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Capitalismo de vigilância, gestão da pandemia e relações internacionais

 

Murilo Motta*

 Este ensaio é um resumo do artigo “Dados, vigilância e o setor privado no desenvolvimento de ferramentas de rastreamento de contatos durante a pandemia de COVID-19” publicado pela Revista Aurora, v. 14, n. 2, 2021. A versão completa está disponível no site da revista.

 

A pandemia de COVID-19 forçou a migração de diversos direitos e serviços para plataformas digitais. Pessoas de todo o globo se tornaram usuários de serviços oferecidos por grandes empresas dos Estados Unidos, como Google, Apple, Facebook, Amazon e Microsoft, também conhecidas pela sigla GAFAM. Por exemplo, Google (Gmail, Google Classroom, YouTube) e Microsoft (MS Teams) se tornaram nossas novas salas de aula, o Facebook (Instagram, Whatsapp) passou a ser nosso ponto de encontro para atividades culturais, sociais e de lazer, enquanto a Amazon se tornou a referência para nossas compras. Embora ofereçam estes serviços, dentre muitos outros, a principal fonte de faturamento destas empresas provém da extração, gestão e análise de dados de seus usuários.

Em seu renomado livro sobre o capitalismo de vigilância, Shoshana Zuboff vê o uso de grandes quantidades de dados (Big Data) como componente fundamental de uma nova forma de capitalismo de informação, que ela chama de “capitalismo de vigilância”, em que grandes empresas de tecnologia, como as GAFAM, oferecem serviços e plataformas digitais gratuitos deliberadamente desenhados para extrair o máximo possível de dados de seus usuários; então, esses dados são tratados e vendidos para terceiros, como modelos preditivos do comportamento humano, que também permitem sua modificação por antecipação.

Ainda assim, o anúncio de uma parceria entre Apple e Google para o desenvolvimento de uma Interface de Programação de Aplicativos (API) para o rastreamento de contatos de COVID-19, foi bem recebido em todo o globo, após sua comprovada eficácia na proteção à privacidade dos usuários, mas sem que houvessem maiores questionamentos sobre quais os interesses destas duas grandes empresas com essa estratégia.

A partir desta interface, o governo ou a autoridade sanitária competente puderam desenvolver aplicativos de rastreamento de contatos integrados aos sistemas de saúde nacionais. No Brasil, o Ministério da Saúde usou a API Apple-Google para desenvolver o aplicativo de rastreamento de contatos “Coronavirus – SUS”. Segundo o Ministério da Saúde, o “Coronavirus – SUS” reconhece contatos próximos a uma distância de 1,5 a 2 metros e por um tempo mínimo de cinco minutos. Ele funciona entre smartphones que tenham o aplicativo instalado, através do envio criptografado das informações de contágio, por meio do uso do Bluetooth de baixa energia.

O Ministério também destacou que “além de segura, a nova funcionalidade conserva a privacidade, tanto do paciente infectado como da pessoa que recebe a notificação da possível exposição com o caso confirmado para a COVID-19”, já que o aplicativo funciona sem rastrear os movimentos da pessoa testada positiva e sem conhecer sua identidade ou a identidade com quem ela entrou em contato. Além disso, “todos os dados são criptografados e salvos localmente no smartphone” e “os dados só ficam disponíveis na ferramenta durante o período de 14 dias”.

Embora o conhecimento e a capacidade de inovação de Apple e Google possam ter ajudado a mitigar os efeitos da pandemia, é necessário criticar a invasão da esfera pública por atores privados, uma vez que ela pode implicar a perda de autonomia por parte dos Estados e das sociedades na definição dos usos destas tecnologias. Com efeito, a dependência de atores privados para o desenvolvimento de novas tecnologias contribui não só para a subordinação técnica, mas também para a subordinação cultural, econômica, social e política a algumas poucas empresas sediadas principalmente nos EUA.

Neste sentido, o desenvolvimento desta API faz parte de um fenômeno mais amplo, em que as grandes empresas de tecnologia têm penetrado em cada vez mais esferas da vida social. A transgressão de esferas da vida social é uma estratégia destas empresas, que, assim, concentram uma variedade cada vez maior de dados, que são essenciais para o desenvolvimento de novas tecnologias da informação.

Estas empresas aproveitam suas vantagens na esfera da produção de bens digitais para acessar as esferas da saúde e das políticas públicas, o que pode levar à reorganização destas duas esferas de acordo com os valores e interesses de empresas privadas. Esta crítica pretende ressaltar que Apple e Google não só contribuíram com seus conhecimentos técnicos na formulação de uma resposta à pandemia de COVID-19, mas também determinaram qual caminho poderia ser seguido, uma vez que definiram as condições de existência de aplicativos de rastreamento de contatos e como eles puderam ser usados por governos nacionais.

Para regulamentar as práticas invasivas e desenfreadas de acúmulo de dados, será necessário controlar quais tipos de dados as empresas podem coletar, como podem coletá-los e para onde podem enviá-los e armazená-los, bem como limitar a quantidade de dados que uma empresa pode possuir sobre seus usuários. Ademais, precisaremos de novos modelos de propriedade e de governança de dados, que quebrem as práticas monopolistas de empresas como as GAFAM, o que significa gerir alguns setores da economia de dados como parte da infraestrutura pública.

Nesta nova economia baseada em dados, o conhecimento é radicalmente concentrado em algumas poucas empresas estadunidenses, que buscam ativamente maximizar sua legitimidade, relevância e poder nas relações internacionais. Nos países do Sul Global, a defasagem em conhecimentos de ponta se traduz na necessidade de que empresas privadas estrangeiras preencham a lacuna técnica deixada pelos Estados nacionais. No entanto, é importante considerar que a atuação de empresas privadas é sempre condicionada pela busca de lucros, de modo que devemos estar atentos para os usos que são feitos de nossos dados por empresas como as GAFAM.

 

* Murilo Motta é Mestrando pelo Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (Unesp/Unicamp/Pucsp), bolsista CAPES (PROCAD-DEFESA) e membro da Rede de Pesquisa em Autonomia Estratégica, Tecnologia & Defesa (PAET&D)

Imagem: App para o rastreamento de COVID-19. Por: Pixabay.

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