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Haiti e a violência política

Vanessa Braga Matijascic*

 

O recente assassinato do presidente Jovenel Moïse, em 07 de julho de 2021, despertou a atenção sobre o que poderia ter acontecido no cenário político do país após anos de Missão das Nações Unidas no Haiti (MINUSTAH, 2004-2017). Nova afronta contra a democracia no país? Gangues que queriam demover o presidente do poder? Intervencionismo externo com planejamento de assassinato? Todas as perguntas levantadas são pertinentes quanto a compreensão do cenário atual, tendo o passado político do Haiti como um movimento cíclico de retorno da violência em diversas plataformas.

Há algumas décadas, o país é rota do tráfico internacional de ilícitos, em específico, cocaína[1], o que já rendeu a parceria de autoridades haitianas com o órgão dos Estados Unidos Drug Enforcement Administration (DEA)[2] em medidas recalcitrantes quanto ao combate de entorpecentes. Tal cenário é semelhante a outros países da América Central, quando a desigualdade econômica e instabilidade política de mais de um século assolam o quadro social e alimentam a rede sedenta do crime organizado por novas colaborações. Com a ausência de profundas mudanças na superação da pobreza, reflete-se o ciclo recorrente de foco internacional ao combate de ilícitos, ao invés de promover cooperação internacional para o desenvolvimento econômico no país. O Haiti, tem baixo índice de desenvolvimento humano (IDH), e ocupa a posição 170 do ranking mundial. No último relatório do PNUD de 2020[3], o Haiti está nesse patamar conjuntamente com outros países africanos, sendo muitos deles países que também receberam operações de paz da ONU: Uganda (159), Ruanda (160), Malaui (174), República Democrática do Congo (175), Libéria (175), Mali (184), Burundi (185), República Centro-africana (188), como alguns exemplos.

Por intermédio do critério de doadores internacionais de que houvesse o mínimo de segurança no país, diversos projetos foram desenvolvidos no transcorrer do mandato da MINUSTAH. Mas, o que faz do Haiti um país peculiar quanto a realidade latino-americana? Certamente, é um dos poucos de colonização francesa e o único que conquistou independência em 1804, sendo conhecida por uma bem sucedida revolta de haitianos escravizados no período colonial que conseguiu vencer até mesmo tropas mercenárias contratadas pela França napoleônica. Em que pese intervenções militares, a primeira foi a dos Estados Unidos no século XX, feita por marines que estiveram na administração da ilha de 1915 a 1934. Tal momento fez eclodir o movimento social negritude, de resgate as origens afro-descentes populares haitianas, na compreensão de que a presença estrangeira não era desejada. A herança desse período foi a articulação popular contra a elite eleita pelos marines pra entrelaçar interesses privados estadunidenses com os da elite haitiana. Na construção desse tecido social já rompido, a Constituição foi redigida por Franklin Delano Roosevelt[4] e foram treinados militares que não se ativeram aguerridamente à defesa nacional, mas sim a preservar interesses da elite haitiana associada aos interesses privados estadunidenses. Semelhante a outros países centro-americanos, militares fariam o papel de manutenção da ordem interna. Mesmo com a gestão retoricamente defensora da liberalização de regimes autoritários na América Latina, como foi o caso da gestão americana de Carter (1977-1981), os duvalieristas[5] (1957-1986) conduziram a política centralizadora e não-revolucionária no país, e receberam a missão internacional para preparar militares para reprimir revoltas sociais: os Leopard Corps[6] . Ironicamente, a repressão social não foi contida e as revoltas populares cresceram. Entre os anos de 1986 e 1989, diversos golpes de Estado e violações de direitos humanos ocorreram. Tais movimentos foram acompanhadas pela OEA e ONU, já atuantes na América Central desde a segunda metade nos anos 1980. Após a experiência da verificação das eleições da ONU na Nicarágua (ONUVEN), uma missão internacional da OEA e ONU verificou as eleições na Haiti e declarou o primeiro presidente eleito da década de 1990, Jean-Bertrand Aristide.

O périplo haitiano em operações de paz da ONU se iniciou a partir do golpe de Estado que destituiu Aristide da presidência em setembro de 1991. Longas negociações conduziram a experiência da primeira, de muitas operações de paz da ONU dos anos 1990, que teriam como principal função treinar a primeira polícia civil do país, a Polícia Nacional Haitiana, após a dissolução das forças armadas do Haiti por decreto presidencial assinado por Aristide em janeiro de 1995. Anteriormente, o papel de polícia era feito por militares haitianos.

No transcorrer dos anos, as operações de paz tiveram que lidar com a violência provocada pelo crime organizado, a violência política, assassinatos e ondas de intimidação em períodos que precederam os dias de pleitos de cargos legislativos, municipais e presidenciais desta República parlamentarista, acarretando em violações de direitos humanos. A precisão do mandato da MINUSTAH, portanto, ocupou-se da continuidade de trabalhos das outras operações de paz, monitoramento da violação de direitos humanos e surpresas que assolaram o país em termos de catástrofes naturais.

Resolvidos os problemas em tantas missões internacionais? Certamente que não. E o assassinato do último presidente do Haiti entra para uma longa lista de líderes do país que não cumpriram o mandato nos séculos XIX e XX. Quais seriam os próximos passos? Aguardar pela apuração em andamento dos fatos sobre o assassinato, ver a convocação de novas eleições e aguardar para que o próximo presidente possa ter condições de governabilidade e tenha ímpeto e coragem para melhorar as condições de vida da população, sem a necessidade de solicitar ao Conselho de Segurança outra operação de paz.

 

* Vanessa Braga Matijascic é pesquisadora do Gedes, professora colaboradora no Programa de Pós-graduação em Ciência Política da Universidade de São Paulo e doutora em História pela UNESP-Franca. É autora do livro Haiti: segurança ou desenvolvimento no início dos anos 1990, Editora Appris, 2014, 132p. O livro é uma versão adaptada do resultado da pesquisa de mestrado, defendida no PPG RI San Tiago Dantas (UNESP/UNICAMP/PUC-SP), financiada pela CAPES 2006-2008 e disponível para leitura eletronicamente.

Imagem: Vista de Porto Príncipe. Por Elena Heredero, Wikimmedia Commons.

 

[1] SEITENFUS, Ricardo. Haiti: a soberania dos ditadores. Porto Alegre: Solivros, 1994.

[2] Haiti – Drug Trafficking: The Haitian Justice extraded Grégory Georges in the United States, disponível em: <https://www.haitilibre.com/en/news-27640-haiti-drug-trafficking-the-haitian-justice-extraded-gregory-georges-in-the-united-states.html>. Acesso em13 jul. 2021.

[3] Relatório de Desenvolvimento Humano 2020 (PNUD), disponível em: <http://hdr.undp.org/sites/default/files/hdr_2020_overview_portuguese.pdf>. Acesso em13 jul. 2021.

[4] Intervention in Haiti, disponível em: <https://www.digitalhistory.uh.edu/disp_textbook.cfm?smtid=2&psid=3163>. Acesso em13 jul. 2021.

[5] François Duvalier (1957-1971) foi o presidente que governou o país e consolidou uma guarda presidencial (Tonton Macoute) que, além de prover a segurança do presidente, perseguiu os opositores políticos. O presidente havia integrado o movimento negritude no período da intervenção dos marines e foi visto com simpatia pela população no momento de sua candidatura. Quando assumiu o mandato, revelou-se um ditador e assegurou que o sucessor da liderança do país seria seu filho, Jean-Claude Duvalier (1971-1986).

[6] Militares haitianos treinados com a assistência dos Estados Unidos para conter insurgências no Haiti e, principalmente, prover a segurança da família de Jean-Claude Duvalier. Não respondiam a subordinação das Forças Armadas do Haiti e também não eram da Tonton Macoute. A existência de tantas forças de segurança gerou ainda mais instabilidades e sucessivos golpes de Estado entre os anos 1986 e 1989.

 

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