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As crises do Líbano

Ana Clara Figueira Guimarães: Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais ‘San Tiago Dantas’ (UNESP, UNICAMP, PUC-SP) e bolsista FAPESP. E-mail: anaclarafigueiraguimaraes@gmail.com.

Jéssica Tauane dos Santos: Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais ‘San Tiago Dantas’ (UNESP, UNICAMP, PUC-SP) e bolsista CAPES. E-mail: jess.tne@gmail.com.

 

Atualmente, o Líbano passa por uma das piores crises econômicas desde o fim da guerra civil libanesa que eclodiu em 1975 e só teve fim 15 anos depois, 45% da população vive abaixo da linha da pobreza e o desemprego chega a 35%. O que já é chamado de “catástrofe econômica” catalisou uma onda de protestos que se iniciou em outubro de 2019 e vem desde então chamando atenção. Nos protestos, libaneses acusam o governo de corrupção e incompetência, além de criticarem o sistema político do país que mantém há pelo menos três décadas uma mesma elite política no poder.

O país possui um sistema político confessional, isto é, as cadeiras do parlamento são divididas com base em um critério de filiação religiosa e os parlamentares devem confessar sua religião, entre as 17 confissões reconhecidas, para então ocupar a cadeira destinada àquela religião. Apesar da diversidade de credos, grosso modo, temos dois grupos predominantes: de um lado os cristãos, no qual estão inclusos os maronitas (católicos), os gregos ortodoxos e os gregos católicos; e do outro temos os muçulmanos, grupo formado principalmente por sunitas e xiitas, mas também por drusos.

De acordo com o formato libanês do sistema confessional, 60% das cadeiras de deputados devem ir para as diversas comunidades cristãs enquanto 40% para os muçulmanos. O Pacto Nacional, um acordo não-escrito que institucionalizou esse sistema em 1943, estabelece que o cargo de presidente da República deve ser ocupado por um maronita, o de primeiro-ministro por um muçulmano sunita e o de presidente do Congresso por um xiita.

Embora durante as décadas de 1950 e 1960 o Líbano tenha desfrutado de uma relativa estabilidade em seu sistema político e um significativo crescimento econômico, esse cenário positivo não se estendeu para as décadas subsequentes. O desenvolvimento assimétrico entre setores da economia e o aumento da desigualdade social e regional, ambos decorrentes de um crescimento econômico rápido e desequilibrado, contribuíram para a deterioração da atmosfera política no Líbano. Acrescenta-se a esse quadro, a entrada massiva de palestinos, devido à Guerra Árabe-israelense de 1967 e ao Setembro Negro na Jordânia em 1970, que acabou intensificando a rivalidade entre muçulmanos e cristãos, relacionamento histórico já bastante hostil por conta das disputas políticas.

O estopim da Guerra Civil Libanesa ocorreu em 13 de abril de 1975, quando quatro membros do Kata’ib (Falanges Libanesas), partido político libanês de direita, foram mortos durante um atentado contra Pierre Jumayyil, fundador do partido. O episódio suscitou confrontos entre cristão e palestinos que se espalharam pela capital Beirute e penetraram também para o interior do país, polarizando toda a população.

Essa polarização se deu principalmente em torno de dois projetos políticos. Um deles apresentado pelo agrupamento denominado Movimento Nacional Libanês (MNL), que reunia vários partidos e organizações políticas nacionalistas de esquerda e propunha a extinção do confessionalismo político e diversas reformas democráticas. O outro bloco em disputa era a Frente Libanesa, composta por forças conservadoras lideradas pelo Kata’ib que propunham um plano menos articulado baseado na descentralização política e no federalismo.

Entretanto, o conflito não envolveu apenas esses dois blocos. Ações da Frente Libanesa contra palestinos ocasionaram a ingerência das principais forças da Organização de Libertação da Palestina (OLP) e do Exército de Libertação da Palestina (ELP) ao lado do MNL que, posteriormente, recebeu reforços do Exército Árabe Libanês, formado por dissidentes das forças nacionais. Um outro interessado nos resultados da guerra era o governo sírio, que já vinha mediando negociações diplomáticas e apoiou a eleição de Ilyas Sarkis à presidência. Todavia, o resultado do pleito não foi aceito pelo bloco do MNL, devido à rivalidade entre Kamal Jumblatt, líder do grupo e o presidente sírio, Hafiz al Assad.

Diante de um cenário futuro desfavorável para os interesses sírios uma vez que o MNL vinha sendo bem-sucedido em suas investidas, em maio de 1976, o presidente Assad decidiu intervir militarmente contra o MNL e apesar de ter tido muitas baixas, as tropas sírias acabaram conseguindo sufocar quase que completamente a resistência, dando espaço para a Frente Libanesa se fortalecer.

Concomitante à guerra civil, ocorreram duas invasões do território libanês por tropas israelenses devido à escalada das desavenças e ataques entre Israel e combatentes da OLP que controlavam a região sul do Líbano. A primeira invasão aconteceu em 1978 ocasionando o desdobramento da Força Interina das Nações Unidas no Líbano (UNIFIL) e a segunda foi uma incursão em larga-escala marcando o início da Guerra do Líbano de 1982. Com a guerra, Irã e Síria optaram por apoiar a criação do Hezbollah, um movimento revolucionário islâmico que desejava a retirada das forças de Israel.

Ainda em 1982, não obstante o êxito do estabelecimento de um acordo de paz entre Líbano e Israel, mediado pelos Estados Unidos, o assassinato do presidente recém-eleito Bashir Gemayel, líder da Frente Libanesa e que contava com o amplo apoio de Israel arruinou a execução do acordo e as tropas israelenses permaneceram em solo libanês. Amin Gemayel, foi eleito para substituir o irmão, mas não conseguiu nenhum passo significativo rumo a um acordo de paz.

Em 1988, pouco antes de expirar seu mandato, Gemayel nomeou outro cristão maronita para ocupar o cargo de primeiro-ministro, o que ia contra a determinação do Pacto Nacional no sentido de que o cargo fosse ocupado por um muçulmano sunita. Diante do impasse, a capital acabou sendo dividida, de modo que o lado leste ficou sob influência de um governo cristão e o lado ocidental sob um governo muçulmano.

O fim da guerra e a união dos governos só pôde ser vislumbrado com a assinatura do Acordo Taif de 1989 que marcou o começo do fim da guerra. No entanto, é necessário salientar que a concordância com esse Acordo não significou o término definitivo das tensões, como demonstra o assassinato de René Moawad, que havia sido eleito presidente do país logo após a ratificação.

Apesar da retirada das tropas israelenses em 2000, os ataques entre Israel e o Hezbollah continuaram, levando à eclosão da Guerra do Líbano de 2006, que durou de 12 de julho e 14 de agosto daquele ano. Durante o conflito, 1.109 libaneses foram mortos, sendo a maioria deles civis, 4.399 feridos e cerca de um milhão de deslocados. Em 11 de agosto de 2006, o Conselho de Segurança das Nações Unidas exigiu o fim dos confrontos através da Resolução 1701, que foi aceita tanto pelo secretário-geral do Hezbollah, Hassan Nasrallah, quanto pelo gabinete de Israel. Assim, em 14 de agosto um cessar-fogo foi estabelecido e em 8 de setembro o bloqueio naval ao Líbano foi suspenso.

Em 2017, a rivalidade entre Irã e Arábia Saudita ameaçou provocar uma nova crise no Líbano em vista do impacto que conflitos regionais entre esses atores assim como com Israel tem sobre o país. A tensão se iniciou quando o primeiro-ministro libanês, o muçulmano sunita Saad Hariri, anunciou inesperadamente sua renúncia do cargo em um discurso em Riad, na Arábia Saudita. Ele alegou que havia sofrido ameaças à sua vida e acusou o Hezbollah e o Irã de controlar seu país. Nasrallah acusou a Arábia Saudita de ter obrigado Hariri a renunciar objetivando incentivar um ataque contra o Líbano por Israel como forma a debilitar a influência do Irã e do próprio Hezbollah. O presidente libanês, Michel Aoun, disse que só aceitaria a renúncia após conversar pessoalmente com Hariri a fim de esclarecer o ocorrido.

A apreensão geral quanto à possibilidade de uma guerra regional envolvendo diversos países era bem perceptível uma vez que o Irã apoiava o também xiita Hezbollah, enquanto que o governo da Arábia Saudita tinha um relacionamento próximo com a família sunita de Hariri a qual já havia sofrido ataques anteriores do Hezbollah como o assassinato de seu pai em 2005 por um carro-bomba. Dessa forma, a rivalidade entre os xiitas e sunitas enraizada na região poderia abarcar conflitos entre diversos países, como Síria e Iêmen, Iraque e Bahrein e gerar “consequências devastadoras” conforme declaração do secretário-geral da ONU, Antônio Guterres. A situação só foi resolvida três semanas depois, quando a França intermediou as negociações e Hariri retornou para Beirute com o objetivo de reorganizar o governo. Entretanto, a insatisfação da população devido à instabilidade e desordem administrativa figurou dentre as pautas dos protestos, culminando em sua demissão no dia 29 de outubro de 2019.

Desde esse período, o Líbano vive um cenário de protestos e manifestações populares reflexos da imensa desigualdade e crise econômica, que foi agravada pela crise do coronavírus e o consequente confinamento. Uma das propostas de solução para o colapso político seria o estabelecimento de um estado laico, encerrando com o Pacto Nacional que representa a divisão do Estado em diversas religiões. Além disso, o sentimento “antirrefugiado” vem tomando força com a deterioração da economia e o aumento do desemprego, situação essa que desperta a raiva dos libaneses que acabam por culpar os refugiados por “roubar seu trabalho”.

Este tipo de pensamento é ainda alimentado por figuras governamentais, como Gebran Bassil, ministro das Relações Exteriores, que em discurso chegou a defender o envio de sírios para seu país de origem que, vale ressaltar, já caminha para o décimo ano de guerra. As crises do Líbano, que martirizam a população há anos, deixam rastros de sangue no passado – entre 1989 e 2019, foram registradas 5.975 mortes – e prenunciam a continuidade da violência no futuro. Enquanto isso, o país prossegue sua derrocada e a população faminta assiste à deterioração de seu poder aquisitivo sem poder fazer nada para mudar essa realidade a não ser revoltar-se.

 

Fonte Imagética: https://www.pexels.com/photo/lebanon-revolution-17_october-freedom-3876139/.

 

REFERÊNCIAS

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AUMENTA tensão no Líbano diante da queda da moeda e protestos. Correio Braziliense. Mundo. 12 jun. 2020. Disponível em: < https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/mundo/2020/06/12/interna_mundo,863258/aumenta-tensao-no-libano-diante-da-queda-da-moeda-e-protestos.shtml >. Acesso em: 29 jun. 2020.

ENTENDA as recentes hostilidades entre o Irã e a Arábia Saudita que envolvem o Líbano. G1. 2017. Disponível em: < https://g1.globo.com/mundo/noticia/entenda-as-recentes-hostilidades-entre-o-ira-e-a-arabia-saudita-envolvendo-o-libano.ghtml >. Acesso em: 29 jun. 2020.

GARCIA DA SILVA Matheus; FERNANDES, Marcelo. Líbano: Rebelado contra a miséria, povo ataca bancos e combate a reação com pedras e bombas incendiárias. A Nova Democracia. 26 jun. 2020. Disponível em: < https://anovademocracia.com.br/noticias/13721-libano-rebelado-contra-a-miseria-povo-ataca-bancos-e-combate-a-reacao-com-pedras-e-bombas-incendiarias>. Acesso em: 30 jun. 2020.

GELADEIRAS vazias: um retrato da grave crise no Líbano. G1. 24 jun. 2020. Disponível em: <https://g1.globo.com/economia/noticia/2020/06/24/geladeiras-vazias-um-retrato-da-grave-crise-no-libano.ghtml>. Acesso em: 30 jun. 2020.

GRESH, Alain. O velho Líbano resiste à mudança. Le Monde Diplomatique Brasil. Acervo Online. 1 jun. 2005. Disponível em: <https://diplomatique.org.br/o-velho-libano-resiste-a-mudanca/>. Acesso em: 29 jun. 2020.

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En la cuerda floja de la democracia brasileña

Por Ana Penido* y Hector Saint-Pierre** | Fotos: Roberto Lemos | Ilustraciones: Rebeca Borges Pinheiro 

Publicado originalmente em: Revista Ribeiras

Acesso: https://riberas.uner.edu.ar/en-la-cuerda-floja-de-la-democracia-brasilena/

 

La crisis social y económica, además de los efectos de la pandemia, arremete contra una Brasil bolsonarista militarizado, que con o sin impeachment, dificulta la posibilidad de la ocupación de las calles como salvataje. Descontrol político, desacreditación científica e inestabilidad institucional tienen al país en la cuerda floja. 

 

Antes de que la pandemia de COVID-19 asolara el mundo, Brasil ya experimentaba una profunda crisis económica, política y social. Otra pandemia que sacudió las instituciones de Occidente había llegado a estas playas: un profundo resentimiento hacia la democracia, los políticos, sus partidos y la política, en general, como forma de resolver los antiguos y permanentes problemas de la sociedad. Este malestar se profundiza con la máscara neoliberal y se agudiza por los monopolios de la comunicación en una cruzada híbrida, de la que la sociedad brasileña, de un día para otro, se cansó.

Aunque las políticas redistributivas de los gobiernos petistas hayan mejorado la vida de los más pobres, la falta de una política cultural específica los incluyó como consumidores. Sin una transformación cultural que diera a los ciudadanos/as noción de su capacidad transformadora, perdieron la consciencia de la clase a la que pertenecían sin asumir una nueva. Ese vacío fue llenado por los monopolios de comunicación con los valores de los sectores medios, una clase sin valores de clase. Como sentimiento general, primó la idea de que las promesas hechas por el sistema -una vida buena para todos, con salud, educación y seguridad- no fueron cumplidas, y que los cambios de consumo resultaban del esfuerzo e iniciativa individual y no del trabajo colectivo y de las políticas públicas. Así, contra lo que mostraban todos los índices económicos y sociales, prevaleció la idea de que Brasil había sufrido 13 años de atraso, corrupción y vergüenza internacional, productos de una izquierda en el poder.

Quitando las especificidades del caso brasileño y de los varios gobiernos petistas, ese sentimiento de malestar con la política y de desencanto con el sistema democrático no fue exclusivo de Brasil. Surge internacionalmente en la confluencia de una serie de tendencias políticas globales: 1) crisis económicas recurrentes que estremecieron al sistema financiero internacional y desaceleraron el crecimiento económico de los países, con el consecuente impacto en sus sociedades; 2) la confirmación y aceleración de la decadencia de la potencia que hasta entonces se juzgaba unipolar y omnipotente. Desde comienzos del nuevo siglo, pocos analistas dudaban del peligro que representaba la caída de la otrora magnífica águila que se imponía prepotente al mundo; 3) en los vacíos dejados por su declive, se fue se deslizando silenciosamente el milenario dragón chino, desde el área comercial hasta la alta tecnología e, incentivado por arrobamientos nacionalistas, el oso ruso también se movió para reclamar con fuerza su lugar como potencia regional en sus antiguas esferas de influencia; 4) las capas más profundas del sistema de fuerzas mundial se movieron, con alteraciones importantes en el aspecto estratégico-militar, especialmente en el Mar de la China y en Oriente Medio, con la retirada de Estados Unidos de diferentes escenarios de conflictos internacionales.

 

Largamente abandonada y entusiasmada por la confluencia ideológica de sus líderes, Sudamérica se aprovechó de la distracción del hegemón para invertir en el multilateralismo y en la cooperación regional, sustituyendo la ausencia de la OEA, distracción también aprovechada por China para acomodar sus piezas estratégicas en el continente. En la última década, Estados Unidos se volcó hacia sus intereses inmediatos y la recuperación del control estratégico de su esfera directa, presionando a Sudamérica contra las inversiones y asociaciones comerciales firmadas con China.

Clausewitzianamente la potencia apuntó su fuerza contra el centro de equilibrio de la fortaleza sudamericana: el multilateralismo. En el momento en que los líderes sudamericanos más trabajaban por la cooperación, inclusive en el área de la defensa, con el Consejo de Defensa Sudamericano, sus históricamente desobedientes fuerzas armadas se alineaban servilmente a los Estados Unidos, como deja claro Jim Stravidis, jefe del Comando Sur en su informe de 2009. Sediento por reforzar su poder y garantizar su dominio sobre los recursos materiales y políticos del continente, Estados Unidos demolió las instituciones multilaterales imponiendo la adopción de políticas neoliberales y reformas que desmantelaron los Estados nacionales, ampliando la criminal desigualdad social y su dependencia político-estratégica.

BOLSONARISMO Y LA MAQUINARIA INFECCIOSA

En este cuerpo enfermo se calentó el huevo de la serpiente. En varias partes del mundo, se reactivaron agrupaciones políticas de extrema derecha, antidemocráticas, xenófobas, racistas, negacionistas, anticientíficas y con connotaciones fascistas capitalizadas por líderes populistas histriónicos destacados por su incultura caricaturesca. Con un cuidadoso uso de los medios de comunicación de masas, especialmente en el ambiente virtual y con abuso de fake news y robots, plantan las semillas del odio y del miedo. Odio al “otro”, figura creada por la desinformación, que puede ser negro, indio, pobre, migrante, más genéricamente el “marxismo cultural”, la ideología de género y lo “políticamente correcto”. Miedo de ser incluido en alguna categoría de “otro”.

En el caso brasileño, en virtud de la transición política inconclusa de la dictadura militar, ese cuerpo enfermo ya albergaba un parásito anfitrión y las condiciones de cultivo. Las condiciones fueron prerrogativas cristalizadas constitucionalmente y la ley de amnistía que garantizó la autonomía de los militares. El parásito escogido fue el diputado por 28 años, Jair Messias Bolsonaro, con bases de apoyo político formadas por policías (parte de ellos involucradas con organizaciones criminales como las milicias) y militares huérfanos de la antigua línea dura de la dictadura militar. La crisis mundial, sumada a las posturas autoritarias de las élites políticas y económicas internas, enfáticamente manifestadas en el golpe contra la presidenta Dilma Rousseff, creó el ambiente propicio para que la infección se generalizase.

Bolsonaro, un ex capitán del Ejército Brasileño, dado de baja de la corporación acusado de terrorismo, fue electo en 2018 contando con fuerte militancia de la base militar, lo que se constataría en la conformación de un gobierno con más militares, en servicio activo y en la reserva, que en la dictadura.

A sus tendencias autoritarias, claras en sus truculentos antecedentes como militar y parlamentario, se sumó la subordinación estratégica a los Estados Unidos y la adopción de políticas neoliberales extremas. Esas tendencias autoritarias son claras en su manifiesto desprecio por los homosexuales, indígenas y feministas, en el sistemático combate a los demás poderes del Estado: Legislativo y Judicial, en las amenazas constantes a la prensa hegemónica no alineada, incluso hasta a ‘celebridades’ que piensen diferente. Para mantener vivos tantos enfrentamientos simultáneos, el presidente cuenta con dos milicias personales. Una física, armada y militante, formada por miembros del partido del orden –fuerzas de seguridad en servicio activo y en la reserva– y civiles simpatizantes. La otra es una milicia virtual, formada por robots y que opera una gran máquina de fake news a través de diversas aplicaciones y redes sociales.

 UNIVERSIDADES E INESTABILIDAD SOCIAL EN LA MIRA

Para alguien que se sustenta en una máquina de mentiras y de odio, es perfectamente comprensible la elección del pensamiento científico y de las universidades como enemigos de primer orden. Inclusive ante una cruel pandemia y los datos, evidencias y pruebas empíricas que resultan de investigaciones de diversas áreas científicas, el presidente se burla de la ciencia, cuyos datos coloca en el mismo nivel que meras opiniones. Una de las consecuencias de esta corriente negacionista es una revisionista, buscando reescribir eventos históricos conforme los militares y su presidente desean, especialmente el régimen militar y el golpe que instauró la dictadura militar en 1964. Así, su milicia virtual puede sentirse a gusto para ofrecer respuestas fáciles y mágicas sobre la comprensión del mundo que atraen seguidores, las respuestas de un ‘salvador’. En un país de analfabetismo sistémico, este comportamiento encuentra suelo fértil en la ignorancia y la pereza de pensar.

A ese ataque ontológico a la ciencia se suma un ataque concreto a las universidades y a las estructuras de fomento de la investigación científica. El país ya ha tenido dos ministros de Educación durante un año y medio de gobierno, ambos vinculados a las bases más ideológicas y anticientíficas del bolsonarismo. Entre las medidas autoritarias adoptadas están que el presidente y no la comunidad académica, nombre rectores de las universidades e institutos federales de educación (ya existen 5 universidades en esa situación provisional); la desestructuración de Capes y de CNPQ (principales organismos públicos que regulan y financian las investigaciones en el país), el cambio de normas para la evaluación de cursos y de revistas científicas, etc. El segundo ministro cayó el 18 de junio, no sin antes revocar la legislación que garantizaba el ingreso de negros, indígenas y personas con discapacidad en posgrados. La situación actual está provocando una tensión institucional muy elevada, entre las arbitrariedades del gobierno y los intentos de limitarlas por parte de otros poderes, particularmente el Judicial, pero también recientemente el Senado Federal, que devolvió al gobierno una medida provisional que permitiría al gobierno nombrar a los rectores de 17 universidades.

Por lo tanto, Bolsonaro no es definitivamente un ‘líder carismático’ en el sentido weberiano, o un príncipe de Maquiavelo sin virtud, pero con fortuna. Es un viejo líder populista, con sus bases neofascistas asentadas en las milicias físicas y virtuales, que encarnó la política de poder de los militares. En virtud de esta caracterización, no es sin razón que las fuerzas políticas brasileñas están preocupadas con la posibilidad de un golpe de Estado. El presidente ya expresó ese deseo y su hijo ya trata la cuestión no en términos de sí, sino de cuándo.

 

En un cuadro general, Brasil se presenta como un equilibrista borracho en la cuerda floja de la democracia. Puede ser que los militares brasileños no sean estrictamente monolíticos en su pensamiento, pero la mayoría y el grupo hegemónico no solo lo apoya, sino que siente que el gobierno Bolsonaro guía y defiende su proyecto de poder.

El partido militar instrumentaliza ése apoyo prestando al gobierno el prestigio de las FF. AA. y una supuesta racionalidad al régimen. Existe una insatisfacción generalizada de los militares con la Corte Suprema (STF) con relación a la interpretación constitucional de la participación de los militares en la política. La oposición legislativa no pasa de 130 votos. Los dos principales representantes de la derecha política liberal están debilitados: el peso político de Sérgio Moro (ex ministro de Justicia) disminuyó luego de salir del gobierno y João Doria (gobernador de São Paulo) enfrenta un brote de COVID-19 en su estado. Los presidentes de la Cámara de Diputados, Rodrigo Maia, y del Senado, Davi Alcolumbre, no asumirán una iniciativa de impeachment (juicio político) o limitación del poder de Bolsonaro sin una fuerte presión de las calles, y es difícil imaginar grandes movilizaciones organizadas por el peligro de contagio. El Ejecutivo está en conflicto abierto como el Poder Judicial y trata de cooptar sectores clientelares del Legislativo para evitar un proceso de impeachment.

El país ya sobrepasó los 50 mil muertos en la pandemia, un tercio de la población económicamente activa está desempleada y el escenario que se vislumbra es de aumento exponencial del número de muertos y del caos social por la vulnerabilidad de una sociedad desprotegida por el desmantelamiento neoliberal.

En resumen, como propuesta política neofascista, el gobierno Bolsonaro ataca dos frentes simultáneamente: el conocimiento científico y las instituciones republicanas. El primer ataque se despliega sobre la ciencia y sus unidades de producción que son las universidades públicas. Su objetivo es desacreditar el conocimiento científico como si fuera apenas una opinión entre otras, lo que permite imponer la ideología fascista de desconstrucción social y la política neoliberal de desmantelamiento del Estado. El segundo ataque se dirige a anular o paralizar las instituciones representativas de contrapeso de poderes, como el Legislativo y el Judicial, para poder gobernar autoritariamente sin ningún freno. La estrategia central de este ataque es la amenaza de una intervención militar directa en esos poderes, para anular su trabajo o paralizarlo por medio de la intimidación. No obstante, la comunidad académica con apoyo del Legislativo y principalmente del Poder Judicial, facilitado por la pandemia que exige respuestas científicas, están logrando anular el primer ataque. Algunos medios de comunicación y un contraataque del Poder Judicial con diferentes procesos están haciendo imposible la ejecución de un golpe de Estado tradicional. De hecho, Bolsonaro podría intentar un autogolpe para ganar espacio para una administración aún más autoritaria, recordando que este gobierno es un gobierno fuertemente militarizado. La pandemia dificulta la ocupación de las calles por una sociedad que ya no aguanta el descontrol político y la inestabilidad institucional que provocan Bolsonaro y su séquito. Fuera de este vector, se abre una nueva ventana de disputa política y jurídica por el impeachment de presidente y vicepresidente. Y así vá el Brasil y su angustiado pueblo, viendo el presidente, cada vez más borracho, caminando tambaleante sobre una cuerda democrática cada vez más floja.

 

 

 

*Ana Penido es Profesora del Programa San Tiago Dantas. Investigadora del Grupo de Estudios en Defensa y Seguridad Internacional (GEDES – UNESP) y del Instituto Tricontinental de Investigación Social. Becaria CAPES de posdoctorado en el Instituto de Políticas Públicas y Relações Internacionais (IPPRI – UNESP).

** Hector Saint-Pierre es Profesor del Programa San Tiago Dantas, líder del GEDES y Coordinador Ejecutivo del IPPRI. Investigador FAPESP (Proc. 2017/21557-4) e investigador del CNPq.

Da guerra à democratização

Laurindo Paulo Ribeiro Tchinhama: Doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais ‘San Tiago Dantas’ (UNESP, UNICAMP, PUC-SP). E-mail: laurindoprt@gmail.com

 

Uganda é um país africano localizado na região oriental da África fazendo fronteira com o Sudão do Sul, o Quênia, a Tanzânia, Ruanda e a República Democrática do Congo. O país tem um histórico marcado por conflitos civis e instabilidade política complexa desde a sua independência da Grã-Bretanha em 1962, caracterizada por golpes militares e ditaduras. Evidencia-se, no entanto, segundo Otunnu (2004, p. 11), que a crise do país “reflete a maneira como o Estado foi construído através da violência expansionista europeia, manipulação de diferenças preexistentes, políticas administrativas de divisão, domínio e políticas econômicas”.

Além da crise de legitimidade política, houve problemas relacionados a criação do nacionalismo ugandense causando divisões étnicas, religiosas, e administrativas – especialmente entre o Norte e Sul (OTUNNU, 2004). A fragmentação e divisão político-social do país abriu portas para as instabilidades, alianças e disputas políticas que ocasionaram a aliança dos partidos o Congresso do Povo de Uganda (UPC) de Milton Obote e do partido da monarquia de Buganda (Kabaka Yekka). Por conseguinte, Milton Obote se tornou o primeiro-ministro e Kababa Mutesa II, de Buganda, o presidente (OTUNNU, 2004).

O fracasso da aliança ocorreu em 1967 quando o primeiro-ministro deu um golpe de Estado contra o presidente com abolição do regime tribal e declarou Uganda como uma República. O rompimento da aliança deveu-se à luta por terras entre as etnias Bunyoro e Buganda, enquanto a declaração de estado de emergência foi causada pela percepção de conflito entre o Norte e o Sul no país (OTUNNU, 2004). A crise afetou a relação entre Milton Obote e o comandante do exército, Idi Amin, ocasionando um novo golpe de estado em 1971 executado por este último, que governou o país até 1979.

O governo de Idi Amin foi marcado por violência, mortes de membros da etnia Acholi e Langi, (membros centrais do exército) e de adversários políticos, além disso, Amin configurou o exército a sua maneira. O regime ditatorial de Amin evidenciou a cisma no país, o Sul assumiu os serviços públicos e de comércio, e o Norte os cargos no governo e exército (OTUNNU, 2004). Ademais, estima-se que houve 500,000 mortos e cerca de 1 milhão de deslocados internos, além de 200 mil exilados. O governo causou instabilidade no país resultando na queda do PIB em 25% e de 60% nas exportações, e provocou um aumento na inflação acima de 70%. Já a educação e saúde tiveram um impacto de 27% e 9% respectivamente (RUGUMAMU, GBLA, 2004).

Diante desse contexto, ocorreram sucessivos golpes militares no país. Amin sofreu golpe de militares Acholi e Langi, em 1979, exilados na Tanzânia, com auxílio deste país e do partido Frente de Salvação Nacional (FRONASA), liderado por Yoweri Museveni. Como resultado, Yusuf Lule assume o poder por pouco tempo e é derrubado por Godfrey Binaisa. Este é derrubado por Paulo Muwanga em 1980 que assume a presidência e escolhe Yoweri Museveni como seu vice. No entanto, na tentativa de democratizar o país, a nova administração realizou eleições em 1980 que culminou com a vitória e o retorno de Milton Obote ao poder (OTUNNU, 2004). O governo de Obote foi marcado por reivindicações da sua vitória, legitimidade, guerras declaradas pela maior parte dos partidos, assassinatos e o surgimento de grupos armados. Obote resistiu até 1985 quando sofreu o golpe dos soldados Langi e Acholi e Tito Okello assumiu o poder (OTUNNU, 2004).

Uma vez no poder, Okello inclui a maior parte dos partidos e grupos armados no seu governo. Por seu turno, o Exército de Resistência Nacional (NRA, sigla em inglês) ficou de fora do governo. Nesse sentido, buscaram a negociação de paz que ocorreu em 1985 com o Acordo de Nairóbi. Dentre os objetivos estavam o cessar-fogo entre o governo de Uganda e o NRA, a formação de um governo de coalização com partilha de poder e a nomeação de um representante no conselho militar (KIPLAGAT, 2004).

Todavia, ao assumir o poder após o acordo, o NRA conseguiu desmobilizar os soldados Acholi e vivia-se com clima de relativa tranquilidade, porém o acordo não foi implementado na prática (OTUNNU, 2004). O governo do NRA consolidou a divisão Norte-Sul e os conflitos se intensificaram e ficaram marcados pela elevada violação de Direitos Humanos, discriminação regional, sequestros, saques, dentre outras atrocidades cometidas (OMACH, 2009). Nesse contexto, Yoweri Museveni em 1986 com um golpe de Estado assume o governo alegando a pretensão de garantir a estabilidade e o respeito aos direitos humanos no país. Yoweri Museveni está no poder até o presente.

No poder, Yoweri Museveni realizou algumas mudanças. Durante a década de 1990 uma nova constituição foi instituída e os partidos políticos foram legalizados. Em 1998, os conflitos entre o governo e grupos armados persistiram no Norte e Oeste do país que ficou marcado pela morte de 80 estudantes numa escola. Estima-se um total de 800 pessoas mortas. Em 1999, civis e tribos locais foram atacados pelos grupos rebeldes Forças Democráticas Aliadas (ADF), Exército de Resistência do Senhor (LRA) e Hutus Ruandeses provocando pelo menos mil mortes. Ademais, os conflitos resultaram em 350,000 deslocados de guerras. Vale ressaltar que o conflito com a LRA é um dos mais longos. O grupo, liderado por Joseph Kony, ganhou protagonismo por sequestros de aproximadamente 60,000 crianças para servirem como soldados e escravas sexuais.

A incapacidade do governo em conter os conflitos civis ficou evidente. No ano 2000, o combate entre o governo e os grupos rebeldes ocasionou pelo menos 150 mortes, resultado de ataques contra os civis. No ano seguinte, os novos ataques foram realizados e centenas de pessoas foram mortas, porém pelo menos 5,000 rebeldes se renderam à investida do governo. Por seu turno, entre 2002 e 2000, o LRA realizou ataques contra os civis no Norte e Nordeste do país ocasionando a morte de mil e sequestrando centenas de pessoas.

Os combates se prolongaram em 2005 chegando a atingir o Sudão, em Darfur. Como reação, a comunidade internacional emitiu mandado de prisão aos líderes da LRA. As tentativas de negociações de paz ocorreram entre o governo e o LRA em 2004 e 2006, mas não obtiveram o resultado esperado. Apesar do fracasso, um dos resultados do governo foi reintegração alguns ex-combatentes do LRA às Forças de Defesa do Povo de Uganda (UPDF) e anistia a alguns líderes do grupo.

Entre 2006 e 2008 o fracasso das negociações de paz levaram a retomada dos conflitos. Em 2008, um ultimato foi proposto ao LRA devido à resistência do líder Joseph Kony em negociar por conta do mandado de prisão do Tribunal Penal Internacional (TPI) ao mesmo. A sua resistência levou uma ação conjunta da Uganda, da República Democrática do Congo e do Sudão, com apoio da Organização das Nações Unidas (ONU) e dos Estados Unidos (EUA), obrigando o refúgio do grupo na República Centro Africana (RCA) onde realizaram ataques a civis com cerca de 500 mortes entre 2008 a 2009. Sobre a captura dos líderes do LRA, em 2015 Dominic Ongwen foi capturado e posto em julgamento desde 2017 enquanto Kony continua foragido.

Fica claro, dessa forma, que os conflitos na Uganda se tornaram regional ao tornar outros Estados vizinhos palco dos ataques do LRA. Assim, fica claro a notoriedade e o protagonismo do LRA dentre os vinte grupos mais influentes nesse país.  No entanto, a captura de Kony continua sendo o desafio do governo ugandês, porém, a exposição das suas fragilidades e o declínio do seu exército, bem como a prisão de alguns líderes do seu grupo deixam claro a sua fraqueza (NYEKO, LUCIMA, 2004).

 

Figura 1- Mapa das áreas mais afetadas pelos conflitos no Uganda sobretudo no Norte

Fonte: RELIEFWEB (2007). Disponível em: https://reliefweb.int/map/uganda/map-uganda-showing-conflict-affected-areas-august-2007. Acesso 18 de junho de 2020.

 

Os conflitos tiveram consequências de dimensão política, social, econômica e principalmente humanitária (OTUNNU, 2004). No âmbito social, gerou órfãos de guerra, destruição de cultura, cerca de 1,8 milhão de deslocados internos, sobretudo na região norte, principal local dos conflitos, e a desintegração do país. Esforços têm sido feitos na luta pelos direitos humanos e prevenção de conflitos com atividade de monitoramento e treinamento com apoio da USAID. As ajudas humanitárias chegaram às regiões mais afetadas com a melhoria da segurança a partir de 2006 (OCHA, 2007).

Um dos desafios a serem superados pelo país é concernente a Governança. Quando assumiu o poder, em 1985, Museveni prometeu estabilidade e transição política no país, porém sua postura mudou em 2005 ao estabelecer mudanças constitucionais no limite de mandatos presidenciais apesar de ter criado um sistema multipartidário (RUGUMAMU, GBLA, 2004). Até então é um dos presidentes do mundo com mais tempo no poder e com as eleições se aproximando em 2021 parece cogitar uma possível recandidatura ao negar aposentadoria. Assim sendo, a postura de Museveni representa a crise de governança e da democracia com um regime ditatorial com características democráticas que oprime, ameaça, abusa de poder militar (KAKA, 2016) e prende seus oponentes, como, por exemplo, o atual candidato da oposição Bobi Wine. Contudo, tal comportamento vem sendo visto desde as eleições de 2001, 2006, 2011 e 2016 (NYEKO, LUCIMA, 2004).

Ao analisarmos o histórico da Uganda podemos traçar algumas considerações. Torna-se evidente, portanto, que a solução dos conflitos não se limita ao estabelecimento da paz negativa, o fim do conflito violento por meio do cessar-fogo, mas passa também por processo de paz positiva com a integração social. Segundo, o processo de construção da paz e democratização em sociedade com características divididas demandam mais abertura ao diálogo por contas das rivalidades étnicas e do regionalismo que foi implantado desde o pós-independência no país. No que tange a segurança, há necessidade de atividade de DDR e Reforma do Setor de Segurança (RSS) no intuito de estabelecer um exército nacional de modo a evitar o retorno de novos conflitos, considerando que o grupo LRA ainda se encontra foragido. Vale ressaltar a relevância do setor por conta do histórico militar e debilidade dos regimes ditatorial e autoritário vivenciado pelo país e reproduzido por Museveni de forma inconstitucional (KAKA, 2016).

Por último, a debilidade político-institucional deixa claro a necessidade de reformas institucionais que garantam o funcionamento e atuação imparcial. No entanto, fica aberta a possibilidade de futuros estudos sobre governança, institucionalização e RSS no país de modo a garantir a estabilidade e segurança dos cidadãos. Porém, apesar da sua postura e do regime autoritário, considerando o histórico conflituoso do país, Museveni não sofreu golpe e tem tido uma atitude de negociador para a manutenção da paz na região.

 

 

FONTE IMAGÉTICA: Manifestação da oposição queimando a foto do presidente Yoweri Museveni durante a campanha eleitoral. Fonte: DW (2020). Disponível em: https://www.dw.com/en/uganda-blocks-a-million-first-time-voters/a-5257519. Acesso 17 de junho de 2020.

 

REFERÊNCIAS

KAKA, Julius. Uganda’s 2016 Elections: Another Setback for Democracy in Africa. Global Observatory: February 24, 2016. Disponível em: https://theglobalobservatory.org/2016/02/ugandas-2016-elections-another-setback-for-democracy-in-africa/. Acesso 18 de junho de 2020.

KIPLAGAT, Bethuel. Reaching the 1985 Nairobi Agreement. In: Accord: protracted conflict, elusive peace: initiatives to end the violence in northern Uganda. Org. LUCIMA, Okello. Conciliation Resources: London, 2002.

OMACH, Paul. Democratization and Conflict Resolution in Uganda. Les Cahiers d’Afrique de l’Est / The East African Review. nº 41, p. 1-20, may, 2009.

OTUNNU, Ogenga. Causes and consequences of the war in Acholiland. In: Accord: protracted conflict, elusive peace: initiatives to end the violence in northern Uganda. Org. LUCIMA, Okello. Conciliation Resources: London, 2002.

LUCIMA, Okello; NYEKO, Balam. Profiles of the parties of conflict. In: Accord: protracted conflict, elusive peace: initiatives to end the violence in northern Uganda. Org. LUCIMA, Okello. Conciliation Resources: London, 2002.

RUGUMAMU, Severine; GBLA, Osman. Studies in reconstruction and capacity building in post-conflict countries in Africa: Some Lessons Of Experience From Uganda. Harare, Zimbabwe, 2004. Disponível em: https://elibrary.acbfpact.org/acbf/collect/acbf/index/assoc/HASH0180/96b7bb1c/f63e60fd/31a4.dir/Thematic94.pdf. Acesso 17 de junho de 2020.

Uganda blocks a million first-time voters. DW. Fev. 2020. Disponível em: https://www.dw.com/en/uganda-blocks-a-million-first-time-voters/a-5257519. Acesso 17 de junho de 2020.

United Nations Office for the Coordination of Humanitarian Affairs. OCHA’S MISSION. África. Disponível em: https://www.unocha.org/sites/unocha/files/OCHAin2007_0.pdf. Acesso 18 de junio de 2020.

A necropolítica brasileira e sua origem na guerra colonizadora

Entrevista especial com Eduardo Mei

Professor compreende que o país não só deixou de romper mazelas do passado como ainda as reitera como estratégicas na política de dominação

Por: João Vitor Santos | Instituto Humanitas Unisinos

 

Para o professor Eduardo Mei, a guerra é algo presente no imaginário brasileiro. Mas não é qualquer guerra, é uma disputa desigual que aniquila os mesmos povos que foram subjugados desde a colonização. “O Brasil é o produto cotidiano de uma guerra de conquista, cuja vítima é o povo pobre, indígena, negro, favelado, sem terra e sem teto”, resume, na entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line. E, como forma de compreender a conjuntura política atual que mistura guerra e supressão de pessoas, evoca o conceito de necropolítica. “A necropolítica é a própria negação da humanidade”, define.

Mei ainda explica que, no caso brasileiro, “a necropolítica é uma remanescência viva da conquista colonial e da escravidão, como um cadáver vivo constitutivo do nosso cotidiano”. Isso tem origem em um passado quando os negros, depois de escravizados, foram libertados e jogados à própria sorte e os índios foram exterminados ou confinados em reservas. “A acumulação do capital e o neoliberalismo promovem o exacerbamento do caráter necropolítico de um país formado sob o impacto da conquista colonial e da escravidão”, completa.

Porém, ele compreende que, infelizmente, tais perspectivas são atualizadas da pior forma possível na gestão de Jair Bolsonaro. “As políticas sociais adotadas recentemente provocaram a reação da ‘casa grande’. O atual presidente apresenta-se como um representante da casa grande, um soldado da necropolítica contra os povos indígenas, os negros, quilombolas e a população pobre e famélica”, analisa. E, segundo Mei, numa situação de pandemia e desespero encontra o cenário perfeito para se fixar. “A pandemia apresentou-se para o ‘governo’ como uma oportunidade de ouro para pôr em prática o genocídio indígena. Nesse sentido, a pandemia é a oportunidade para reforçar o caráter fascista do bolsonarismo”, reitera.

Eduardo Mei é professor de Sociologia do curso de Relações Internacionais da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Universidade Estadual Paulista – Unesp. Possui doutorado em História pela Unesp, é pós-graduado em Filosofia pela Universidade Estadual de Campinas – Unicamp e graduado em Ciências Sociais pela Unicamp. Integra o Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional – Gedes da Unesp.

 

Confira a entrevista:

 

IHU On-Line – Por que a ideia de guerra é sempre tão presente na sociedade de nosso tempo? O que a ideia da guerra contra o novo coronavírus traz intrinsecamente?

Eduardo Mei – Seria necessário um estudo linguístico para saber se a frequência desse discurso “belicoso” é maior do que em outros períodos históricos e eu desconheço estudos a respeito. De qualquer modo, há ao menos dois motivos para a guerra e o discurso belicoso serem tão presentes no nosso tempo. O primeiro é o fato de que o mundo todo vive efetivamente um período muito belicoso ao menos desde a Revolução Francesa, com maior incidência desde a segunda metade do século XIX e com as deflagrações mundiais no século XX.

O segundo motivo é que essas guerras ganharam projeção por meio da imprensa, do rádio, da TV e do cinema e, mais recentemente, por meio da internet. Além disso, o vocabulário estratégico, originalmente militar – já que o estratego (em grego: στρατηγός) era quem comandava o exército na Grécia antiga –, disseminou-se por todas as atividades humanas, como a economia e a administração de empresas, por exemplo.

 

Novo coronavírus

Intrinsecamente não há nenhum problema em deflagrarmos uma guerra contra o novo coronavírus, desde que se trate do “bom combate”. De fato, se com uma guerra à disseminação do vírus queremos dizer que a pandemia é um assunto tão sério como a guerra e que exige empenho do poder público para a sua consecução, a “guerra” é bem-vinda. Nesse sentido, a pandemia serviu para questionar e, na maioria dos países, debelar a falácia da autorregulação do mercado. A pandemia é um assunto público e não privado e apenas por meio do Estado (da res publica, a coisa pública) ela pode ser enfrentada. Deploravelmente, não é isso o que ocorre no Brasil.

IHU On-Line – Que nexos podemos estabelecer entre política e guerra na atual conjuntura brasileira?

Eduardo Mei – No Brasil, a compreensão da realidade é, desde Cabral, distorcida pela perspectiva do colonizador. A tendência a utilizar categorias exógenas para interpretar a realidade brasileira é secular e renitente. Tomemos o próprio Brasil como exemplo, pois ele é continente do que podemos considerar. Há uma tendência a tratar o Brasil como uma nação contida em suas fronteiras. A noção de fronteira é originária de uma realidade histórica alheia ao Brasil e que se impõe como um interesse do colonizador em tratados internacionais.

A fronteira é então, por assim dizer, “normalizada”, “naturalizada” e, como tal, passa a ser um fato inquestionável. Aos povos indígenas, as fronteiras são uma imposição fáctica. Não se lhes reconhece a dignidade do status de nação, como ocorreu na República Plurinacional da Bolívia, por exemplo. O caráter genocida do atual “governo” (com o parêntese de que a palavra “governo” tem origem náutica, referindo-se à condução do leme, e que, portanto, não deveria ser utilizada para referir-se àqueles que, deliberadamente ou por incompetência, buscam o naufrágio, os quais, segundo o direito marítimo, são criminosos, cf. Artigo 261 do Código Penal) – caráter genocida reiterado também pelo ministro da Educação na reunião ministerial de 22/04 (quando ele diz “odeio o termo ‘povos indígenas’ […] O ‘povo cigano’. Só tem um povo nesse país.”) – revela algo que geralmente é dissimulado: o Brasil é o produto cotidiano de uma guerra de conquista, cuja vítima é o povo pobre, indígena, negro, favelado, sem terra e sem teto.

IHU On-Line – Em situações de crise extrema, e mesmo de guerra, emerge a ideia de coesão nacional. Por que parece que o governo federal vai exatamente no sentido contrário diante da pandemia? O que essa ação revela sobre o governo Bolsonaro?

Eduardo Mei – A situação brasileira desde ao menos 2013 é tão instável que é impossível fazer considerações categóricas, mas, ao que parece, a pandemia apenas reforça aspectos fascistas do bolsonarismo. Desde sempre, e manifestamente durante a campanha eleitoral, o discurso belicoso e excludente é reiterado. Por isso a relação entre o bolsonarismo e a milícia é intrínseca. Não por acaso os dedos imitando uma arma são um símbolo do movimento bolsonarista e da campanha eleitoral.

IHU On-Line – A narrativa belicosa do governo Bolsonaro pode ser compreendida como uma estratégia de guerra? Por quê? Como o senhor interpreta essa narrativa?

Eduardo Mei – É típico do fascismo e das tendências políticas filofascistas o discurso belicoso, a divisão do mundo em amigos e inimigos, a estigmatização dos desafetos políticos, a retórica da polarização da sociedade em grupos excludentes e, havendo a oportunidade, a eliminação física de desafetos e “inimigos”. Nessas circunstâncias, a pandemia apresentou-se para o “governo” como uma oportunidade de ouro para pôr em prática o genocídio indígena. Nesse sentido, a pandemia é a oportunidade para reforçar o caráter fascista do bolsonarismo.

IHU On-Line – Como analisa a presença e atuação de militares no governo Bolsonaro?

Eduardo Mei – Como deplorável sob todos os aspectos. O “governo” Bolsonaro é o produto de um golpe de Estado perpetrado contra a presidenta Dilma Rousseff cuja consolidação envolveu várias outras violações da Constituição de 1988, de direitos individuais e coletivos assegurados por ela e pela legislação ordinária, por violações da legislação eleitoral etc. Em países plenamente democráticos, alguém que defenda uma ditadura militar e a tortura seria punido na forma da lei. O que dizer de uma situação na qual, além de não ser punido, ele mantém as prerrogativas de deputado federal e se candidata à eleição presidencial?

Do mesmo modo que as eleições legislativas institucionalizavam e normalizavam a ditadura militar, as eleições de 2018 institucionalizam e normalizam o golpe de 2016. Ao violar a legislação eleitoral e alçar o bolsonarismo ao poder (não apenas o presidente, mas toda uma bancada de mitômanos e golpistas), o golpe de Estado institucionalizou o crime. E os parceiros do crime são também criminosos. Apenas a frouxidão e leviandade com a qual a coisa pública é tratada no Brasil explica a situação na qual nos encontramos.

 

IHU On-Line – Por que a adesão a Bolsonaro parece não ser completa entre os militares da ativa? O que os aproxima e o que os distancia dos militares que estão no Executivo?

Eduardo Mei – Aparentemente, a maioria dos militares encara a associação com o bolsonarismo como uma aliança tática. Embora seja difícil afirmá-lo com certeza, pois a sombra dos regimes de exceção ainda vela e oculta o aparato militar – e rigorosamente falando, as Forças Armadas brasileiras não são instituições públicas –, certamente, interesses corporativos pesam nessa escolha. Curiosamente, interesses estritamente corporativos adquirem no jargão militar a denominação de “interesses nacionais”.

IHU On-Line – Como o senhor compreende o conceito de necropolítica? De que forma esse conceito pode nos ajudar a compreender a conjuntura brasileira?

Eduardo Mei – Entendo necropolítica tal como ela foi definida por Achille Mbembe, historiador camaronense radicado nos EUAMbembe define a necropolítica como a política que consiste em decidir quem pode viver e quem deve morrer. Embora a definição de necropolítica apareça em um texto publicado em 2003, ela remete à conquista colonial, à escravidão, ao direito de tratar como coisas e matar indígenas e escravos, e à introdução dessas práticas coloniais na Europa pelos regimes fascistas.

 

Caso brasileiro

No caso brasileiro, a necropolítica é uma remanescência viva da conquista colonial e da escravidão, como um cadáver vivo constitutivo do nosso cotidiano. Quando a escravidão foi formalmente abolida, os ex-escravos foram abandonados à própria sorte e sobreviveram ao resistir em uma sociedade racista e excludente. Os povos indígenas, por sua vez, só sobreviveram ao genocídio devido às dimensões continentais do país e ao fato de, ao contrário dos EUA, o Brasil manter até hoje, graças à imensa floresta amazônica, um imenso território relativamente pouco devastado (lembremos que Bolsonaro elogia o genocídio indígena perpetrado pela cavalaria dos EUA).

A pandemia do coronavírus apenas tornou manifesto o caráter mórbido do neoliberalismo filofascista. Disso são evidências as tentativas de extinguir o Bolsa Família e outras políticas de inclusão e o descaso com o qual se trata do problema da fome e do desemprego.

Eduardo Mei – Muitas vezes a guerra foi utilizada como uma forma de necropolítica, antes mesmo que o conceito tivesse sido formulado por Achille Mbembe, pois é claro que a realidade antecede, e muito, o conceito. Se partirmos da definição de bellum publicum solemne, notamos que ela se aplica apenas às guerras que os Estados europeus praticavam entre si a partir da Paz de Westphalia.

Note-se que durante a Guerra de Trinta Anos, cujo fim é acordado nos tratados da Westphalia, a pilhagem e a morte de civis e até o canibalismo foram praticados na Europa. Desde então, inicia-se um processo para moderar e “civilizar” a guerra. Contudo, esse regramento concernia apenas às relações interestatais dos países europeus entre si.

No que tange à sorte dos povos das colônias europeias, não havia esse regramento nem essa moderação. As guerras de extermínio e a disseminação deliberada de doenças fazia parte cotidiana da necropolítica colonial. No mundo tecnológico contemporâneo, muitas vezes a guerra é apenas um subterfúgio para a necropolítica e o genocídio dissimulado.

IHU On-Line – As manifestações pela democracia, contra o racismo e contra o governo são uma resposta social à necropolítica? Por quê?

Eduardo Mei – As atuais manifestações pela democracia são a reação da “senzala” aos retrocessos da “casa grande”. Elas rechaçam o bolsonarismo e tudo o que ele representa, inclusive a política econômica neoliberal do ministro Paulo Guedes. A hesitação em fazer manifestações em um período no qual deveríamos manter o isolamento social e o êxito dessas manifestações são sintomáticos da peculiar situação que estamos enfrentando. Para o que talvez possamos denominar “esquerda tradicional”, as manifestações seriam um risco sanitário e político, na medida em que poderia ser a ocasião para um novo golpe e o endurecimento do regime.

IHU On-Line – A necropolítica é uma ameaça à democracia brasileira? Por quê?

Eduardo Mei – A necropolítica é absolutamente contraditória com qualquer forma de democracia, mesmo a nossa precária democracia que perdurou até 2016 e da qual temos tantas saudades. A necropolítica é a institucionalização da exclusão social e da violência estatal e paraestatal contra a maioria da população brasileira, pobre, negra, indígena, excluída.

Publicado originalmente em: http://www.ihu.unisinos.br/600046-a-necropolitica-brasileira-e-sua-origem-na-guerra-colonizadora-entrevista-especial-com-eduardo-mei

Conflito no norte do Paraguai: Entre a Força-Tarefa Conjunta e o Exército do Povo Paraguaio

Vitória Totti Salgado: Mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais ‘San Tiago Dantas’ (UNESP, UNICAMP, PUC-SP).

E-mail: vitoria.totti@unesp.br

 

Na região norte do Paraguai, nos departamentos de Concepción, San Pedro e Amambay, o grupo intitulado Ejército del Pueblo Paraguayo (EPP, Exército do Povo Paraguaio) atua sob essa alcunha desde março de 2008. Apesar do grupo ter adotado o nome EPP somente no início do século, as suas raízes remontam ao período de transição para o regime democrático no Paraguai, após a queda do ditador Alfredo Stroessner, em 1989. Trata-se de um grupo armado organizado, composto por homens e mulheres da zona rural, com formação teórica e política de esquerda, cujos líderes possuem antecedentes de militância cristã (MARTENS, 2017). O EPP postula o uso da violência revolucionária como estratégica de mudança política e social, como expresso em seus comunicados e proclamações, e reivindica a redistribuição de terras por meio da reforma agrária e a proibição do uso de agrotóxicos na região, dentre outras pautas que colocam em evidência as necessidades do povo campesino (MARTENS, 2017).

Ao iniciar uma análise sobre o corrente conflito entre as forças estatais do Paraguai e o Exército do Povo Paraguaio, propõe-se uma reflexão sobre: (i) o histórico, a estrutura e o funcionamento do EPP enquanto grupo armado organizado; (ii) as características da região onde o grupo atua e a presença de grupos brasileiros ligados ao tráfico internacional como o Primeiro Comando da Capital (PCC) e o Comando Vermelho (CV) nesta mesma região; e (iii) as respostas estatais de combate ao crime organizado e ao EPP na região norte do país.

Existem interpretações díspares e contraditórias, tanto na esfera pública como privada, assim como nos meios de comunicação locais, em relação à natureza do EPP, os seus objetivos, e quem se beneficia com a sua existência (MARTENS, 2017). A produção acadêmica-científica sobre as ações do grupo e o conflito ainda é escassa, e não há consenso sobre sua identidade e principais características, sendo nomeado de diferentes maneiras nos últimos anos: grupo guerrilheiro, terroristas, insurgentes, ou simplesmente criminosos[1]. A determinação da natureza do grupo transcende o interesse acadêmico, pois é capaz de fornecer informações factíveis aos tomadores de decisão, às organizações e movimentos sociais, aos partidos e movimentos políticos, entre outras instituições de interesse que realizam ações na mesma área de influência do EPP, a fim de facilitar a compreensão sobre as implicações e consequências de sua abordagem frente as ações do grupo (MARTENS, 2017).

Nesse sentido, de modo a compreender o atual conflito entre as forças estatais do Paraguai e o EPP, é necessário perscrutar as origens que levaram a criação do grupo. Durante a ditadura de Stroessner (1954-1989), os departamentos de Concepción e San Pedro vivenciaram um considerável fluxo de migrantes rurais como parte do eje norte (eixo norte) do programa de colonização, que foi executado pela agência estatal de reforma agrária, o Instituto de Bienestar Rural (IBR). De 1963 a 1988, cerca de 24 mil famílias receberam terras fiscais (terras estatais) em colônias rudimentares nos dois departamentos. No entanto, a Comisión de Verdad y Justicia reportou, em 2008, que 36 porcento do total de terras fiscais atribuídas aos dois departamentos eram ilegais e foram vendidas pelo regime Stroessner para os seus apoiadores civis e militares (NICKSON, 2018). Assim sendo, a maioria das pessoas assentadas não possuía definitivamente os títulos da terra, apesar de pagarem prestações mensais aos funcionários do IBR.

O fracasso do criminoso programa de colonização do eje norte contribuiu para a emergência de um movimento cooperativo campesino, no início da década de 1960, denominado Ligas Agrarias Cristianas (LAC), promovido por setores radicais da Igreja Católica. O grupo foi violentamente reprimido em meados dos anos 70 e, somente após a queda de Stroessner, em 1989, voltaria a surgir um movimento campesino, nomeado Organización Campesina del Norte (OCN) e liderado pelos sobreviventes da LAC (NICKSON, 2018).

A gênese do EPP, dado o histórico apresentado previamente, pode ser associada à Igreja Católica e aos primeiros movimentos campesinos da região norte do Paraguai. Em abril de 1990, Juan Arrom e Alcides Oviedo se conheceram na Universidade Católica de Assunção, e ambos viriam a se tornar os líderes-fundadores do EPP. Em 1992, Oviedo e outros estudantes fundaram o Movimiento Monseñor Oscar Romero (MMOR), um movimento radical católico que rapidamente se converteria no Ejército Revolucionario del Pueblo (ERP), uma ala militar nominalmente independente, porém sob o controle do embrionário Partido Patria Libre (PPL). Em 1997, o ERP se mudou para o departamento de San Pedro onde estabeleceria contato com os membros restantes da LAC.

O ERP e as suas reivindicações viriam a ganhar espaço na mídia após o sequestro de Maria Edith Bordon de Debernardi, filha do diretor paraguaio da Itaipú Binacional, em 2001. Bordon foi libertada 64 dias depois de seu sequestro sob o pagamento de aproximadamente 1 milhão de dólares. Em 2004, a filha do ex-presidente Raúl Cubas Grau, Cecilia Cubas, foi também sequestrada. O grupo recebeu o pagamento de 300 mil dólares e, mais de dois meses após o pagamento, o corpo de Cubas foi encontrado em uma casa em Ñemby. Depois desse episódio, o Partido Patria Libre rompeu laços com o então ERP. Em março de 2008, o ERP seria renomeado Ejército del Pueblo Paraguayo e realizaria o seu primeiro ataque sob a autoria do novo grupo: um incêndio de maquinários agrícolas pertencentes a um latifundiário brasiguayo produtor de soja (McDERMOTT, 2015).

A zona geográfica de atuação do EPP – os departamentos de Concepción, San Pedro e Amambay – possuem algumas características específicas que desvelam aspectos importantes da perenidade do grupo na região. Concepción, San Pedro e Amambay juntos somam cerca de 32% de todo o território Oriental do Paraguai, com uma população de quase 700 mil pessoas. Concepción e San Pedro são departamentos onde há grande presença da pecuária bovina e, segundo dados oficias do Ministério da Agricultura do Paraguai (2012), em ambos departamentos, 22.020 pessoas possuem entre 1 a 20 cabeças de gado, enquanto menos de 500 pessoas possuem o poder econômico para ter mais de 1.000 cabeças de gado bovino (IRALA; CARDOZO, 2016). Ademais, nas últimas décadas, o cultivo de soja e grãos têm crescido exponencialmente na região, o que se soma ao processo de “estrangeirização” e concentração da posse da terra no Paraguai, processo no qual o Brasil possui um papel determinante (PEREIRA, 2016). Tais dados revelam consequências da desigual distribuição de terras e das perniciosas consequências da Era Stroessner para o campesinato.

Além disso, os departamentos da fronteira nordeste do Paraguai coincidem com a área de atuação de grupos brasileiros ligados ao narcotráfico internacional, como o Primeiro Comando da Capital (PCC) e o Comando Vermelho (CV). Os territórios de Concepción e Amambay, principalmente, são usados como portos de entrada para a cocaína boliviana, peruana ou colombiana que entram no Paraguai para seguir, via terrestre, para o mercado brasileiro (MARTENS, 2019).

Apesar de haver especulações sobre a vinculação do EPP ao narcotráfico, especialmente às grandes plantações de cannabis na região, fontes do Ministério do Interior, da Procuradoria Geral e da Secretaria Nacional Antidrogas do Paraguai declararam que não há casos abertos que vincule diretamente o EPP ao narcotráfico e nem evidências que comprovem tal relação. (McDERMOTT, 2015; MARTENS, 2017).

Desde a sua criação, o EPP realizou mais de cem ações armadas, a grande maioria nos departamentos de Concepción e San Pedro. Essas ações consistem em sequestros, ataques a propriedades, atentados contra postos policiais ou militares isolados, bombas colocadas em meios de comunicação e em uma sucursal da Procuradoria Geral, dois ataques a torres de eletricidade e diversas emboscadas. Nestes atentados, morreram mais de sessenta pessoas, tanto civis como de forças policiais ou militares (McDERMOTT, 2015; MARTENS, 2017).

Em 2010 e 2011, o presidente Fernando Lugo declarou Estado de Exceção (lei 3994/10 e lei 4473/1), por 30 e 60 dias respectivamente, e ambas as declarações abarcavam os departamentos de Concepción e San Pedro. Nas duas ocasiões, os motivos para as declarações referiam-se ao combate ao EPP devido aos ataques cometidos pelo grupo (IRALA; CARDOZO, 2016). Em 2013, logo após assumir a presidência do Paraguai, Horacio Cartes enviou ao Congresso uma reforma para permitir a atuação do exército contra o EPP. A lei 5036/13 modificou a lei 1337 “De Defensa Nacional y de Seguridad Interna” com a finalidade de permitir a participação dos militares na segurança doméstica do país. Em 24 de agosto de 2013, o presidente Cartes estabeleceu a Fuerza de Tarea Conjunta (FTC, Força-Tarefa Conjunta) através do Decreto n° 103, uma força armada integrada por efetivos militares, policiais e da Secretaria Nacional Antidrogas (SENAD), cujo objetivo é combater o crime organizado e grupos criminais que operam na zona norte do país (McDERMOTT, 2015; MARTENS, 2017). Desde então, os departamentos de Concepción, San Pedro e Amambay, têm presença militar extraordinária permanente, apesar de terem sido alvo de intervenções pelas Forças Armadas desde 2010 sob a forma de estados de exceção ou operações militares (MARTENS, 2017).

Apesar do EPP atuar em uma zona geográfica restrita, as ações tanto da polícia como da FTC foram insuficientes para a dissolução ou contenção do grupo. A grande mídia insinua que não há vontade política em combater o grupo efetivamente, e que as redes de corrupção tanto na polícia como no exército são muito desenvolvidas e profundas. Um estudo acadêmico realizado pelo Instituto de Estudos Comparados em Ciências Penais e Sociais (Inecip-Py, acrônimo em espanhol), com apoio da organização Serviço de Paz e Justiça (Serpaj-Py) e o financiamento da agência sueca Diakonia, revelou padrões violentos e abusos por parte da FTC nas comunidades de Concepción e San Pedro. De acordo com o estudo, baseado em cerca de 72 entrevistas com moradores destes departamentos, os abusos da FTC vão desde execuções extrajudiciais à tortura, buscas ilegais e detenções arbitrárias.

Devido às denúncias de violações de direitos humanos cometidas pelos militares da Força-Tarefa Conjunta, o Serjap apresentou em junho de 2019 um documento ao Congresso representando várias organizações civis e camponesas que pedem a revogação da lei 5036/13, que proporcionou a criação da FTC. Ademais, o orçamento da FTC para o ano de 2019 é de mais de 14 milhões de dólares, dinheiro que, de acordo com estas organizações, poderia ser utilizado para melhorar as condições de vida dos moradores de Concepción e San Pedro. Percebe-se que as medidas estatais adotadas para o combate ao EPP se converteram em uma indústria que gera milhões de dólares, administrada pelos mesmos chefes policias e militares responsáveis por este enfrentamento, e que são provenientes de uma cultura institucional com altos índices de corrupção (MARTENS, 2017, 2019).

Em junho deste ano, a Asociación Rural del Paraguay (ARP, Associação Rural do Paraguai) celebrou o trabalho realizado pela Força-Tarefa Conjunta no combate ao EPP, cujos ataques têm impacto direto no trabalho dos latifundiários produtores de soja e gado bovino da região. Não obstante, a opinião pública revela enorme insatisfação com os esforços do governo vigente, de Mario Abdo Benítez, contra o grupo, devido às várias denúncias de violações de direitos humanos pela FTC, aos altos orçamentos e gastos públicos destinados à Força-Tarefa, e aos altos índices de corrupção dentre os policiais e militares envolvidos no combate ao grupo guerrilheiro. O confronto entre a FTC e o EPP na região norte do Paraguai acaba por agravar os problemas que a região enfrenta há décadas, quais sejam, a desigualdade social, a pobreza, a violência, a ausência do Estado, e a presença patente do crime organizado e do tráfico internacional de drogas.

 

 

Fonte Imagética: Gentileza (2020). Disponível em: https://www.ultimahora.com/fuerza-tarea-conjunta-indaga-quema-tractores-concepcion-n2884279.html

 

NOTAS

[1] Para obter mais informações sobre o EPP, ver: MARTENS, Juan A. Aproximaciones a la naturaleza del EPP desde la perspectiva de la insurgencia, onde são abordadas suas características e formas de ação, áreas de atuação e número de membros, meios propaganda, ações de confronto realizadas, relacionamento com o narcotráfico, fontes de financiamento, relações internacionais, entre outros aspectos. Disponível em: http://novapolis.pyglobal.com/pdf/novapolis_ns_12.pdf

 

REFERÊNCIAS

DIAZ, Fernanda D. Paraguay y el estado de excepción frente al EPP como nuevo actor armado. Boletín Informativo del CENSUD, n. 21, abr. 2010. Disponível em: http://sedici.unlp.edu.ar/handle/10915/37538. Acesso em: 10 jun. 2020.

IRALA, Abel Enrique; CARDOZO, Hugo J. P. Violencia armada y avance de la soja en el norte del Paraguay. Revista Conflicto Social, v. 9, n. 15, p. 180-208, 2016.

MARTENS, Juan A. Entre grupos armados, crimen organizado e ilegalismos: actores e impactos políticos y sociales de la violência en la frontera noreste de Paraguay con Brasil. Revista sobre Acesso à Justiça e Direitos nas Américas, Brasília, v. 3, n. 3, p. 65-87, ago./dez. 2019.

MARTENS, Juan A. Aproximaciones a la naturaleza del EPP desde la perspectiva de la insurgencia. Revista Novapolis, Asunción: Arandurã, n. 12, p. 43-68, diciembre 2017. Disponível em: http://novapolis.pyglobal.com/pdf/novapolis_ns_12.pdf. Acesso em: 10 jun. 2020.

McDERMOTT, Jeremy. Ejército del Pueblo Paraguayo, ¿un nuevo grupo insurgente o simples bandidos? Programa de Cooperación en Seguridad Regional. Friedrich-Ebert-Stiftung (FES), Bogotá, 2015.

NICKSON, Andrew. Revolutionary Movements in Latin America after the Cold War: The Case of the Ejército del Pueblo Paraguayo. Bulletin of Latin American Research, Society of Latin American Studies. United Kingdom: Oxford: John Wiley & Sons Ltd, 2018.

PEREIRA, Lorena I. Estrangeirização da terra no Paraguai: Migração de camponeses e latifundiários brasileiros para o Paraguai. Boletim DATALUTA, n. 97, jan. 2016.

O complexo e multifacetado conflito no Mali

Maria Carolina Chiquinatto Parenti: Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (UNESP – UNICAMP – PUC-SP). E-mail: mc_parenti@hotmail.com.

 

O Mali vem enfrentando uma série de instabilidades em sua história recente. Localizado na porção ocidental do continente africano, o Mali se situa na região do Sahel e é um dos países mais pobres do mundo1. Aliado ao fato de ter tido uma independência tardia, deixando de ser colônia francesa em 1960, uma série de questões que envolvem desde o próprio governo até a diversidade de grupos étnicos e a presença de grupos armados fizeram com que o país fosse palco de instabilidade política, econômica e social (PARENTI, 2020).

O país está dividido em oito regiões administrativas (Timbuktu, Gao, Kidal, Mopti, Ségou, Sikasso, Kayes, Koulikoro) e a capital Bamako, e faz fronteira com Argélia, Burkina Faso, Costa do Marfim, Guiné, Mauritânia, Níger e Senegal. O idioma oficial é o francês e os malineses são majoritariamente islâmicos. Com população de cerca de 18,54 milhões de pessoas, o Mali ainda abriga uma grande quantidade de etnias, como Bambara, Malinke, Sonike, Tuaregues, Moorish, Fulani, Songhay, Dogon e Peuhl (DUARTE, 2013).

Dentre as etnias presentes na sociedade, destacam-se os tuaregues, um grupo nômade minoritário que vive de forma pastoril na região norte do país (Gao, Timbuktu e Kidal), além do sul da Argélia e sudoeste da Líbia, Níger, Mauritânia e Burkina Faso. Historicamente, sempre foram negligenciados pelo governo, se tornando cada vez mais marginalizados e discriminados. Isso despertou um desejo pela independência da região e pela criação de um Estado autônomo, o Azawad (VELÁSQUEZ, 2014).

De modo a concretizar seus objetivos, a etnia se organizou em vários grupos e realizou revoltas pelo país, em que se destacam as realizadas em 1962, 1990, 2006 e 2012. Diante disso, foram efetuadas algumas tentativas de acordo entre a etnia e o governo, mas sem muito sucesso, levando a deterioração da situação e a escalada da violência. A primeira grande revolta aconteceu logo após a independência do Mali e ainda não havia um movimento unificado entre eles. O governo lançou uma forte ofensiva contra a etnia em 1963, derrotando-os militarmente, o que ocasionou muitos refugiados indo principalmente para a Argélia, Mauritânia e Líbia (KEITA, 1998).

Os anos seguintes também foram conturbados. Em 1968, o primeiro presidente, Modibo Keita, foi deposto por um golpe militar e quem assumiu o governo foi o Tenente Moussa Traoré. Ademais, o Sahel passou por um longo período de seca nas décadas de 1970 e 1980. Aliado a isso, novas agitações voltaram a ocorrer, resultando na segunda grande revolta. Nesse momento, já havia uma resistência formada, e a revolta de 1990 contou com a participação de grandes grupos que lutavam para a formação do Azawad (GAASHOLT, 2013; KRINGS, 1995).

Sem capacidades para lutar e conter os avanços dos grupos, o governo ofereceu um acordo em 1991, o Acordo de Tamanrasset, que garantia autonomia para a região de Kidal (que se tornou nesse momento a oitava região administrativa) e a formulação de programas de desenvolvimento da região norte. No entanto, ele nunca foi cumprido. A situação no país resultou em um novo golpe de Estado em março de 1991 e Amadou Toumani Touré assumiu o governo de transição. Ele não estava interessado em cumprir o Acordo, mas mesmo assim decidiu discutir os arranjos políticos. Esperava-se que isso estabilizasse o país, mas a revolta continuou a ocorrer e os tuaregues prosseguiram com os ataques e, dessa vez, se utilizando de táticas de guerrilha (KLUTE, 2013; KRINGS, 1995).

Como consequência, foi assinado um novo acordo, o Pacto Nacional para a Paz no Norte em abril de 1992, em Bamako, que determinava a integração da etnia nas forças armadas e nos serviços administrativos do país. Mesmo apresentando problemas e a integração nos aspectos sociais e econômicos não ter sido alcançada, o Pacto firmou uma paz que, embora frágil, perdurou por dez anos (GAASHOLT, 2013).

O conflito voltou a emergir em 2006 quando os rebeldes acusaram o governo de não cumprir com as disposições previstas no Pacto e após cerca de 60 tuaregues pertencentes ao exército malinês abandonarem seus cargos sob alegação de discriminação. O governo ofereceu um novo acordo baseado no Pacto Nacional, mas que também não foi implementado. O conflito permaneceu até 2009, quando o governo conseguiu derrotá-los militarmente, com eles fugindo principalmente para a Líbia (DUARTE, 2013).

Em outubro de 2010, se concretizou uma união entre os diversos grupos tuaregues que lutavam pela criação do Azawad por meio da formação do Movimento Nacional pela Libertação do Azawad (Mouvement National pour la Libération de l’Azawad – MNLA), um grupo separatista baseado em um sistema político que separa Estado e religião. Começaram então a ocorrer confrontos entre o MNLA e o governo no início de 2012 e a violência se intensificou, dando início a quarta grande rebelião (BLECK; MICHELITCH, 2015).

Nesse sentido, o ano de 2012 foi um período de grande instabilidade, uma vez que, aliado à violência tuaregue, a rebelião deixou o país mais propenso ao surgimento de grupos militantes islâmicos. Para manter o controle da região norte, os grupos separatistas se aliaram aos grupos extremistas para conseguir construir e manter um sistema administrativo. Porém, com interesses divergentes, os grupos jihadistas expulsaram os grupos tuaregues das principais cidades conquistadas, passando a colocar em prática seus próprios objetivos – instituir um Estado baseado nas leis fundamentalistas islâmicas (Sharia). Nos anos de 2012 e 2013, a violência se intensificou ainda mais, com esses grupos realizando ataques em diversas partes do país (FRANCIS, 2013).

O conflito no Mali é dinâmico, o que constitui, portanto, um desafio a nomeação dos movimentos atuantes devido a sua volatilidade, com novas alianças e surgimento de novos grupos. Ainda assim, alguns podem ser destacados. Na escalada do conflito atual, em 2012, os principais grupos islâmicos presentes no Mali à época eram Ansar Dine, Al Qaeda no Magreb Islâmico (Al Qaeda in the Islamic Maghreb – AQIM) e Movimento para a Unidade e a Jihad na África Ocidental (Movement for Unit and Jihad in West Africa – MUJAO). Em agosto de 2013, o AQIM formou um novo grupo, o Al Mourabitoun, além de que em março de 2017, o Ansar Dine, a Frente de Libertação de Macina, Al Mourabitoun e AQIM anunciaram uma aliança conjunta sob um novo grupo armado, o Grupo para o Apoio ao Islã e aos Muçulmanos (Groupe de Soutien à l’Islam et aux Musulmans – GSIM). O GSIM constitui atualmente o grupo extremista mais atuante no Mali (RUPESINGHE; BOAS, 2019).

O mesmo ocorre em relação aos grupos armados tuaregues. Atualmente, tais grupos que lutam pela independência da região norte do Mali estão reunidos em torno de duas coalizações que se iniciou em 2014: a Coordenação dos Movimentos do Azawad (Coordination des Mouvements de l’Azawad – CMA) e Plataform (Plataforma). A CMA é composta pelos grupos MNLA, Conselho Superior da Unidade do Azawad e Movimento Árabe do Azawad; enquanto a Platform ou é composta pela Coordenação de Movimentos e Frentes Patrocinados de Resistência, Coalizão Popular do Azawad e outra facção do Movimento Árabe do Azawad (UN, S/2014/692, 2014).

Também em 2014, deu-se início a um diálogo entre as coalizões e o governo para cessar as hostilidades e, após várias rodadas de negociações, foi assinado o Acordo de Paz e Reconciliação do Mali entre o governo malinês e a coalizão dos grupos em 15 de maio de 2015. Tal situação só foi possível porque os grupos tuaregues e o governo se encontravam engajados em encontrar uma solução comum para o problema que vem afligindo o país há décadas. Todavia, o diálogo com os grupos fundamentalistas islâmicos permanecia um desafio, uma vez que continuam realizando ataques por diversas partes do país, o que dificultava ainda mais a estabilização do Mali (BOUTELLIS, 2015).

Devido ao constante agravamento da situação ao longo dos anos, o Mali demandou ajuda internacional. Foi instituída em 20 de dezembro de 2012 uma missão conjunta entre a Comunidade Econômica dos Estados da África Ocidental, a União Africana, com apoio da ONU – a Missão Internacional Africana de Apoio ao Mali (African-led International Support Mission to Mali ­– AFISMA). Estabelecida para um período inicial de um ano, a AFISMA possuía como objetivos o restabelecimento da integridade territorial e proteção da população civil, mas que, devido à insuficiência de tropas e de financiamento, não obteve êxito e não conseguiu cumprir o seu mandato (WEISS; WELZ, 2014).

Posteriormente, sofreu intervenção da França a pedido do próprio governo, cujas tropas ainda permanecem no país. Assim, no momento em que os grupos jihadistas aumentaram sua área de atuação e assumiram o controle de importantes cidades em meados de 2012, a França lançou a Operação Serval em janeiro de 2013 com o objetivo de impedir que os grupos extremistas passassem a controlar a capital e as demais regiões do país, e restaurar a integridade territorial do Mali. A Serval passou por uma configuração, sendo substituída pela Operação Barkahe em agosto de 2014, que atua com o objetivo de rastrear e conter grupos extremistas islâmicos por toda a região do Sahel (WEISS; WELZ, 2014).

Além disso, em fevereiro de 2013, a União Europeia se envolveu diretamente no conflito ao enviar ao país uma missão de treinamento para auxiliar as forças de defesa e segurança do Mali, a European Union Training Mission in Mali (EUTM-Mali). No âmbito regional, os governos de Burkina Faso, Chade, Mali, Mauritânia e Níger formaram o Grupo dos Cinco do Sahel para aumentar a cooperação em virtude dos desafios de segurança na região (BOUTELLIS, 2015).

Diante da complexidade e do agravamento do conflito no Mali, a ONU desdobrou em 25 de abril de 2013 uma operação de paz, a Missão Multidimensional Integrada das Nações Unidas de Estabilização no Mali (Mission Multidimensionnelle Intégrée des Nations Unies pour la Stabilisation au Mali – MINUSMA), que permanece até os dias atuais. O mandato da Missão possui, entre suas responsabilidades, o apoio ao processo político e à estabilização do país. O mandato ainda autorizou a utilização de todos os meios necessários para proteger o próprio mandato, as forças da ONU e a proteção aos civis contra qualquer tipo de violência física. A MINUSMA opera em um ambiente hostil e adota uma postura robusta, se utilizando do uso da força para impor o mandato e, como o próprio nome indica, trata-se de uma operação multidimensional de estabilização. A AFISMA e a Serval foram operações simultâneas e, quando a AFISMA foi substituída pela MINUSMA, a operação da França e da ONU passaram a ocorrer também ao mesmo tempo (UN, S/RES/2100, 2013).

Mesmo diante de tais esforços e com alguns progressos – como a assinatura do Acorde de Paz e a realização de eleições (com Boubacar Keita sendo eleito presidente nas eleições de 2013 e reeleito em 2017) –, os embates não cessaram. Além de violações no cessar fogo, o Acordo contém problemas, uma vez que foi assinado em meio a combates e não abrange todas as partes em conflito, como os grupos fundamentalistas islâmicos. Esses grupos, a se destacar o GSIM, continuam a realizar ataques contra a população civil, o governo e a MINUSMA para concretizar seus objetivos, e não possuem interesse em tal Acordo, tentando ruir com o processo de paz (BANCO, 2019).

Nesse sentido, a situação de segurança no Mali ainda é algo frágil e preocupante, que continua a se deteriorar. Como consequência das atividades dos grupos extremistas, surgiram milícias de autodefesa e iniciou um ciclo de embates entre comunidades étnicas. Assim, a partir de 2016, além da violência na região norte, o conflito se estendeu para a região central do país, onde a violência intercomunitária cresceu significativamente, principalmente entre as etnias Dogon e Fulani. O aumento das tensões entre essas comunidades, que estão competindo pelo acesso aos recursos naturais, afeta ainda mais os civis, dificultando a estabilização do Mali (RUPESINGHE; BOAS, 2019).

A MINUSMA se encontra em um ambiente extremamente hostil e pode ser considerada uma nova categoria de missões de paz. A missão possui a tarefa de auxiliar o governo a restaurar a autoridade e o controle estatal na região norte. Isso os colocaram em confronto direto com a ameaça dos grupos armados, que a considera como uma parte integrante do conflito. Nesse sentido, a MINUSMA é considerada como uma missão parcial, que está apoiando o governo. Os constantes ataques contra a MINUSMA desde seu desdobramento tornaram a missão no Mali a operação de paz mais mortal entre todas que a ONU estabeleceu – com 206 fatalidades desde o início da missão até o final de 2019 (TESFAGHIORGHIS, 2016).

A MINUSMA ainda enfrenta obstáculos em relação às suas capacidades logísticas e de pessoal, uma vez que, como as bases da ONU são atacadas com frequência, muito do que poderia ser usado para a proteção de civis acaba indo para a proteção do próprio pessoal da missão. Os ataques direcionados às instalações da ONU torna a proteção de civis mais dificultosa e a população reluta em acreditar que os militares possam protegê-los, considerando-a como uma fonte de insegurança (BANCO, 2019; TESFAGHIORGHIS, 2016).

O conflito no Mali é complexo e multifacetado, a situação no país permanece caótica e não há perspectivas de melhora. O contexto atual envolve o governo; os grupos tuaregues que, mesmo com o Acordo, ainda lutam por território; os grupos extremistas, que permanecem bastante atuantes e representam a maior ameaça à paz; e a violência étnica que, desde 2016, vem aumentando. Os embates entre os grupos e os ataques direcionados aos civis resultaram em milhares de mortos (por ser um conflito atual, é difícil de calcular a quantidade exata), refugiados (cerca de 142.000 principalmente na Burkina Faso, Mauritânia e Níger), mais de 218 mil pessoas deslocadas internamente, além da deterioração da situação humanitária e violação dos direitos humanos, afetando mais de 5 milhões de pessoas. O conflito no Mali é altamente politizado e envolve uma grande quantidade de atores com diferentes interesses e objetivos. A MINUSMA possui um mandato robusto desde seu desdobramento e adotou uma postura mais agressiva conforme os anos devido a um agravamento do conflito. No entanto, ainda não conseguiu estabilizar a situação, conter os ataques dos grupos armados e proteger a população civil. Nesse sentido, a segurança no Mali ainda constitui algo precário e a paz está longe de ser atingida (PARENTI, 2020; UN, S/2019/454, 2019).

 

 

Fonte Imagética: Wikimedia

 

NOTAS

[1] Apresentando uma crítica condição no ranking do Índice de Desenvolvimento Humanos (IDH) – 0,427 em 2018 –, o Mali é um dos 25 países mais pobres do mundo (HUMAN DEVELOPMENT INDICATORS, 2019).

 

REFERÊNCIAS

BANCO, Eric. Mali: The Deadliest Peacekeeping Mission In The World. International Buisness Times, [s.I.], 15 ago. 2015. Disponível em: https://www.ibtimes.com/mali-deadliest-peacekeeping-mission-world-2054659. Acesso em: 14 out. 2019.

BLECK, Jaimie; MICHELITCH, Kristin. THE 2012 CRISIS IN MALI: ONGOING EMPIR-ICAL STATE FAILURE. African Affairs, [s. I.], v. 114, n. 457, p.598-623, ago. 2015.

BOUTELLIS, A. Can the UN Stabilize Mali? Towards a UN Stabilization Doctrine? Stabil-ity: International Journal of Security & Development, [s.l.], v. 4, n. 1, pp. 1–16, jun. 2015.

DUARTE, Geraldine Rosas. Crise no Mali: as origens do conflito e os entraves para a resolu-ção. Conjuntura Internacional, Belo Horizonte, v. 10, n. 1, p.7-14, jan/jun. 2013.

FRANCIS, David J.. The regional impact of the armed conflict and French intervention in Mali. Norwegian Peacebuilding Resource Centre, [s. I.], p.1-16, abr. 2013.

GAASHOLT, Ole Martin. Northern Mali 2012: The short-lived triumph of irreden-tism. Strategic Review For Southern Africa, Londres, v. 35, n. 2, p.68-91, nov. 2013.

HUMAN DEVELOPMENT INDICATORS. United Nations Development Programme (UNDP). Disponível em: <http://hdr.undp.org/en/countries/profiles/MLI>. Acesso em: 02 jun. 2020.

KEITA, Kalifa. Conflict and conflict resolution in the Sahel: The Tuareg insurgency in Ma-li. Small Wars & Insurgencies, [s.l.], v. 9, n. 3, p.102-128, dez. 1998.

KLUTE, Georg. POST-GADDAFI REPERCUSSIONS IN NORTHERN MALI. Strategic Review For Southern Africa, [s. I.], v. 35, n. 2, p.53-67, nov. 2013.

KRINGS, Thomas. Marginalisation and Revolt among the Tuareg in Mali and Niger. Geojournal, [s.l.], v. 36, n. 1, p.57-63, mai. 1995.

PARENTI, Maria Carolina Chiquinatto. A coordenação civil-militar na operação de paz da ONU no Mali. 2020. 187 f. Dissertação (Mestrado) – Curso de Relações Internacionais “San Tiago Dantas” (Unesp/Unicamp/Puc-sp), São Paulo, 2020.

RUPESINGHE, Natasja; BOAS, Morten. Local Drivers of Violent Extremism in Central Ma-li. UNDP Policy Brief, [s.I.], p. 1-14, set. 2019.

TESFAGHIORGHIS, Sofia Micael. (In)securing Humanitarian Space?: A Study of Civil-Military Interaction in Mali. 2016. 121 f. Dissertação (Mestrado) – Curso de Ciência Política. University of Oslo, [s.i.], 2016.

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UN. S/RES/2100. Security Council resolution. New York, 25 Apr. 2013.

VELÁSQUEZ, Giuliana Stephanie Saldarriaga. La legalidad de la intervención en Ma-lí. Revista Derecho Pucp, n. 73, p.239-248, jul/nov. 2014.

WEISS, Thomas G.; WELZ, Martin. The UN and the African Union in Mali and beyond: a shotgun wedding?. International Affairs, [s.l.], v. 90, n. 4, p.889-905, jul. 2014.

Conflito Indo-paquistanês

Artur Cruz Bertolucci, Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais ‘San Tiago Dantas’ (UNESP, UNICAMP, PUC-SP)

 

Colônias britânicas até 1947, Índia e Paquistão têm suas respectivas histórias marcadas por rivalidades e conflitos desde a independência. Ambos Estados se originaram a partir de disputas internas durante o processo de independência da Índia Britânica, com a Liga Muçulmana, sob a liderança de Muhammad Ali Jinnah, desejosa pela criação de um Estado para os Muçulmanos, em oposição ao ideal de unidade em um único Estado para todas as etnias e religiões do Congresso Nacional Indiano (CNI), que tinha como lideranças Mahatma Gandhi e Jawaharlau Nehru.

Com maior presença de fiéis da religião Hindu no subcontinente indiano, grupos muçulmanos tinham receio de serem excluídos do processo decisório e ter pouca representatividade, o que levou à formação da Liga e a migração de quadros do CNI para esta, em busca de maior representatividade muçulmana no processo de negociação de independência.

Durante as negociações para a independência do subcontinente, foram criados dois Estados, a Índia e o Paquistão, este último dividido em dois, Oriental e Ocidental. Essa divisão buscava garantir maior segurança e representatividade para os dois maiores grupos religiosos da região, intentando garantir uma estabilidade por meio de Estados que viessem a representar seus interesses. Porém, durante o processo de formação destes, iniciou-se uma migração em massa de hindus do recém-criado Paquistão para a Índia independente, e de muçulmanos desta para o primeiro. Com as migrações e os sangrentos conflitos e embates durante elas, acentuou-se as tensões entre os grupos religiosos que agora se viam representados em seus Estados.

Porém, é no final de 1947 e início de 1948 que as rivalidades trazidas do período colonial – e mesmo antes deste – chegaram ao ápice e os dois países se enfrentaram, pela primeira vez, em uma guerra. O motivo do primeiro confronto entre ambos foi o controle sobre região da Caxemira, a qual continua a ser o principal foco de disputas entre Índia e Paquistão até os dias de hoje, uma vez que os resultados dos confrontos já travados ao longo dos últimos 70 anos não foram satisfatórios para nenhum dos dois lados.

A disputa iniciou-se ainda no processo de independência dos dois países, onde ambos passam a alegar a necessidade de que a região, até então autônoma, deveria ser parte de seus Estados recém-criados. O Paquistão alegava que, visto a população ser de maioria islâmica, era natural que a Caxemira passasse para o controle de Islamabad. Por sua vez, a Índia acreditava ser importante para sua imagem de uma república secular anexar um território de maioria islâmica.

Apesar disso, o Marajá Hari Singh, governante caxemir, continuava a defender a independência do território. A posição do Marajá muda quando do início de incursões armadas de tribos paquistanesas no território caxemir, levando-o a requisitar apoio militar indiano, para o combate aos invasores. Porém, o governo indiano condicionou o apoio militar à anexação da Caxemira ao Estado indiano, levando Singh a renunciar a sua independência em vista da urgência da situação.

Assim, tropas indianas foram enviadas para a região – recém-anexada ao país – a fim de combater as tribos que penetravam no território caxemir. Mesmo com indicativos de auxílio por parte do governo e exército paquistanês às milícias tribais, não houve, no começo, o emprego das forças regulares paquistanesas no conflito, o que muda a partir de abril de 1948, com o efetivo emprego das forças armadas regulares paquistanesas, que se juntaram às forças irregulares que já combatiam as tropas indianas.

O primeiro conflito entre os recém-criados Estados no Sul da Ásia se encerrou sem que nenhuma das partes ficassem satisfeitas com o resultado, visto que nenhuma delas obteve o domínio total da Caxemira, dividindo-a em zonas de controle. Apesar disso, ambos os países continuam a reivindicar o território caxemir – que ainda tem uma parte sob domínio chinês, após a guerra sino-indiana de 1962. Portanto, até os dias de hoje a Caxemira continua sendo o principal motivo de conflito entre Índia e Paquistão e, também, entre estes Estados e os caxemires, que tiveram seu direito de escolha negado com as recusas de se estabelecer um plebiscito após o conflito em 1948.

Entre 1964 e 1965 as disputas pela Caxemira levou novamente os dois países à guerra, ocasionando inúmeras mortes e a necessidade de intervenção de potências estrangeiras e da Organização das Nações Unidas (ONU). Ambos os países sofreram sanções e deixaram de receber armamentos de países como os Estados Unidos e a Inglaterra, levando à diminuição da capacidade combativa de ambos. Além disso, o Conselho de Segurança da ONU passou uma resolução requerendo o fim do conflito e o início de negociações entre as partes. Assim, pressionados e debilitados, ambos os Estados adotaram um cessar-fogo e aceitaram negociar, tendo a União Soviética como terceira parte no acordo de Tashkent encerrando a segunda guerra pela Caxemira.

Poucos anos depois, em 1971, mais um conflito entre os países ocorreu, dessa vez não pela Caxemira, mas pela independência do até então Paquistão Oriental, que veio a se tornar Bangladesh. A terceira guerra Indo-paquistanesa – como é conhecida em ambos os países, mas que em Bangladesh é chamada de “liberation war” – foi aquela com o maior número de mortes entre todos os conflitos envolvendo os dois Estados, sendo travada no território do Paquistão Ocidental, em regiões do noroeste indiano e no Paquistão Oriental. Depois de cerca de duas semanas e de sucessivas derrotas, o exército paquistanês se rendeu e foi assinado um novo cessar-fogo entre os países, além da criação do Estado de Bangladesh.

Nos anos 1980 as disputas continuaram, por diversas razões e por diferentes meios: seja pela posse das geleiras Siachen – que chegou a propiciar pequenos confrontos militares, mas sem alcançar o nível de uma guerra entre as partes – ou pelas acusações de auxílio paquistanês a grupos insurgentes no interior da Índia. Contudo, o principal fator de preocupação foi a conquista por parte dos dois Estados do poderio nuclear nas décadas de 1970 e 1980, ainda que Nova Délhi e Islamabad só oficializaram seu status nuclear com testes em 1998. Assim, o risco de conflito nuclear no Sul da Ásia fez com que os primeiros da Índia e do Paquistão se encontrassem e se comprometessem a não atacar as respectivas instalações nucleares e abuscar a normalização das relações entre os dois países, com o início de acordos de paz sobre os territórios disputados.

Apesar dos avanços nas relações entre os países nos anos finais da década de 1980, o que se presenciou foi que, desde o início dos anos 1990, as tensões voltaram a se intensificar entre Índia e Paquistão, com acusações por parte do governo indiano de apoio paquistanês a grupos insurgentes na Caxemira e Punjab. Mas a situação foi atenuada com intervenções internacionais para negociar as relações e as demandas entre ambos, em especial pela ONU e pelos EUA, tendo em vista os riscos de conflitos entre dois Estados com poderio atômico.

Contudo, no final da década e após a corrida nuclear que culminou com Nova Délhi e Islamabad explodindo artefatos nucleares, mais uma guerra eclodiu entre ambos, novamente pela Caxemira. A incursão de combatentes da Caxemira paquistanesa no território controlado pela Índia e o apoio paquistanês aos militantes deu início à Guerra de Kargil. O conflito resultou em mais de 1000 mortes e forçou cerca de 70 mil pessoas a migrarem da região. Com o alto número de baixas e pouco apoio internacional, o Paquistão retirou suas tropas e anunciou um cessar-fogo unilateral.

Os anos 2000 trouxeram uma nova dinâmica para os países, levando a adoção de um cessar-fogo na linha de controle e intensos diálogos para melhorar as relações entre os vizinhos, ainda que sem tocar o tema central da discussão que é o controle sobre a Caxemira. Porém, a adoção dele não significou o fim total das disputas, nem dos confrontos na fronteira e na linha de controle, ainda que os governos mantenham o discurso de que apoiam e defendem o diálogo e a busca por uma resolução do conflito.

Logo em 2001 um ataque terrorista na capital indiana, com grupos paquistaneses entre os suspeitos, representou momento de tensão entre os países e importante inflexão nos apoios internacionais, com maior aproximação entre Nova Délhi e Washington, com o discurso de guerra ao terror, retirando a maior proximidade que os EUA tinham até então com o Paquistão. A segunda década do século XXI continua a apresentar desafios e problemas, com um aumento das tensões e a acusação de atos terroristas na Índia sob apoio do governo paquistanês, dificultando um possível processo de paz.

A eleição de Narendra Modi na Índia serviu para intensificar tal situação, na medida em que o partido de Modi, o Barataya Janata Party (BJP) é um partido nacionalista hindu, adotando um discurso fundamentalista nas questões religiosos para angariar apoio para a agenda do governo. Como resultado dessa escalada de tensões, em fevereiro de 2019 uma disputa entre os dois Estados tomou grande repercussão no mundo.

Um ataque suicida a um comboio de paramilitares indianos na Caxemira, cuja autoria foi assumida pelo grupo Jaish-e-Muhammad (JeM) que opera desde o Paquistão, levou a uma situação de desgaste no relacionamento já tenso dos dois países. O ataque matou 42 soldados, sendo o mais mortal dos últimos 30 anos na região, e levou a uma resposta por parte da Índia, a qual enviou jatos da força aérea para realizar ataques nas bases do grupo, em território paquistanês. A resposta de Islamabad – que não havia sido consultada pela Índia para os bombardeios – levou à captura de um piloto indiano, o qual foi liberado dias depois em um gesto que buscava evitar maiores ataques e que o conflito escalasse.

Modi sempre prometeu a revogação do artigo 370 da constituição indiana, artigo que garantia o status especial da Caxemira e sua maior autonomia na federação, condição negociada para a entrada desta na Índia. Ele cumpriu tal promessa eleitoral em agosto 2019, acentuando as disputas na região. Com maioria da população ainda de islâmicos e com o aumento da repressão por Nova Délhi, é provável que a instabilidade na região permaneça, sem que nenhum dos lados renuncie a sua reivindicação pelo território disputado.

 

Imagem: Narinder Nanu—AFP/Getty Images

Entre máscaras e armas, Brasil de Bolsonaro escolhe seus heróis

Laura M. Donadelli, doutoranda em Relações Internacionais pelo Programa “San Tiago Dantas” (UNESP/UNICAMP/PUC-SP)
Juliana de Paula Bigatão Puig, professora do Departamento de Relações Internacionais da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP)
Supervisoras do Informe Brasil do Observatório Sul-Americano de Defesa e Forças Armadas e pesquisadoras do GEDES

 

Na semana em que o Brasil atingiu a marca de 10 mil mortos pelo novo coronavírus, Jair Bolsonaro recebeu no Palácio do Planalto o tenente-coronel do Exército Sebastião Rodrigues de Moura, o major Curió.  Militar reformado, ex-oficial do Centro de Informações do Exército (CIE) e ex-agente do Serviço Nacional de Informações (SNI), Curió foi um dos responsáveis pela repressão à Guerrilha do Araguaia (1972-1975). A visita não constava na agenda oficial da Presidência, e somente foi incluída por volta das 21h20 do mesmo dia.

Em publicação intitulada “Heróis do Brasil” em suas redes sociais, a Secretaria de Comunicação Social da Presidência (Secom) publicou foto da audiência, acompanhada de um texto que enaltecia a figura de Curió, tratando-o como “herói de guerra”. Bolsonaro e Curió se conheceram em Serra Pelada, no estado do Pará. Em 1986, Curió, então deputado federal, enviou uma carta a Bolsonaro, dizendo que desejava “passar o bastão” ao capitão: “Competirá a você, meu jovem companheiro, carregar este bastão, levando-o à vitória, com a graça de Deus e a ajuda dos homens de bem desta Nação”.

Curió é o autor da frase “quem procura osso é cachorro”, dita numa tentativa de desqualificar os esforços para encontrar os corpos de mortos e desaparecidos do Araguaia. O enunciado estampou um cartaz contrário aos trabalhos da Comissão Nacional da Verdade (CNV) que Bolsonaro pendurou na porta de seu gabinete. Após a visita de Curió ao Planalto, Bolsonaro foi denunciado à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), vinculada à Organização dos Estados Americanos (OEA), por descumprir sentença unânime que condenou o Brasil pelo desaparecimento forçado e morte de dezenas de pessoas durante o período do regime militar (1964-1985).

Concluiu-se no texto da denúncia que “o governo de Jair Bolsonaro não apenas faz com que o Estado brasileiro deixe de cumprir a Sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos em Gomes Lund e outros vs. Brasil, como promove novas violações do direito à verdade, divulgando informações falsas sobre o que aconteceu nas operações contra a “Guerrilha do Araguaia” e na ditadura em geral”. Por meio de nota de seu secretário-executivo, Pablo Saavedra Alessandri, a CIDH acatou a denúncia

 

Quem é o Major Curió?

Curió foi um dos primeiros agentes a serem denunciados no Brasil por crimes cometidos durante a ditadura, num total de seis denúncias – todas relacionadas a crimes como sequestro, assassinato e ocultação de cadáver. Dentre as vítimas, estão militantes do partido comunista que atuavam na região do Araguaia, localizada entre os estados do Pará e do Tocantins, e camponeses locais. As últimas três denúncias foram apresentadas contra Curió em dezembro de 2019, quando o Ministério Público Federal (MPF) fez um balanço sobre as ações relacionadas à guerrilha. Antes disso, em 2011, Curió foi detido por porte ilegal de arma durante uma operação de busca e apreensão, realizada pela Polícia Federal e pelo MPF, que tinha como objetivo encontrar documentos que pudessem revelar a localização de corpos de vítimas da repressão da ditadura brasileira.

Em março de 2012, o MPF encaminhou à Justiça Federal em Marabá, no Pará, a primeira denúncia de crime permanente, referente a violações de direitos humanos praticadas por agentes do regime, tendo Curió como indiciado, acusado de sequestrar cinco militantes: Maria Célia Corrêa, Hélio Luiz Navarro Magalhães, Daniel Ribeiro Callado, Antônio de Pádua Costa e Telma Regina Corrêa. À época, o procurador da República Sérgio Gardenghi afirmou que “o crime de sequestro é de natureza permanente e só termina quando a vítima é posta em liberdade ou quando o corpo é localizado”. Por sua vez, o então procurador-geral da República Roberto Gurgel evitou comentar sobre a possibilidade de Curió responder pelos crimes, reafirmando a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de que os fatos estão abarcados pela Lei de Anistia (6.683/1979). Como prenunciado, o juiz federal João Cezar de Matos, da 2ª Vara Federal de Marabá, rejeitou a denúncia feita pelo MPF, sob alegação de que a Anistia já havia absolvido os supostos criminosos políticos do regime e que os desaparecidos na guerrilha já foram reconhecidos oficialmente como mortos por lei de 1995.

Em agosto de 2012, a 2ª Vara da Justiça Federal no estado do Pará aceitou nova denúncia do MPF contra Curió e Lício Augusto Maciel, acusados de terem sequestrado presos capturados no Araguaia durante a Operação Marajoara. De acordo com a Procuradoria da República no Pará, a responsabilização penal de Curió e Maciel é uma obrigação do Brasil diante da sentença da CIDH, que determinou em 2009 a punição dos repressores da Guerrilha. Os procuradores afirmaram que “não há notícias de sequer um militante que, privado de liberdade pelas Forças Armadas, durante a Operação Marajoara, tenha sido encontrado livre posteriormente”. A ação foi suspensa em dezembro do mesmo ano em caráter liminar.

O MPF voltou a ingressar na Justiça com uma ação civil pública contra a União e Maciel pela prisão, tortura e homicídio de quatro militantes do Movimento de Libertação Popular (Molipo). Os corpos de Ruy Carlos Vieira Berbert, Jeová Assis Gomes, Boanerges de Souza Massa e Arno Preiss nunca foram encontrados. Na ação, o MPF pediu a preservação da prisão onde Berbert morreu e que a União seja declarada responsável pelos crimes e pelas omissões na identificação dos responsáveis e nas circunstâncias que os atos de violência ocorreram. Maciel, em entrevista para O Estado de S. Paulo, afirmou que “estava combatendo comunistas guerrilheiros, como esses vagabundos da Molipo” e que “os que resistiram, morreram; quem não reagiu, viveu”. À época, Maciel e Curió já figuravam entre os agentes mais processados pelo Ministério Público por violações de direitos humanos.

Entre uma denúncia e outra, e após dez anos de consultas aos arquivos pessoais de Curió, o jornalista Leonencio Nossa lançou o livro “Mata! – O Major Curió e as Guerrilhas no Araguaia”. O livro lança novas informações que contestam os relatórios falsos divulgados pelo regime sobre as circunstâncias das mortes que ocorreram na região do Araguaia, além do total de indivíduos executados, que totalizariam 41 e não 25 – como informado oficialmente. A segunda parte do livro associa a participação do tenente-coronel como comandante da região garimpeira de Serra Pelada. Nas palavras de Curió ao jornalista: “em Serra Pelada eram dois os objetivos: extrair o ouro para encher o cofre do Banco Central e continuar o trabalho político. […] Araguaia foi uma guerra, nunca esqueça”.

Como parte de seus trabalhos em Marabá, em 2014 a CNV colheu depoimentos de moradores da região que sofreram violações de direitos humanos durante a campanha do Exército. Os depoimentos revelaram como os moradores da região, sob tortura e ameaças, foram obrigados a colaborar. Em depoimento, Abel Honorato, preso em 1972 acusado de ser amigo de “Osvaldão” (um dos militantes da guerrilha mais temidos pelo Exército) relembrou: “Me prenderam em casa. Depois me botaram no caminhão e me levaram pra Casa Azul. Lá me bateram com vontade. Me retiraram daqui [de Marabá] semi-morto. Saí vestido numa saia, pois não podia botar uma calça [em virtude dos ferimentos]”. Depois da tortura, por conhecer a região, Honorato foi obrigado a servir de mateiro para os militares. “Disseram pra mim: ‘você vai agora voltar e vai ter que dar conta dos seus companheiros’. Fui obrigado a trabalhar de guia até depois da guerra, sob os olhos de Curió. Até em Serra Pelada, fiz missões para ele”, disse.

 

E daí?

Em 2009, Curió abriu arquivos pessoais ao jornal O Estado de S. Paulo e confirmou a execução de 41 militantes presos, que não ofereciam perigo às tropas. Muitos se entregaram maltrapilhos e famintos, após meses de fuga na floresta. Vale lembrar que as Convenções de Genebra tratam a execução de prisioneiros como crime de guerra, e mesmo as leis do próprio regime não autorizavam o que se fez no Araguaia. O MPF pede a condenação de Curió desde 2012, mas ele continua solto graças a uma interpretação benevolente da Lei da Anistia – aprovada, diga-se de passagem, com uma diferença de apenas 5 votos (206 da ARENA contra 201 do MDB).

Não obstante as violações de direitos humanos aqui brevemente apresentadas, Curió coleciona acusações em outras instâncias que não apenas aquelas ligadas à repressão na ditadura: ainda durante o regime, coordenou o garimpo de Serra Pelada, fato este que lhe rendeu – para além da amizade com o atual presidente do Brasil – a prefeitura de Curionópolis, cidade que ajudou a fundar no estado do Pará. Em 2008, teve o mandato cassado por compra de votos e abuso de poder econômico. O ex-prefeito foi ainda condenado ao pagamento de R$ 1,1 milhão por improbidades administrativas ocorridas entre 2001 e 2004, durante sua penúltima gestão.

O juiz federal Carlos Henrique Haddad imputou a Curió as infrações de enriquecimento ilícito, fraude em licitações e desrespeito aos princípios de honestidade e legalidade na administração pública. As irregularidades foram praticadas principalmente com verbas do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério (Fundef). As fraudes abrangem a contratação de empresas fantasmas, o uso de notas fiscais falsas, a inexistência de processos licitatórios ou processos irregulares.

No Brasil de Bolsonaro, os mortos pela pandemia do novo coronavírus não são lamentados e profissionais da área da saúde são hostilizados e agredidos, inclusive fisicamente. Não por acaso, é o país no qual notórios torturadores são chamados pelo governo de “heróis”. O saldo da transição pactuada sempre se fez presente, mas apresenta sua face mais nefasta neste momento de urgente zelo à vida. Triste o país que chora as mortes de hoje (e do amanhã) sem conhecer os mortos do passado recente e os nomes de seus algozes.

 

 

Foto: Reprodução/Facebook

República Democrática do Congo em foco

Laurindo Paulo Ribeiro Tchinhama: Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais ‘San Tiago Dantas’ (UNESP, UNICAMP, PUC-SP) e bolsista CAPES. E-mail: laurindoprt@gmail.com.

Jéssica Tauane dos Santos: Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais ‘San Tiago Dantas’ (UNESP, UNICAMP, PUC-SP) e bolsista CAPES. E-mail: jess.tne@gmail.com.

 

Um dos conflitos civis que mais assola o continente africano é o da República Democrática do Congo (RDC). Os primeiros resquícios de instabilidade política datam da sua independência da Bélgica, em 1960. Assim sendo, o país mergulhou em confrontos internos quando a província de Katanga declarou secessão do governo central com o apoio de belgas (MUNANGA, 2009). Nesse contexto, o país solicitou ajuda à Organização das Nações Unidas (ONU) que respondeu com a missão da Operações das Nações Unidas no Congo (ONUC) com objetivo de expulsar os belgas e manter a lei, a ordem e a integridade territorial. Dessa forma, o país começou a enfrentar uma série de instabilidades internas, políticas e econômicas. A separação de Katanga abriu caminho para demais províncias agirem da mesma maneira e, com isso, emergiu uma desordem política total, tornando o apoio da ONU cada vez mais relevante.

Nesse ínterim, em 1965 um golpe militar derrubou o primeiro presidente da RDC, Joseph Kasavubu, e levou ao poder Joseph Mobutu Sese Seko, que aproveitou o contexto conturbado do país para impor medida de reordenamento e ordem. Com apoio de potências como Estados Unidos (EUA), ele instaurou um regime autoritário de partido único chamado Movimento Popular da Revolução (MPR) e alterou o nome do país para Zaire a partir de 1971. Seu regime vigorou até o início dos anos 1990 e foi marcado pelo benefício de uma tribo em detrimento das outras (tribalismo), crises econômicas, e violações de Direitos Humanos. Com o fim da Guerra Fria e a vitória do modelo capitalista, os governos autoritários começaram a perder força e, assim, a decadência de Mobutu se consolidou devido ao rompimento de apoios externos.

Com isso, definhava-se a ditadura de mais de 30 anos. Fracassado e sem apoio, Mobutu sofreu o golpe do grupo Aliança das Forças Democráticas para a Libertação do Congo (AFDL), liderada por Laurent Désiré Kabila, que teve suporte de Angola, Ruanda, Uganda e Burundi. O golpe levou à derrubada de Mobutu em 1997 e Kabila se autoproclamou presidente da república, mudando o nome do país para a República Democrática do Congo (MUNANGA, 2009). A insatisfação com o governo de Mobutu, sobretudo pelo tribalismo, adicionado à xenofobia diante da imigração de ruandeses no leste do país, fugidos do genocídio de 1994, foram fatores preponderantes para a escalada dos conflitos. Por outro lado, originou a formação de grupos rebeldes a favor e contra o Estado, resultando na primeira Guerra do Congo durante o governo de Mobutu e levou a queda do seu regime e causou cerca de 200 mil mortos (1996 -1997) (DA SILVA, 2011).

Logo após o fim dos embates, surgiu um movimento de aliança entre Ruanda e Uganda contra o regime de Laurent Kabila, pois estes se sentiram traídos pela decisão de Kabila de fazê-los retirar suas tropas do país. A união desses países originou o movimento Restabelecimento Congolês para Democracia (RCD) e estendeu seu apoio a grupos menores locais que estavam insatisfeitos com o governo, dentre eles: o Movimento 23 de março (M23), Mai-Mai, Forças Democráticas de Libertação do Ruanda (FDRL), Movimento Revolucionário Congolês (MRC), Movimento de Libertação Congolês (MLC), entre outros. Esses grupos atuaram em grande parte nas regiões do Kivu do Sul, Ituri, Bukavu, Kivu do Norte (Beni e Goma), Katanga, Kasai e Maniema, principalmente em regiões detentoras de grandes quantidades de recursos minerais. Dessa forma, estava instaurada a instabilidade política e de segurança no país.

A escala desses conflitos levou à segunda guerra do Congo que começou em 1998, também conhecida por guerra mundial africana, que tinha como objetivo derrubar o regime de Laurent Kabila. A primeira tentativa de terminar com o conflito foi a assinatura do acordo de Lusaka em 1999, na Zâmbia, no qual as partes se comprometiam com o cessar-fogo. Na sequência, foi estabelecida a Missão da Organização das Nações no Congo (MONUC) cujo objetivo era de prestar assistência às negociações entre governo e rebeldes e observar o cumprimento do cessar-fogo (CRAVINO, 2007). O assassinato de Laurent Kabila em 2001 não colocou fim aos conflitos civis, mas alimentou o clima de instabilidade no país devido à subida automática do Joseph Kabila, filho de Laurent, ao poder. Estima-se que a segunda guerra do Congo causou cerca de 3,8 milhões de mortes (DA SILVA, 2011), e raptos de crianças pelos grupos armados (crianças-soldados), violência sexual, crimes contra humanidade e outros.

Dentre as causas dos conflitos, além das questões políticas, estão as disputas pelo controle de regiões ricas em minerais, a instabilidade da região dos grandes lagos africana, principalmente na década de 1990, o genocídio de Ruanda em 1994 que gerou a imigração de hutus para o leste do Congo, as relações bilaterais rompidas por Laurent Kabila com Ruanda, Uganda e Burundi depois do golpe de Estado ao Mobutu e, acima de tudo, as rivalidades tribais que impulsionaram o surgimento de pequenos grupos armados (AUTESSERRE, 2010).

Com o fracasso do acordo de Lusaka e a retomada dos conflitos, em 2003 foi assinado o acordo de paz de Sun City na África do Sul que decretou o término oficial da guerra. Assim, a MONUC foi estendida e foram adicionadas novas tarefas, de modo que o novo acordo fosse cumprido, levando estabilidade ao país e consolidando a paz. Em seguida, foi criado um governo de transição (2003-2005) no qual Joseph Kabila assumiu a presidência com mais quatro vice-presidentes (4+1) de outros partidos de maneira conjunta. O governo de transição se responsabilizaria pelas reformas institucionais, pela criação de uma nova Constituição e, posteriormente, pela realização de novas eleições.

Houve a tentativa de reorganização das forças armadas que passaram a ser compostas pelas Forças Armadas da República Democrática do Congo (FARDC), pelo Restabelecimento Congolês para Democracia (RCD) e pelo Movimento para a Libertação do Congo (MLC). No entanto, essa junção foi marcada por desavenças em termos de hierarquia, incompatibilidade salarial, falta de recursos financeiros e desobediências (CRAVINO, 2007). A principal falha do governo de transição foi, sobretudo, na criação de um exército nacional coeso que garantisse a estabilidade interna, faltando programas de reintegração de ex-combatentes no exército nacional e de desarmamento eficientes.

A realização das eleições se concretizou em 2006 com a vitória de Joseph Kabila (TCHINHAMA, 2017). Os resultados das eleições foram contestados e o governo de Joseph Kabila foi incapaz de manter integridade e a ordem no país. Iniciou-se uma onda intensa de agressão contra os civis e o estado de violência foi instaurado. A MONUC foi então substituída pela Missão de Estabilização Da Organização das Nações Unidas na República Democrática do Congo (MONUSCO) em 2010. A Missão tinha como objetivo garantir a proteção dos civis e da equipe humanitária no terreno e defender os Direitos Humanos no país. Foi uma missão atípica da ONU por determinar o uso de todos os meios necessários para o seu cumprimento (INFORMATION, 2019; DPKO, 2020; MONUSCO, 2020). Os desafios da missão no terreno para proteger os civis diante dos ataques dos grupos levaram à implementação de uma Brigada de Intervenção especializada com o intuito de neutralizar os grupos armados e reduzir as potencias ameaças, pautando-se na técnica da resolução de conflitos de imposição da paz (peace-enforcement).

A RDC tem como missão desmantelar os grupos rebeldes que ainda atuam causando instabilidade política, tarefa que passa pelo estabelecimento de um exército nacional coeso e consistente, mediante a criação de programas de reforma do setor de segurança. Para tal, conta a comunidade internacional que continua mantendo seu apoio, de modo a tornar a paz estável e duradoura, por meio de mandato de especialistas que ajudam no treinamento do exército congolês. Como, por exemplo, o envio em 2019 de especialistas brasileiros em guerra na selva para treinar o exército local para fazer frentes aos grupos armados que se refugiam nas florestas.

Vale ressaltar também a missão da União Europeia que, por meio da European Union Police Mission for the Democratic Republic of Congo (EUPOL) (2005-2007), contribuiu na tentativa de reformar e reestruturar os setores de polícias e de justiça; a European Union Militar Operations in Democratic Republic of Congo (EUFOR) ajudou a MONUC no reforço do processo eleitoral pós-transição.

No entanto, desde as primeiras as eleições históricas em 2006, o país ainda não tem capacidade política e institucional para estabelecer a paz. Kabila deveria ter saído do poder em 2016 após o cumprimento de seus dois mandatos, conforme a Constituição, porém as eleições foram realizadas somente em 2018, após várias manifestações de repúdio da população e dos partidos da oposição.

Assim, só depois de 18 anos como presidente da RDC, Joseph Kabila deu lugar ao candidato da oposição, Felix Tshisekedi, anunciado como vencedor das eleições em janeiro de 2019. Entretanto, o resultado oficial gerou controvérsias. Segundo opositores, um acordo secreto firmado entre Tshisekedi e Kabila garantiria que este mantivesse em grande medida seu poder sobre o país, ainda que não oficialmente. Martin Fayulu, segundo colocado e também candidato da oposição, afirmou que as eleições foram fraudadas e milhares de seus eleitores foram às ruas da capital Kinshasa protestar. Além disso, França, Bélgica e União Africana (UA) também questionaram o resultado das eleições. Todavia, o resultado acabou sendo aceito pela Comunidade Internacional.

Meses depois, o primeiro-ministro, Illunga Illunkamba, fez suas indicações para os ministérios, chamando atenção para o número de ministros pertencentes à coalizão Frente Comum para o Congo (FCC) de Kabila: 42 dos 65 ministros eram dessa coalizão e apenas 23 eram provenientes da coalizão de Tshisekedi. Vale destacar também que as eleições deram 70% dos assentos da câmara baixa do parlamento e uma esmagadora maioria dos assentos da assembleia provincial à FCC.

Assim sendo, fica evidente o despreparo das instituições administrativas do Estado quanto à sua capacidade de ação, imparcialidade, transparência e confiança. Por outro lado, a segurança ainda é o principal problema da RDC, pois o governo não detém o uso da força para manter a ordem e a lei e garantir a segurança do povo contra os grupos armados ainda atuantes nas áreas mais vulneráveis do país, especialmente no Leste, na região dos Kivus, palcos da maioria dos conflitos.

Em meio a conflitos políticos, o Ebola é outra grande complicação. Desde agosto de 2018 o país passava por uma epidemia da doença, contabilizando 3.340 casos e 2.210 mortes. Em abril desse ano, o governo da RDC anunciou o fim da epidemia, entretanto, no mesmo mês foram registrados novos casos. A doença é extremamente infecciosa e a atuação de grupos armados dificulta ainda mais o seu combate.

Enquanto isso, o país permanece em um estado alarmante no que se refere à violência e os desafios persistem mesmo com toda ajuda internacional disponível. A MONUSCO vem sendo renovada a cada ano que passa, devido ao grau de complexidade da Missão, e foi prorrogada até o dia 20 de dezembro de 2020 com um conjunto de 2324 pessoas civis e 15.249 pessoas uniformizadas.

 

REFERÊNCIAS

AUTESSERRE, S. The Trouble with the Congo Local Violence and the Failure of International Peacebuilding. First. New York: Cambridge University Press, 2010.

BUJAKERA, Stanys. New Congo government shows influence of former president. Reuters. 26 Aug. 2019. Disponível em: <https://www.reuters.com/article/us-congo-politics/new-congo-government-shows-influence-of-former-president-idUSKCN1VG0F2>. Acesso em: 26 maio 2020.

CRAVINO, J. S. O processo eleitoral na República Democrática do Congo: Restrospectiva e prospectiva. Instituto Português de Relações Internacionais. Universidade de Lisboa- Working Paper 25, , p. 25–26, 2007.

DA SILVA, I. C. Guerra e Construção Do Estado Na Rep . Democrática Do Congo : Guerra E Construção Do Estado Na Rep . Democrática Do Congo.Disser , p. 178, 2011.

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Fotografia:

Eleições presidenciais e legislativas em Walikale, na RDC, em 28 de novembro de 2011. Fonte: MONUSCO/Sylvain Liechti

O conflito armado na Colômbia

Leonardo Rodrigues Taquece: Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP, PUC-SP) e bolsista CAPES. E-mail: taquece@gmail.com

Maria Aparecida Felix Mercadante: Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP, PUC-SP) e bolsista CAPES. E-mail: mariaamercadante@hotmail.com

 

O conflito na Colômbia é um dos mais antigos da América Latina. Os episódios de violência se sustentam em um quadro duradouro de enfrentamentos entre diferentes grupos armados – guerrilhas insurgentes, grupos narcotraficantes, grupos paramilitares e grupos de delincuencia organizada (GAO) – entre si e, também, contra as forças do governo. Assim, cabe destacar que em cada região, cada departamento e em cada cidade, a interação entre os atores envolvidos e a intensidade dos conflitos combinaram-se e se desenvolveram muitas vezes com dinâmicas distintas e temporalidades diferentes. Um dos confrontos mais conhecidos é o que ocorre entre o governo colombiano e as Fuerzas Armadas Revolucionarias de Colombia – Ejército del Pluebo (FARC-EP) e quem tem início na década de 1960.

O surgimento das FARC-EP e o desenvolvimento da violência política na disputa pelo poder estão historicamente enraizados na cultura bipartidarista, oriunda do processo de independência da Colômbia, e nos confrontos ligados às disputas eleitorais do período. O progresso da violência entre o Partido Liberal e o Partido Conservador se desdobra no período La Violencia entre, aproximadamente, os anos de 1948 e 1958. Ainda que todas as regiões do país tenham sofrido de algum modo as consequências do imaginário político polarizado, as áreas rurais foram as mais afetadas pela violência armada, contribuindo para o desenvolvimento de movimentos de resistência campesina ou autodefensas – embriões dos futuros movimentos guerrilheiros (BUSHNELL, 2007; GRUPO DE MEMORIA HISTÓRICA, 2013).

De acordo com a narrativa oficial das FARC-EP, seu surgimento deve-se à exclusão política e aos ataques do Exército Nacional contra o que ficou conhecido como “Repúblicas Independientes”, zonas criadas por camponeses deslocados de suas antigas terras e que por via armada se colocavam à parte do controle estatal. Formadas por Charro Negro, Manuel Marulanda e Ciro Trujillo, as zonas de colonização campesina armada reforçavam os conceitos de ameaça à segurança interna no contexto de Guerra Fria. O ataque à Marquetalia e às demais colônias agrícolas, em 1964, se torna-se o marco de criação do grupo guerrilheiro, o porquê de a origem ter se dado nessa região estaria ligado a dois litígios históricos: a luta de indígenas pela posse da terra e a luta de reconhecimento dos direitos políticos por parte dos campesinos (MOLANO, 2016).

A Conferência Guerrilheira, em 1965, forma o Bloque Sur. O nome Fuerzas Armadas Revolucionarias de Colombia (FARC) é resultado da segunda conferência guerrilheira no ano de 1966; e, o acréscimo de “Ejército del Pueblo” (-1983. Em seu estatuto, as FARC-EP se definem como um “um movimento político-militar que desenvolve sua ação ideológica, política, organizativa, propagandística e armada de guerrilha, conforme a tática de combinação de todas as formas de luta de massas pelo poder para o povo” (FARC-EP, 1993). Quase concomitante ao desenvolvimento das FARC-EP, ocorre o desenvolvimento de outros grupos guerrilheiros, sendo os mais conhecidos, o Ejército de Liberación Nacional (ELN), Ejército Popular de Liberación (EPL), Movimiento 19 de Abril (M-19) e o movimento indigenista Quintín Lame.

A resposta à ascensão da mobilização social realizada pelas guerrilhas foi evidentemente militar, com a multiplicação das zonas de atuação e a consolidação territorial de grupos paramilitares como força contrainsurgente, especialmente, a partir dos anos 80. A expansão do paramilitarismo combinou com políticas governamentais que possibilitaram esse processo, os grupos paramilitares pertenciam a uma fronteira ambígua entre legalidade e ilegalidade, muitas vezes servindo como força de apoio para as unidades militares do Estado (PÉCAULT, 2008). No grupo paramilitar Muerte a Secuestradores (MAS), por exemplo, uma investigação, em 1983, encontrou que 69 dos 163 membros eram integrantes das Forças Armadas (GRUPO DE MEMORIA HISTÓRICA, 2013, p. 137). A aliança dos grupos paramilitares resultou na formação da Autodefensas Unidas de Colombia (AUC), em 1995, com o objetivo de coordenar as ações contrainsurgentes.

Dada a conjuntura de Guerra Fria em que vivia o sistema internacional, o sucesso da Revolução Cubana, somado ao surgimento de organizações guerrilheiras com ideologias comunistas em território colombiano, contribuiu para que o conflito colombiano se inserisse na lógica internacional – e regional – de combate e contenção ao comunismo. As estratégias de atuação anticomunista dos Estados Unidos no continente americano são bem conhecidas, na Colômbia, a incorporação da doutrina de segurança nacional e a tese do inimigo interno encontraram reforço na exclusão de forças políticas distintas dos partidos tradicionais, justificando as ações repressivas em favor da manutenção da ordem social (GRUPO DE MEMORIA HISTÓRICA, 2013).

Para além das disputas envolvendo as questões militares e ideológicas, a consolidação da economia da droga nas regiões de atuação dos grupos armados e o desenvolvimento dos grandes cartéis – Cartel de Cali e Cartel de Medellín – promoveram o agravamento do conflito colombiano nos anos 80 e 90 (CAMACHO, 2011). Uma das primeiras expressões da vinculação do narcotráfico com as organizações foi o desenvolvimento do narcoparamilitarismo, de modo que os efeitos dessa aliança na luta contrainsurgente tornaram mais complexa a relação entre os atores. Embora as organizações de paramilitares tivessem um caráter antissubverssivo, aliado aos interesses do Estado colombiano, se colocavam, ao mesmo tempo, como inimigas na luta nacional e internacional contra o narcotráfico. Ademais, a economia da droga, progressivamente, somava-se ao sequestro extorsivo como principais fontes de renda para financiar a expansão territorial e militar das guerrilhas, especialmente, das FARC-EP. Os narcotraficantes têm um papel central no conflito colombiano, uma vez que forneciam os recursos econômicos para os demais atores envolvidos (GRUPO DE MEMORIA HISTÓRICA, 2013; TICKNER, GARCÍA e ARREAZA, 2011; PÉCAULT, 2008).

A atuação violenta do Cartel de Medellín merece destaque, uma vez que o cartel foi responsável, em 1989, por alguns dos atentados que marcaram a história da Colômbia: a explosão de um Boeing 727 da Avianca, que deixou 107 mortos, e a  explosão do carro-bomba em frente ao Departamento Administrativo de Seguridad, que deixou ao menos 63 mortos e mais de 600 pessoas feridas. A expansão dos cultivos ilícitos qualificaria a Colômbia como a maior produtora mundial de cocaína e a política nacional de combate ao narcotráfico passaria a ser apoiada na estratégia internacional do governo norte-americano, uma estratégia militarizada de combate à oferta que nasce na “Guerra às Drogas” e se mantém com os programas de ajuda militar do governo norte-americano aos países andinos.

O envolvimento do narcotráfico com a política colombiana e a denúncia do Cartel de Cali ter financiado a campanha presidencial de Ernesto Samper, em 1994, levou à mobilização do conceito de narcodemocracia para referir-se ao país. Fato este que contribuiu para que, mesmo com a posterior desmobilização dos grandes cartéis, a cooperação no campo militar com os Estados Unidos permanecesse sob a justificativa de falta de capacidade do governo colombiano lidar com o problema das drogas e pelo progressivo envolvimento das FARC-EP com o narcotráfico. A campanha contrainsurgente e a campanha antinarcóticos se transformaria em uma só e direcionaria a assistência técnica-militar norte-americana. O Plano Colômbia, em 1999, e a campanha militar do Plano Patriota, em 2003, são exemplos da ofensiva contra as FARC-EP, que sofreria os impactos da modernização das Forças Armadas com perdas significativas de combatentes e territórios (PÉCAULT, 2008). A respeito da estratégia militarizada do período, cabe destacar as execuções extrajudiciais realizadas pelo Exército Nacional, os militares promoviam o assassinato de civis e estes eram apresentados como guerrilheiros. O escândalo que ficou conhecido como ‘falsos positivos‘ tinha como objetivo manipular as estatísticas e mostrar resultados no combate às guerrilhas.

O enfraquecimento militar das FARC-EP, a diminuição dos aportes financeiros norte-americanos após a crise de 2008, a eleição do presidente colombiano Juan Manuel Santos em 2010 e algumas mudanças na política de Defesa e Segurança, orientadas para democracia e desenvolvimento social, são alguns dos fatores que propiciaram o desenvolvimento de uma nova tentativa de resolução do conflito colombiano por meio de processos de paz. Em 2012 são iniciadas mesas de diálogo com as FARC-EP e, em 2014, reuniões exploratórias para o início do diálogo com o ELN. Os diálogos com as FARC-EP resultariam, em 2016, no Acordo Final para a Terminação do Conflito e a Construção de uma Paz Estável e Duradoura firmado entre o governo e a guerrilha em Cuba. As FARC-EP foram convertidas no Partido Força Alternativa Revolucionária do Comum (FARC) e passa então a atuar nos processos eleitorais desde 2017.

A entrega das armas pela guerrilha das FARC, entretanto, não garantiu o fim do problema das drogas nem o fim da violência armada em território colombiano. A Colômbia continua sendo o maior produtor de cocaína do mundo, com cerca de 169.000ha de cultivo de coca no ano de 2018. Os diálogos com o ELN foram encerrados sem Acordo em fevereiro de 2019.  A manutenção dos cultivos permite que as unidades dissidentes das FARC-EP, que não aderiram ao Acordo Final, continuem atuando e que novos grupos armados organizados continuem surgindo e ocupando as zonas estratégicas para operar o narcotráfico, como as Bandas Criminales (Bacrim) ou Grupos de Delincuencia Organizada (GDO) (FUNDACIÓN IDEAS PARA LA PAZ, 2017). Outra questão importante foi o anúncio, em agosto de 2019, da “refundação” da guerrilha FARC-EP e do abandono do processo de reincorporação por parte de alguns de alguns ex-combatentes, incluindo Iván Márquez , ex-chefe negociador do processo de paz de Havana.

De acordo com as estatísticas do Centro Nacional de Memória História da Colômbia, 218,094 pessoas foram mortas entre os anos de 1958 e 2012 sendo 177,307 civis e apenas 40,787 combatentes. Outro dado capaz de mostrar a dimensão da violência gerada pelo conflito colombiano é o registro de vítimas realizado pelo governo, neste registro, 8.944.137 pessoas haviam sido vítimas direta ou indiretamente pelo conflito armado até janeiro de 2020. De acordo com o relatório da Agência da ONU para Refugiados, a Colômbia ocupa desde 2015 a primeira colocação no ranking de países com maiores vítimas de deslocamentos internos, chegando a mais de 7 milhões de pessoas internamente deslocadas (UNHCR, 2019, p. 35).

Com respeito à  manutenção da violência em tempos de “paz”, desde a firma do Acordo Final, tem-se registrado o assassinato sistemático de líderes sociais e de defensores dos direitos humanos em território colombiano, ainda que não haja consenso, uma vez que os métodos empregados para definição de “líderes” são distintos nas organizações, o Instituto de Estudios para el Desarrollo y la Paz aponta que o número de vítimas pode chegar em até 760 pessoas entre 2016 e 2019. Os ex-combatentes das FARC também tem sido vítimas dessa violência, a Misión de Verificación das Naciones Unidas en Colombia (2020) divulgou no último dia 26 de março, que 194 ex-combatentes firmantes dos acordos foram mortos e 13 ex-combatentes estão desaparecidos. O caminho atual parece levar a Colômbia a reviver a história de outra tentativa de participação partidária por parte dos ex-combatentes das FARC-EP: o genocídio contra a União Patriótica nos anos 80.

 

REFERÊNCIAS

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Imagem: Manifestantes em Bogotá. Fonte: depositphotos