota mais curta entre a cidade portuária de Odessa, na Ucrânia, para Batumi, na Geórgia, sendo que o navio seguiria uma série de exercícios conjuntos com esses dois Estados. Durante um breve trecho dessa rota, a embarcação adentrou as águas territoriais da Crimeia que, para os britânicos e outras potências ocidentais, pertence aos ucranianos (GARDNER, 2021).

O contratorpedeiro britânico passou a poucos quilômetros da costa e de Sevastópol, local da principal base naval russa no Mar Negro, e foi o foco de avisos por parte de seus navios da guarda costeira e caças de combate, incluindo disparos de advertência. Apesar disso, Londres negou que o HMS Defender tenha sido alvo de disparos de advertência, indicando que a Rússia havia anunciado com antecedência a realização de treinamentos navais nas proximidades (BEALE, 2021; GARDNER, 2021).

No dia seguinte, outro incidente próximo ao mar territorial da Crimeia envolveu uma embarcação militar holandesa, o HNLMS Evertsen, que acompanhava o Defender no Mar Negro. Menos de uma semana após o incidente, em 28 de junho, ocorreu o início do exercício anual da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) no Mar Negro com a participação de todos os países costeiros da região, com exceção da Rússia – além da presença de Reino Unido, França, Itália, Estados Unidos, e outros países convidados (UNITED STATES, 2021).

Destaca-se que, diferentemente de outras incursões prévias da Royal Navy, a bordo do Defender havia um jornalista da principal estatal da mídia britânica, a British Broadcast Corporation (BBC), que foi a primeira fonte de informações sobre a questão no Reino Unido, indicando que Londres possuía interesse em deter o controle inicial da narrativa. Quatro dias após o episódio, documentos sigilosos do Ministério da Defesa britânico foram encontrados em uma estação de ônibus e divulgados pela mídia do país. Por meio desses documentos, torna-se possível indicar que o Governo Britânico realizou considerações prévias sobre as possíveis reações da Rússia ao deslocamento de navios da Royal Navy nas proximidades da Crimeia.

Segundo os documentos, oficiais militares e civis britânicos entendiam que o Reino Unido possuía duas opções no caso da rota do HMS Defender entre Odessa e Batumi: evitar as águas territoriais controladas por Moscou ou adotar o trajeto tradicional utilizado por embarcações militares antes da ocupação russa da Crimeia, o que envolvia um breve período nas águas territoriais contestadas. A primeira opção foi descartada pois a adoção de um “desvio” de rota foi interpretada pelos oficiais britânicos como uma demonstração de fraqueza relativa e de aceitação do controle russo do território ucraniano. Assim, Londres optou pela segunda alternativa apesar das possíveis reações das forças russas (ADAMS, 2021).

O Reino Unido após o Brexit: a periferia europeia e a OTAN

Nota-se que o episódio envolvendo o HMS Defender nas proximidades da Crimeia ocorre em um período em que o Reino Unido busca reforçar seu papel na OTAN após a sua saída da União Europeia (processo que ficou popularmente conhecido como Brexit). A inclusão da Ucrânia nos mecanismos de cooperação da OTAN é apoiada por Londres desde a anexação russa da Crimeia, sendo o Reino Unido, ao lado dos Estados Unidos, um dos membros da Organização mais engajados com a Ucrânia no âmbito da Defesa e Segurança. Desde 2015 o Reino Unido possui operações militares destinadas ao treinamento das forças ucranianas na medida em que adota um posicionamento para o avanço do processo de integração da Ucrânia como membro da OTAN (UNITED KINGDOM, 2020). A Declaração dos Chefes de Estado e de Governo da OTAN do início de junho de 2021 confirmou planos para o avanço desse processo, cabendo ao Governo Ucraniano a decisão final sobre sua relação com a organização quando os requisitos para alcançar o status de membro forem alcançados (NATO, 2021).

Simultaneamente, o incidente no Mar Negro ocorreu poucos meses após a divulgação da Revisão Integrada de Segurança e Defesa, na qual Londres aponta a Rússia como a principal ameaça estatal ao Reino Unido, seguida pela China, e destaca que busca maior engajamento com países do Leste Europeu, incluindo a Ucrânia (UNITED KINGDOM, 2021, p. 60). Os documentos sigilosos divulgados pela mídia britânica aparentam reforçar o entendimento de que o Reino Unido possui uma percepção mais sensível em relação à Rússia do que à China.  Isso ocorre quando oficiais civis e militares britânicos indicam que o governo de Joe Biden ainda apresenta “muita continuidade” em relação ao foco no Indo-Pacífico e na China (ADAMS, 2021).

Em adição, entre maio e julho de 2021 um Grupo de Ataque a partir de Porta-Aviões (Carrier Strike Group) britânico esteve presente no Mar Mediterrâneo como parte do deslocamento inaugural da nova classe de porta-aviões da Royal Navy. Em julho, o Grupo avançou para o Indo-Pacífico, visando realizar exercícios com parceiros do Reino Unido, incluindo a Austrália, a Malásia, o Japão e os Estados Unidos. Destaca-se que o HMS Defender constitui parte da escolta de superfície do porta-aviões britânico, o HMS Queen Elizabeth, que é o centro dessa formação naval de projeção de poder. Enquanto a parte principal do Grupo realizava reabastecimento no Chipre, local de dois enclaves ultramarinos do Reino Unido, o Defender foi enviado ao Mar Negro, visitando a Ucrânia e a Geórgia, e outras embarcações participariam de missões diplomáticas e exercícios militares com Israel, Chipre, Egito e Grécia (MEDITERRANEAN, 2021).

Dentre essas missões, a visita do Defender à Ucrânia resultou em um acordo que expande a cooperação do país no âmbito da Defesa com o Reino Unido. O acordo inclui a construção de duas bases navais por parte de empresas britânicas para uso ucraniano, venda de sistema de mísseis e outros armamentos, treinamento e a compra de duas embarcações anti-minas da Royal Navy, além de oito navios rápidos de lançamento de mísseis (fast missile warships). Por fim, a indústria de Defesa britânica liderará os planos de desenvolvimento das novas fragatas ucranianas, a principal plataforma de superfície operada pela Marinha da Ucrânia. Entende-se que este ponto abre a possibilidade de exportação da nova classe Type 31 de fragatas britânicas, ou de similares projetos baseados nessa classe, elaborada especialmente visando exportações. Os recursos financeiros para a realização do acordo, que ultrapassam 1,25 bilhão de libras, serão fornecidos ao Governo em Kiev pela agência estatal de empréstimos e financiamentos do Reino Unido, a UK Export Finance (UNITED KINGDOM, 2021a), demonstrando a disposição britânica em expandir a sua influência e atuação político-militar na região.

Dentre os tópicos acordados mencionados anteriormente, destaca-se a construção de duas bases navais para a marinha ucraniana. Considerando que uma dessas bases será construída no Mar de Azov – entre a Crimeia, a Rússia e a Ucrânia – é reforçado o entendimento de que o Reino Unido busca contestar a presença russa na Crimeia ao passo que estabelece novos laços com Estados da periferia europeia e reforça seu papel como uma das principais forças de liderança da OTAN na Europa. Esta concepção é sustentada quando considerados os anseios do Governo Britânico para o avanço do seu projeto de uma “Grã-Bretanha Global” no âmbito diplomático-estratégico.

Como mencionado anteriormente, o projeto Grã-Bretanha Global almeja, dentre outras questões, maior engajamento com parceiros para além da União Europeia, a consolidação do país como a principal potência militar europeia da OTAN e o “retorno” de sua atuação estratégica no Indo-Pacífico, acompanhado pela expansão de sua presença e atuação militar ultramarina focada nas suas capacidades aeronavais (UNITED KINGDOM, 2021). Em suma, esse projeto busca encerrar o que o primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, intitulou de a “era do recuo” (BEALE, 2021a) do pós-Segunda Guerra Mundial, período marcado pelo fim do Império Britânico e a redução da presença global do Reino Unido.

Assim, o caso da Ucrânia apresenta-se como uma das iniciativas bilaterais iniciadas por Londres para fortalecer sua posição internacional pós-Brexit, sendo o acordo firmado a bordo do HMS Defender um complemento ao Acordo de Parceria Comercial anglo-ucraniano firmado em 2020 – que visa expandir o acesso de produtos primários ucranianos ao mercado britânico, reduzindo a dependência do Reino Unido de importações de alimentos da União Europeia (TOMS, 2020). Entretanto, ainda que o Brexit tenha reforçado a posição do Reino Unido sobre a centralidade da OTAN e estimulado maior engajamento com outros Estados, sucessivos governos britânicos tradicionalmente mantiveram posição similar. O Brexit apresenta-se como um fator que reforçou a concepção do Reino Unido sobre a centralidade da OTAN na segurança europeia e como um meio do país manter um papel relevante no continente para seus aliados, incluindo os Estados Unidos.

Nesse contexto, o incidente envolvendo o Defender ocorreu logo após o anúncio por parte do governo russo, no final de março de 2021, sobre a imposição de áreas de exclusão a navios estrangeiros em determinados locais do Mar Negro, incluindo as águas nas proximidades da Crimeia e na entrada ao Mar de Azov, local de uma das futuras bases navais ucranianas construídas pelos britânicos. Logo, a rota adotada pela embarcação da Royal Navy simbolizou a ausência de reconhecimento por parte do Reino Unido e da OTAN sobre as reivindicações russas de soberania sobre a Crimeia e a preponderância de Moscou sobre o Mar Negro. O incidente é parte de uma estratégia empregada por outros membros da OTAN desde a anexação da Crimeia pela Rússia em 2014. Acompanhada pela crescente presença militar, cooperação e treinamentos conjuntos com a Ucrânia e a Geórgia, essa estratégia é caracterizada pelas demonstrações de não-reconhecimento da soberania russa, como a realizada pelo Defender, e pela rotatividade de embarcações das marinhas da Organização no Mar Negro, especialmente dos Estados Unidos, do Reino Unido e da França, na tentativa de manter uma presença constante na área (EGGERT, 2021).

O crescimento de exercícios militares e da presença naval de membros da OTAN na região contribui para a adoção dos padrões da Organização por parte da Marinha Ucraniana e reduz a possibilidade da repetição de episódios de tensão entre esta força e a Marinha Russa. Neste caso, destaca-se que um episódio de confrontação ocorreu em 2018 e resultou na apreensão de três navios militares ucranianos por parte da frota russa. A diferença das ações russas derivadas das tensões envolvendo as forças navais da Ucrânia em 2018 e as resultantes da incursão britânica em 2021 destaca o peso ligado às capacidades diplomático-militares do Reino Unido e da OTAN. Apesar da aparente tensão enquanto o Defender navegava nas águas territoriais da Crimeia (BEALE, 2021), o comportamento russo em relação aos membros da Organização apresenta-se significativamente mais contido do que em relação à Ucrânia. Apesar da retórica oficial de Moscou após a passagem do HMS Defender incluir ameaças aos futuros deslocamentos navais britânicos nas proximidades da Crimeia, entende-se que as maiores capacidades diplomático-militares do Reino Unido e da OTAN em relação aos ucranianos contribuíram para que as reações russas imediatas fossem mais comedidas.

Dessa forma, o interesse de Kiev na continuidade da aproximação com a OTAN e com o Reino Unido pode ser aprofundado por demonstrações similares às realizadas pela Royal Navy. Como constatado pelos documentos sigilosos do Governo Britânico, a adoção da rota pelo mar territorial da Crimeia seria uma excelente “oportunidade” para demonstrar o interesse do Reino Unido em restaurar a integridade territorial da Ucrânia, ainda que fosse necessário gerar novos atritos com a Rússia (ADAMS, 2021). Considerando o enfoque renovado de Londres na OTAN para a cooperação em Defesa, a inclusão da Ucrânia nesta organização estaria alinhada com os interesses geoestratégicos britânicos que, dentre outras questões, possuem na Rússia a principal percepção de ameaça imediata ao Reino Unido.

A Grã-Bretanha Global no Mar do Sul da China

 Por fim, ainda que o Governo Britânico tenha colocado maior ênfase na Rússia como competidora imediata, a China encontra-se como um dos principais desafios estratégicos identificados pela Revisão Integrada de Segurança e Defesa (UNITED KINGDOM, 2021). Neste ponto, a própria presença temporária do HMS Defender no Mar Negro e o restante do Carrier Strike Group no Mediterrâneo possui como principal objetivo operacional de seu deslocamento inaugural contestar a crescente preponderância chinesa no Mar do Sul da China. Assim, o Defender, em conjunto com os outros nove componentes navais do Strike Group, realizará incursões próximas aos territórios insulares reivindicados pela China na região como demonstração de não reconhecimento das reivindicações chinesas e como exercício de livre-navegação.

Acompanhando esse grupo desde sua partida da costa britânica, há um navio da Marinha dos Estados Unidos, o USS The Sullivans, e o HNLMS Evertsen da Marinha Real Holandesa (Royal Netherlands Navy), sendo que este último esteve com o Defender no Mar Negro em junho de 2021 (ALLISON, 2021). A presença de ao menos uma embarcação dos Estados Unidos e um aliado europeu membro da OTAN no deslocamento naval do Reino Unido contribui para o fortalecimento da posição britânica na contestação da posição chinesa ao demonstrar que Londres atua com o suporte direto de Washington e de outros aliados atlânticos.

Assim, o enfoque do Reino Unido por meio do Strike Group está na demonstração de sua capacidade em projetar poder em escala global e na apresentação aos seus aliados regionais do crescente engajamento britânico no Indo-Pacífico, caracterizado pela oposição às reivindicações regionais da China. Dentre os laços no aspecto da Defesa regional mantidos por Londres destacam-se os Cinco Acordos de Força de Defesa (Five Power Defence Arrangements) em conjunto com Singapura, Malásia, Austrália e Nova Zelândia. Originalmente estabelecidos para a defesa da Malásia e Singapura, esses acordos visam a consulta mútua em caso de uma das partes ser atacada militarmente. Tendo exercícios militares realizados de forma anual por meio dos Cinco Acordos, a presença do Strike Group marca a celebração dos 50 anos da organização em 2021 (ALLISON, 2021). Além disso, a incursão britânica no Mar do Sul da China pode ser vista como uma forma de Londres indicar estar disposta a apoiar atos similares dos Estados Unidos, contribuindo para a conservação da “relação especial” com Washington.

Logo, apesar de inserido dentro da reorientação do Reino Unido para além da União Europeia, o incidente envolvendo o HMS Defender pode ser entendido como um ensaio prévio e em menor escala quando comparado ao deslocamento similar que o Governo Britânico pretende realizar de forma regular a partir de 2021 no Mar do Sul da China. Na percepção de Londres, a Rússia permanece como a principal ameaça estatal ao Reino Unido, contudo, os anseios de uma Grã-Bretanha Global indicam que a expansão da atuação do país em regiões como o Indo-Pacífico colocam o Reino Unido crescentemente em oposição à China. As tensões renovadas com a Rússia e a disposição em testar a China em condições similares indicam que a Grã-Bretanha Global representa uma nova forma do Reino Unido se reafirmar como uma grande potência e como uma das lideranças ocidentais na oposição aos anseios político-territoriais da Rússia e da China.

* João Vitor Tossini é doutorando em Relações Internacionais pelo PPGRI San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP, PUC-SP).

Imagem: O HMS Defender da Royal Navy. Por: Royal Navy/Defence Images/Wikimedia Commons.

 

Referências

BEALE, Jonathan. HMS Defender: Russian jets and ships shadow British warship. British Broadcast Corporation (BBC). 23 June 2021. Disponível em: <https://www.bbc.com/news/world-europe-57583363> Acesso em: 8 jul. 2021.

BROWN, David. The Development of British Defence Policy: Blair, Brown and own and Beyond. Burlington, VT: Ashgate Publishing Company, 2010.

EGGERT, Konstantin. Opinion: Why Putin and NATO are facing off on the Black Sea. Deutsch Welle. 24 June 2021. Disponível em: <https://www.dw.com/en/opinion-why-putin-and-nato-are-facing-off-on-the-black-sea/a-58038554> Acesso em: 10 jul. 2020.

ADAMS, Paul. Classified Ministry of Defence documents found at bus stop. 27 June 2021. British Broadcast Corporation (BBC). Disponível em: <https://www.bbc.com/news/uk-57624942> Acesso em 12 jul. 2021.

ALLISON, George. British Carrier Strike Group to sail through South China Sea. UK Defence Journal. April 28, 2021. Disponível em: <https://ukdefencejournal.org.uk/british-carrier-strike-group-to-sail-through-south-china-sea/> Acesso em: 15 jul. 2021.

GARDNER, Frank.  HMS Defender: What will be the fallout from Black Sea incident? British Broadcast Corporation (BBC). 23 June 2021. Disponível em: <https://www.bbc.com/news/world-europe-57589366> Acesso em: 8 jul. 2021.

NATO. Brussels Summit Communiqué: Issued by the Heads of State and Government participating in the meeting of the North Atlantic Council in Brussels 14 June 2021 Press Release 086, Issued on 14 Jun. 2021. Disponível em: <https://www.nato.int/cps/en/natohq/news_185000.htm?selectedLocale=en> Acesso em 13 jul. 2021.

MEDITERRANEAN interlude – the Carrier Strike Group on its defence diplomacy mission. Navy Lookout. July 5, 2021. Disponível em: <https://www.navylookout.com/mediterranean-interlude-carrier-strike-group-on-defence-diplomacy-mission/> Acesso em 8 jul. 2021.

TOMS, Bate C. Britain and Ukraine unveil new strategic partnership. Atlantic Council. 13 Oct. 2020. Disponível em: <https://www.atlanticcouncil.org/blogs/ukrainealert/britain-and-ukraine-unveil-new-strategic-partnership/> Acesso em: 10 jul. 2021.

UNITED STATES. US Navy. U.S. Sixth Fleet announces Sea Breeze 2021 participation. 21 June 2021. Disponível em: <https://www.navy.mil/Press-Office/News-Stories/Article/2664699/us-sixth-fleet-announces-sea-breeze-2021-participation/> Acesso em 8 jul. 2021.

UNITED KINGDOM. Ministry of Defence. Defence Secretary welcomes Ukraine receiving NATO Enhanced Opportunity Partner status. Published 12 June 2020. Disponível em: <https://www.gov.uk/government/news/defence-secretary-welcomes-ukraine-receiving-nato-enhanced-opportunity-partner-status> Acesso em: 13 jul. 2021.

UNITED KINGDOM. Integrated Review of Security, Defence, Development and Foreign Policy. CP 403. Presented to Parliament by the Prime Minister by Command of Her Majesty. 16 March 2021.

UNITED KINGDOM. Ministry of Defence. UK signs agreement to support enhancement of Ukrainian naval capabilities. 23 June 2021a. Disponível em: <https://www.gov.uk/government/news/uk-signs-agreement-to-support-enhancement-of-ukrainian-naval-capabilities> Acesso em: 10 jul. 2021.

 

Participação de atores humanitários em zonas de conflito: emergência e risco na Etiópia   

Beatrice Daudt Bandeira*

 

O governo central da Etiópia anunciou em 28 de junho de 2021 um “cessar-fogo unilateral” à uma escalada de hostilidades e violência que se estende desde novembro de 2020 no Tigré. A região foi destaque durante os últimos meses pelas ofensivas cometidas em consequência de disputas políticas e étnicas, principalmente entre os grupos oromo – o maior do país – e os tigrínios. O conflito teve início quando o governo do primeiro-ministro da Etiópia, Abiy Ahmed, no poder desde 2018, membro da etnia oromo – que já era suspeito de perseguição pela representação Tigré –, acusou a Frente de Libertação dos Povos do Tigré (FLPT), partido político que já desempenhou grande influência no país, de atacar e roubar equipamentos bélicos do governo central. A partir de então, foi deliberado o início de uma sequência de ofensivas militares entre os dois lados e suas forças aliadas – principalmente grupos de milícias e forças da Eritreia aliadas ao governo etíope.

A invasão do Tigré pelas forças de Abiy Ahmed em novembro de 2020 gerou preocupação entre diversos líderes mundiais, como António Guterres, Secretário-Geral das Nações Unidas e o Papa Francisco, além de organizações regionais como a União Africana – cujo acionamento do Conselho de Paz e Segurança foi rejeitado pelo próprio governo central da Etiópia, que faz parte da organização e é membro do Conselho, sob o argumento de ferir sua soberania nacional. No Conselho de Segurança das Nações Unidas as discussões também não resultaram em decisão comum entre os Estados membros para qualquer ação efetiva sobre o que acontece entre os grupos beligerantes.

Em poucos meses, o conflito entre o governo etíope e a FLPT resultou em uma crise de larga escala. São mais de 350 mil pessoas em situação catastrófica de fome, milhares de refugiados etíopes, que se abrigam principalmente no Sudão, e assassinatos de civis. De forma a agravar ainda mais este cenário, entre novembro de 2020 e abril de 2021, período de maior intensificação do conflito, o acesso de trabalhadores humanitários às vítimas esteve constantemente restringido, principalmente pelo governo etíope. A restrição de funcionamento das redes de comunicação (principalmente internet e telefone) na província do Tigré ainda é, nos dias de hoje, mais uma problemática para as operações humanitárias.

O temor de episódios de violência e de se expor a esta situação de insegurança são fatores também prejudiciais para as atividades de atores humanitários no conflito. No dia 25 de junho, por exemplo, a organização Médicos Sem Fronteiras (MSF) foi alvo de ataques que resultaram na morte de três de seus colaboradores na região do Tigré. Outro exemplo aconteceu em 28 de junho contra as instalações do Unicef na cidade de Mekele, capital da província do Tigré. Esse tipo de violência evidencia o risco para trabalhadores humanitários na região; a perda de alcance dos serviços prestados, com foco no bem-estar da população vulnerável; e a limitação do potencial de um mapeamento mais extenso que permitiria, em outras circunstâncias, uma melhor compreensão da realidade em todo o território.

Além do MSF e do Unicef,  o trabalho de atores humanitários internacionais na região – como o Comitê Internacional da Cruz Vermelha e o Escritório das Nações Unidas para a Coordenação de Assuntos Humanitários, dentre outros – se traduz em atividades de atendimento e proteção do bem-estar da população necessitada. Para que isso aconteça, portanto, é fundamental evitar e responder ao sofrimento humano; atuar de forma ética perante as consequências diretas do conflito sem discriminação de gênero, raça, etnia, religião, ou qualquer outra distinção; e não estar sujeitos aos arranjos de teor político, econômico, militar, ou outros interesses diretos no conflito, que não o de salvar vidas.

Por outro lado, mesmo que sejam essas as expectativas de impacto positivo que podem surgir da ajuda humanitária internacional, o desprezo dos grupos beligerantes – grupos ofensivos estatais e não-estatais – às normas do Direito Internacional Humanitário, no Tigré, leva o debate para outro rumo. Mostra que, durante o período de maior iminência de hostilidade, para quem deliberou sobre os ataques e esteve à frente das ofensivas, a proteção de civis não foi uma prioridade. Logo, o acesso irrestrito de organizações humanitárias ao território da região do Tigré, a segurança dos trabalhadores humanitários e a proteção de civis passaram ao largo da preocupação vital no conflito.

Desde o início da guerra, os ataques deliberados contra civis tornaram a situação humanitária ainda mais preocupante. O Tigré fica na região mais ao norte da Etiópia, fazendo fronteira com o vizinho Eritreia, que enxergava a FLPT há tempos como uma ameaça potencial. De forma a complicar ainda mais as tensões, a participação de forças militares da Eritreia, aliada ao governo do etíope Abiy Ahmed – que ganhou o Nobel da Paz em 2019 justamente por contribuir para as negociações de paz entre os dois países -, no caso do Tigré, ocasionou uma escalada de acusações sobre seu envolvimento em violência e violações de direitos humanos, incluindo assassinatos, agressões sexuais e morte por fome de civis na região.

Diante da crise instalada, é impensável desviar a atenção dos oito meses de violência constante contra civis e bloqueio de rotas para abastecimento e fornecimento de ajuda humanitária. Com todos estes fatores, a questão agora é saber se os responsáveis pelas atrocidades e graves violações dos direitos humanos e humanitário, incluindo os ataques violentos contra representações de ajuda internacional, serão devidamente denunciados e investigados pelos órgãos internacionais. Finalmente, mesmo depois que as forças do Tigré retomaram o controle de Mekele e após o anúncio de cessar-fogo e a retirada das tropas do governo central, o cenário ainda é frágil e longe do fortalecimento da paz e das relações entre adversários.

 

Imagem: USAID promove campanha no Tigré. Por: USAID/Wikimedia Commons.

* Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (UNESP – Unicamp – PUC-SP) e pesquisadora do Grupo de Defesa e Segurança Internacional (GEDES). Contato: beatricedaudtb@gmail.com

Haiti e a violência política

Vanessa Braga Matijascic*

 

O recente assassinato do presidente Jovenel Moïse, em 07 de julho de 2021, despertou a atenção sobre o que poderia ter acontecido no cenário político do país após anos de Missão das Nações Unidas no Haiti (MINUSTAH, 2004-2017). Nova afronta contra a democracia no país? Gangues que queriam demover o presidente do poder? Intervencionismo externo com planejamento de assassinato? Todas as perguntas levantadas são pertinentes quanto a compreensão do cenário atual, tendo o passado político do Haiti como um movimento cíclico de retorno da violência em diversas plataformas.

Há algumas décadas, o país é rota do tráfico internacional de ilícitos, em específico, cocaína[1], o que já rendeu a parceria de autoridades haitianas com o órgão dos Estados Unidos Drug Enforcement Administration (DEA)[2] em medidas recalcitrantes quanto ao combate de entorpecentes. Tal cenário é semelhante a outros países da América Central, quando a desigualdade econômica e instabilidade política de mais de um século assolam o quadro social e alimentam a rede sedenta do crime organizado por novas colaborações. Com a ausência de profundas mudanças na superação da pobreza, reflete-se o ciclo recorrente de foco internacional ao combate de ilícitos, ao invés de promover cooperação internacional para o desenvolvimento econômico no país. O Haiti, tem baixo índice de desenvolvimento humano (IDH), e ocupa a posição 170 do ranking mundial. No último relatório do PNUD de 2020[3], o Haiti está nesse patamar conjuntamente com outros países africanos, sendo muitos deles países que também receberam operações de paz da ONU: Uganda (159), Ruanda (160), Malaui (174), República Democrática do Congo (175), Libéria (175), Mali (184), Burundi (185), República Centro-africana (188), como alguns exemplos.

Por intermédio do critério de doadores internacionais de que houvesse o mínimo de segurança no país, diversos projetos foram desenvolvidos no transcorrer do mandato da MINUSTAH. Mas, o que faz do Haiti um país peculiar quanto a realidade latino-americana? Certamente, é um dos poucos de colonização francesa e o único que conquistou independência em 1804, sendo conhecida por uma bem sucedida revolta de haitianos escravizados no período colonial que conseguiu vencer até mesmo tropas mercenárias contratadas pela França napoleônica. Em que pese intervenções militares, a primeira foi a dos Estados Unidos no século XX, feita por marines que estiveram na administração da ilha de 1915 a 1934. Tal momento fez eclodir o movimento social negritude, de resgate as origens afro-descentes populares haitianas, na compreensão de que a presença estrangeira não era desejada. A herança desse período foi a articulação popular contra a elite eleita pelos marines pra entrelaçar interesses privados estadunidenses com os da elite haitiana. Na construção desse tecido social já rompido, a Constituição foi redigida por Franklin Delano Roosevelt[4] e foram treinados militares que não se ativeram aguerridamente à defesa nacional, mas sim a preservar interesses da elite haitiana associada aos interesses privados estadunidenses. Semelhante a outros países centro-americanos, militares fariam o papel de manutenção da ordem interna. Mesmo com a gestão retoricamente defensora da liberalização de regimes autoritários na América Latina, como foi o caso da gestão americana de Carter (1977-1981), os duvalieristas[5] (1957-1986) conduziram a política centralizadora e não-revolucionária no país, e receberam a missão internacional para preparar militares para reprimir revoltas sociais: os Leopard Corps[6] . Ironicamente, a repressão social não foi contida e as revoltas populares cresceram. Entre os anos de 1986 e 1989, diversos golpes de Estado e violações de direitos humanos ocorreram. Tais movimentos foram acompanhadas pela OEA e ONU, já atuantes na América Central desde a segunda metade nos anos 1980. Após a experiência da verificação das eleições da ONU na Nicarágua (ONUVEN), uma missão internacional da OEA e ONU verificou as eleições na Haiti e declarou o primeiro presidente eleito da década de 1990, Jean-Bertrand Aristide.

O périplo haitiano em operações de paz da ONU se iniciou a partir do golpe de Estado que destituiu Aristide da presidência em setembro de 1991. Longas negociações conduziram a experiência da primeira, de muitas operações de paz da ONU dos anos 1990, que teriam como principal função treinar a primeira polícia civil do país, a Polícia Nacional Haitiana, após a dissolução das forças armadas do Haiti por decreto presidencial assinado por Aristide em janeiro de 1995. Anteriormente, o papel de polícia era feito por militares haitianos.

No transcorrer dos anos, as operações de paz tiveram que lidar com a violência provocada pelo crime organizado, a violência política, assassinatos e ondas de intimidação em períodos que precederam os dias de pleitos de cargos legislativos, municipais e presidenciais desta República parlamentarista, acarretando em violações de direitos humanos. A precisão do mandato da MINUSTAH, portanto, ocupou-se da continuidade de trabalhos das outras operações de paz, monitoramento da violação de direitos humanos e surpresas que assolaram o país em termos de catástrofes naturais.

Resolvidos os problemas em tantas missões internacionais? Certamente que não. E o assassinato do último presidente do Haiti entra para uma longa lista de líderes do país que não cumpriram o mandato nos séculos XIX e XX. Quais seriam os próximos passos? Aguardar pela apuração em andamento dos fatos sobre o assassinato, ver a convocação de novas eleições e aguardar para que o próximo presidente possa ter condições de governabilidade e tenha ímpeto e coragem para melhorar as condições de vida da população, sem a necessidade de solicitar ao Conselho de Segurança outra operação de paz.

 

* Vanessa Braga Matijascic é pesquisadora do Gedes, professora colaboradora no Programa de Pós-graduação em Ciência Política da Universidade de São Paulo e doutora em História pela UNESP-Franca. É autora do livro Haiti: segurança ou desenvolvimento no início dos anos 1990, Editora Appris, 2014, 132p. O livro é uma versão adaptada do resultado da pesquisa de mestrado, defendida no PPG RI San Tiago Dantas (UNESP/UNICAMP/PUC-SP), financiada pela CAPES 2006-2008 e disponível para leitura eletronicamente.

Imagem: Vista de Porto Príncipe. Por Elena Heredero, Wikimmedia Commons.

 

[1] SEITENFUS, Ricardo. Haiti: a soberania dos ditadores. Porto Alegre: Solivros, 1994.

[2] Haiti – Drug Trafficking: The Haitian Justice extraded Grégory Georges in the United States, disponível em: <https://www.haitilibre.com/en/news-27640-haiti-drug-trafficking-the-haitian-justice-extraded-gregory-georges-in-the-united-states.html>. Acesso em13 jul. 2021.

[3] Relatório de Desenvolvimento Humano 2020 (PNUD), disponível em: <http://hdr.undp.org/sites/default/files/hdr_2020_overview_portuguese.pdf>. Acesso em13 jul. 2021.

[4] Intervention in Haiti, disponível em: <https://www.digitalhistory.uh.edu/disp_textbook.cfm?smtid=2&psid=3163>. Acesso em13 jul. 2021.

[5] François Duvalier (1957-1971) foi o presidente que governou o país e consolidou uma guarda presidencial (Tonton Macoute) que, além de prover a segurança do presidente, perseguiu os opositores políticos. O presidente havia integrado o movimento negritude no período da intervenção dos marines e foi visto com simpatia pela população no momento de sua candidatura. Quando assumiu o mandato, revelou-se um ditador e assegurou que o sucessor da liderança do país seria seu filho, Jean-Claude Duvalier (1971-1986).

[6] Militares haitianos treinados com a assistência dos Estados Unidos para conter insurgências no Haiti e, principalmente, prover a segurança da família de Jean-Claude Duvalier. Não respondiam a subordinação das Forças Armadas do Haiti e também não eram da Tonton Macoute. A existência de tantas forças de segurança gerou ainda mais instabilidades e sucessivos golpes de Estado entre os anos 1986 e 1989.

 

Qual deve ser a face da ONU? – O 2º mandato de Guterres e as reivindicações por maior representatividade e democratização das Nações Unidas

Raquel Gontijo* 

O atual Secretário Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), António Guterres, cujo primeiro mandato se encerra em 31 de dezembro deste ano, foi renomeado pelo Conselho de Segurança (CSNU) e pela Assembleia Geral (AGNU) para cumprir um segundo mandato de 5 anos, de modo que ficará no cargo até o fim de 2026. Apesar de ter sido aclamado por unanimidade pelos 15 membros do CSNU, o que demonstra sua habilidade política na condução das atividades da organização, a renomeação de Guterres deixa insatisfeitos alguns movimentos da sociedade civil que reivindicam maior representatividade e democratização da ONU.

Os anos 2000 trouxeram uma “virada transnacional” nas estruturas de governança global, em um processo que, cada vez mais, permite a participação de atores da sociedade civil nos fóruns e organizações internacionais. Redes de advocacy como a Campanha Internacional para Banimento de Minas Terrestres (ICBL) e a Campanha Internacional para Proibição de Armas Nucleares (ICAN), por exemplo, ganharam grande visibilidade e alcançaram significativa capacidade de mobilização da opinião pública e de governos na promoção de agendas de governança em formato bottom-up, ou seja, a partir de demandas sociais. Essa crescente participação de atores da sociedade civil global nas estruturas de governança trouxe consigo novas pautas e reivindicações políticas, dentre as quais inclui-se uma demanda por maior transparência no processo de nomeação do Secretário Geral das Nações Unidas (SGNU).

Esse processo é tradicionalmente cinzento. Cabe ao CSNU indicar um candidato, que deve então ser aceito e nomeado oficialmente pela AGNU. Apesar de ser usual o uso da palavra “eleição”, não se trata de um processo exatamente eleitoral, mas de uma seleção feita tradicionalmente atrás dos panos, e sob forte influência das grandes potências, particularmente dos 5 membros permanentes do Conselho de Segurança (P5) – China, Estados Unidos, França, Reino Unido e Rússia. Até a década de 2000, era relativamente comum que não houvesse transparência a respeito de quais nomes estavam sendo cotados para o cargo até o momento em que o CSNU fizesse sua indicação oficial sendo sempre um nome considerado aceitável por todos os P5 que têm direito de veto no processo. A opacidade do processo levantou frequentemente suspeitas de acordos a portas fechadas e arranjos de quid pro quo entre as grandes potências. De fato, é notável o excesso de representação de alguns países entre os cargos de maior escalão do Secretariado da ONU. Assim, pessoas que desejem chegar às mais elevadas posições de liderança na ONU devem adotar uma postura alinhada aos interesses de alguns Estados específicos: atualmente, Estados Unidos, Rússia e China, em especial.

Diante disso, na década de 2010, uma campanha internacional para reforma desse processo “eleitoral” ganhou força a partir de movimentos da sociedade civil, como a rede de advocacy “1 por 7 bilhões”. Dentre as questões levantadas por esses movimentos, destacam-se as seguintes reivindicações:

  • Maior clareza nos critérios de nomeação do SGNU, fim dos acordos a portas fechadas, e maior representatividade nacional, étnica e de gênero nos cargos de alto escalão;
  • Alteração da duração do mandato de 5 para 7 anos, sem possibilidade de renomeação, de modo a evitar que o SGNU em exercício se renda às pressões dos P5 para buscar garantir um segundo mandato;
  • Envio pelo CSNU de mais de um candidato à AGNU, para que este órgão, que engloba todos os Estados membros das Nações Unidas com igual direito de voto, possa realmente eleger o Secretário Geral.

Em decorrência desses movimentos, em 2015 foi aprovada uma resolução na AGNU (69/321), que, dentre outras questões, tratou da promoção de maior transparência na nomeação do SGNU. Dentre as determinações dessa resolução, incluíam-se um apelo aos Presidentes da AGNU e do CSNU para abrir uma chamada para que os Estados membros possam indicar candidatos; divulgar amplamente os nomes das pessoas que estejam sendo consideradas para o cargo; promover diálogos e reuniões públicas com os candidatos; e buscar uma representação equilibrada em termos de gênero e distribuição geográfica. No entanto, algumas das principais reivindicações das redes de advocacy, como o fim da possibilidade de renomeação e a indicação de mais de um candidato pelo CSNU, para que possa haver de fato um processo eleitoral, sequer foram consideradas seriamente nos debates sobre a questão.

A despeito das limitações do documento, as determinações dessa resolução permitiram que o processo de seleção do SGNU em 2016 tivesse um caráter mais aberto a aparentemente democrático do que ocorria até então. Aquele foi o primeiro ano em que houve uma forma de “campanha eleitoral”, e os indivíduos indicados oficialmente por Estados membros apresentaram suas propostas e plataformas, e responderam a perguntas e questionamentos levantados tanto por representantes oficiais dos Estados quanto por grupos da sociedade civil. Ao fim do processo, António Guterres foi indicado pelo CSNU e nomeado pela AGNU para ocupar o cargo de Secretário Geral. Essa nomeação, apesar de bem recebida pela comunidade das Nações Unidas, foi também criticada por reproduzir os padrões tradicionais do alto escalão do Secretariado: homem, branco, europeu, de idade já avançada[1]. De fato, havia forte expectativa de que, em 2016, fosse eleita a primeira mulher para o cargo de SGNU, algo que havia sido sugerido na resolução 69/321 da AGNU, e em falas do Secretário Geral anterior, Ban Ki-Moon, e que parecia provável diante das fortes candidatas que foram indicadas no processo, como Helen Clark, ex-primeira-ministra da Nova Zelândia, e Christiana Figueres, importante liderança nas negociações do Acordo de Paris de 2015.

As questões levantadas no último processo eleitoral retornaram em 2021, quando a ONU iniciou a preparação para o fim do 1º mandato de Guterres. Mas, apesar dos aparentes avanços de 2016, o processo deste ano deixou muito a desejar perante os movimentos da sociedade civil e demonstrou um retorno aos tradicionais procedimentos pouco democráticos da organização. Apesar de algumas pessoas terem se colocado como candidatas informais do processo, e mobilizado bases de apoio de movimentos sociais, o único que obteve endosso oficial de um governo e, portanto, pôde concorrer oficialmente ao cargo foi o próprio Guterres. A campanha internacional Forward, por exemplo indicou Rosalía Arteaga, ex-presidente do Equador, como sua candidata, mas a política não obteve endosso oficial de nenhum Estado membro. O mesmo ocorreu com Arora Akanksha, jovem de 34 anos e auditora da ONU, cuja plataforma de campanha foi fortemente crítica da atual estrutura discriminatória e ineficiente do Secretariado da ONU e baseada na defesa não só de maior inclusão em termos de gênero, mas também de idade.

Sem dúvida, é possível afirmar que há insatisfação de movimentos sociais em relação ao perfil burocrático e político do Secretariado da ONU. Mas, a fim de brevíssima reflexão, cabe talvez questionarmos se uma reforma democrática dessas estruturas seria realmente desejável. Não há uma resposta simples ou correta para essa pergunta. Parece claro, por um lado, que crescentemente o termo “multilateralismo” tem sido empregado com conotações de inclusão e representatividade, de modo que as tendências recentes de maior participação social nos fóruns internacionais dificilmente poderão ser revertidas sem consequências graves para a legitimidade dessas instituições. Nesse sentido, é natural que os novos atores envolvidos nessas dinâmicas políticas demandem maior transparência e maior acesso de grupos diversos aos altos cargos da estrutura burocrática. No entanto, por outro lado, não à toa a estrutura da ONU foi concebida com um caráter assimétrico e discriminatório. Não é do interesse das maiores potências do sistema internacional participar de uma organização que não reflita as relações de poder que as beneficiam; ou seja, um Secretariado representativo, democrático e mais autônomo poderia ser uma ameaça à promoção dos objetivos de países como Estados Unidos, Rússia e China.

Em termos ideais, é inegável que democracia e representatividade são desejáveis. Contudo, em termos realistas, a sociedade internacional provavelmente não se beneficiaria de um esvaziamento do Sistema ONU, que poderia decorrer de reformas profundas em seus processos e do consequente afastamento das grandes potências. É evidente que a ONU falha em muitos sentidos. Mas, na ausência de uma alternativa realmente viável, ela ainda é uma das melhores ferramentas para a promoção da cooperação internacional em diversas áreas temáticas. E, para que a organização funcione bem, é indispensável a presença e participação dos Estados com maiores recursos de poder, de modo que é esperado que qualquer tentativa de reforma encontre forte resistência. Enfim, cabe à sociedade internacional como um todo, e à comunidade burocrática das Nações Unidas em particular, questionarem-se repetidamente: qual é a ONU que desejamos, e qual é a ONU que podemos ter?

[1] Dos 9 Secretários Gerais que tivemos até hoje, todos são homens, Guterres é o 4º europeu, e a média de idade no momento de nomeação é de 58 anos.

 

Raquel Gontijo é docente do Departamento de Relações Internacionais da PUC Minas e pesquisadora do GEDES.

Imagem: Nomeação de Guterres para segundo mandato como Secretário Geral. Por: UN Photo.