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Entre máscaras e armas, Brasil de Bolsonaro escolhe seus heróis

Laura M. Donadelli, doutoranda em Relações Internacionais pelo Programa “San Tiago Dantas” (UNESP/UNICAMP/PUC-SP)
Juliana de Paula Bigatão Puig, professora do Departamento de Relações Internacionais da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP)
Supervisoras do Informe Brasil do Observatório Sul-Americano de Defesa e Forças Armadas e pesquisadoras do GEDES

 

Na semana em que o Brasil atingiu a marca de 10 mil mortos pelo novo coronavírus, Jair Bolsonaro recebeu no Palácio do Planalto o tenente-coronel do Exército Sebastião Rodrigues de Moura, o major Curió.  Militar reformado, ex-oficial do Centro de Informações do Exército (CIE) e ex-agente do Serviço Nacional de Informações (SNI), Curió foi um dos responsáveis pela repressão à Guerrilha do Araguaia (1972-1975). A visita não constava na agenda oficial da Presidência, e somente foi incluída por volta das 21h20 do mesmo dia.

Em publicação intitulada “Heróis do Brasil” em suas redes sociais, a Secretaria de Comunicação Social da Presidência (Secom) publicou foto da audiência, acompanhada de um texto que enaltecia a figura de Curió, tratando-o como “herói de guerra”. Bolsonaro e Curió se conheceram em Serra Pelada, no estado do Pará. Em 1986, Curió, então deputado federal, enviou uma carta a Bolsonaro, dizendo que desejava “passar o bastão” ao capitão: “Competirá a você, meu jovem companheiro, carregar este bastão, levando-o à vitória, com a graça de Deus e a ajuda dos homens de bem desta Nação”.

Curió é o autor da frase “quem procura osso é cachorro”, dita numa tentativa de desqualificar os esforços para encontrar os corpos de mortos e desaparecidos do Araguaia. O enunciado estampou um cartaz contrário aos trabalhos da Comissão Nacional da Verdade (CNV) que Bolsonaro pendurou na porta de seu gabinete. Após a visita de Curió ao Planalto, Bolsonaro foi denunciado à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), vinculada à Organização dos Estados Americanos (OEA), por descumprir sentença unânime que condenou o Brasil pelo desaparecimento forçado e morte de dezenas de pessoas durante o período do regime militar (1964-1985).

Concluiu-se no texto da denúncia que “o governo de Jair Bolsonaro não apenas faz com que o Estado brasileiro deixe de cumprir a Sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos em Gomes Lund e outros vs. Brasil, como promove novas violações do direito à verdade, divulgando informações falsas sobre o que aconteceu nas operações contra a “Guerrilha do Araguaia” e na ditadura em geral”. Por meio de nota de seu secretário-executivo, Pablo Saavedra Alessandri, a CIDH acatou a denúncia

 

Quem é o Major Curió?

Curió foi um dos primeiros agentes a serem denunciados no Brasil por crimes cometidos durante a ditadura, num total de seis denúncias – todas relacionadas a crimes como sequestro, assassinato e ocultação de cadáver. Dentre as vítimas, estão militantes do partido comunista que atuavam na região do Araguaia, localizada entre os estados do Pará e do Tocantins, e camponeses locais. As últimas três denúncias foram apresentadas contra Curió em dezembro de 2019, quando o Ministério Público Federal (MPF) fez um balanço sobre as ações relacionadas à guerrilha. Antes disso, em 2011, Curió foi detido por porte ilegal de arma durante uma operação de busca e apreensão, realizada pela Polícia Federal e pelo MPF, que tinha como objetivo encontrar documentos que pudessem revelar a localização de corpos de vítimas da repressão da ditadura brasileira.

Em março de 2012, o MPF encaminhou à Justiça Federal em Marabá, no Pará, a primeira denúncia de crime permanente, referente a violações de direitos humanos praticadas por agentes do regime, tendo Curió como indiciado, acusado de sequestrar cinco militantes: Maria Célia Corrêa, Hélio Luiz Navarro Magalhães, Daniel Ribeiro Callado, Antônio de Pádua Costa e Telma Regina Corrêa. À época, o procurador da República Sérgio Gardenghi afirmou que “o crime de sequestro é de natureza permanente e só termina quando a vítima é posta em liberdade ou quando o corpo é localizado”. Por sua vez, o então procurador-geral da República Roberto Gurgel evitou comentar sobre a possibilidade de Curió responder pelos crimes, reafirmando a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de que os fatos estão abarcados pela Lei de Anistia (6.683/1979). Como prenunciado, o juiz federal João Cezar de Matos, da 2ª Vara Federal de Marabá, rejeitou a denúncia feita pelo MPF, sob alegação de que a Anistia já havia absolvido os supostos criminosos políticos do regime e que os desaparecidos na guerrilha já foram reconhecidos oficialmente como mortos por lei de 1995.

Em agosto de 2012, a 2ª Vara da Justiça Federal no estado do Pará aceitou nova denúncia do MPF contra Curió e Lício Augusto Maciel, acusados de terem sequestrado presos capturados no Araguaia durante a Operação Marajoara. De acordo com a Procuradoria da República no Pará, a responsabilização penal de Curió e Maciel é uma obrigação do Brasil diante da sentença da CIDH, que determinou em 2009 a punição dos repressores da Guerrilha. Os procuradores afirmaram que “não há notícias de sequer um militante que, privado de liberdade pelas Forças Armadas, durante a Operação Marajoara, tenha sido encontrado livre posteriormente”. A ação foi suspensa em dezembro do mesmo ano em caráter liminar.

O MPF voltou a ingressar na Justiça com uma ação civil pública contra a União e Maciel pela prisão, tortura e homicídio de quatro militantes do Movimento de Libertação Popular (Molipo). Os corpos de Ruy Carlos Vieira Berbert, Jeová Assis Gomes, Boanerges de Souza Massa e Arno Preiss nunca foram encontrados. Na ação, o MPF pediu a preservação da prisão onde Berbert morreu e que a União seja declarada responsável pelos crimes e pelas omissões na identificação dos responsáveis e nas circunstâncias que os atos de violência ocorreram. Maciel, em entrevista para O Estado de S. Paulo, afirmou que “estava combatendo comunistas guerrilheiros, como esses vagabundos da Molipo” e que “os que resistiram, morreram; quem não reagiu, viveu”. À época, Maciel e Curió já figuravam entre os agentes mais processados pelo Ministério Público por violações de direitos humanos.

Entre uma denúncia e outra, e após dez anos de consultas aos arquivos pessoais de Curió, o jornalista Leonencio Nossa lançou o livro “Mata! – O Major Curió e as Guerrilhas no Araguaia”. O livro lança novas informações que contestam os relatórios falsos divulgados pelo regime sobre as circunstâncias das mortes que ocorreram na região do Araguaia, além do total de indivíduos executados, que totalizariam 41 e não 25 – como informado oficialmente. A segunda parte do livro associa a participação do tenente-coronel como comandante da região garimpeira de Serra Pelada. Nas palavras de Curió ao jornalista: “em Serra Pelada eram dois os objetivos: extrair o ouro para encher o cofre do Banco Central e continuar o trabalho político. […] Araguaia foi uma guerra, nunca esqueça”.

Como parte de seus trabalhos em Marabá, em 2014 a CNV colheu depoimentos de moradores da região que sofreram violações de direitos humanos durante a campanha do Exército. Os depoimentos revelaram como os moradores da região, sob tortura e ameaças, foram obrigados a colaborar. Em depoimento, Abel Honorato, preso em 1972 acusado de ser amigo de “Osvaldão” (um dos militantes da guerrilha mais temidos pelo Exército) relembrou: “Me prenderam em casa. Depois me botaram no caminhão e me levaram pra Casa Azul. Lá me bateram com vontade. Me retiraram daqui [de Marabá] semi-morto. Saí vestido numa saia, pois não podia botar uma calça [em virtude dos ferimentos]”. Depois da tortura, por conhecer a região, Honorato foi obrigado a servir de mateiro para os militares. “Disseram pra mim: ‘você vai agora voltar e vai ter que dar conta dos seus companheiros’. Fui obrigado a trabalhar de guia até depois da guerra, sob os olhos de Curió. Até em Serra Pelada, fiz missões para ele”, disse.

 

E daí?

Em 2009, Curió abriu arquivos pessoais ao jornal O Estado de S. Paulo e confirmou a execução de 41 militantes presos, que não ofereciam perigo às tropas. Muitos se entregaram maltrapilhos e famintos, após meses de fuga na floresta. Vale lembrar que as Convenções de Genebra tratam a execução de prisioneiros como crime de guerra, e mesmo as leis do próprio regime não autorizavam o que se fez no Araguaia. O MPF pede a condenação de Curió desde 2012, mas ele continua solto graças a uma interpretação benevolente da Lei da Anistia – aprovada, diga-se de passagem, com uma diferença de apenas 5 votos (206 da ARENA contra 201 do MDB).

Não obstante as violações de direitos humanos aqui brevemente apresentadas, Curió coleciona acusações em outras instâncias que não apenas aquelas ligadas à repressão na ditadura: ainda durante o regime, coordenou o garimpo de Serra Pelada, fato este que lhe rendeu – para além da amizade com o atual presidente do Brasil – a prefeitura de Curionópolis, cidade que ajudou a fundar no estado do Pará. Em 2008, teve o mandato cassado por compra de votos e abuso de poder econômico. O ex-prefeito foi ainda condenado ao pagamento de R$ 1,1 milhão por improbidades administrativas ocorridas entre 2001 e 2004, durante sua penúltima gestão.

O juiz federal Carlos Henrique Haddad imputou a Curió as infrações de enriquecimento ilícito, fraude em licitações e desrespeito aos princípios de honestidade e legalidade na administração pública. As irregularidades foram praticadas principalmente com verbas do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério (Fundef). As fraudes abrangem a contratação de empresas fantasmas, o uso de notas fiscais falsas, a inexistência de processos licitatórios ou processos irregulares.

No Brasil de Bolsonaro, os mortos pela pandemia do novo coronavírus não são lamentados e profissionais da área da saúde são hostilizados e agredidos, inclusive fisicamente. Não por acaso, é o país no qual notórios torturadores são chamados pelo governo de “heróis”. O saldo da transição pactuada sempre se fez presente, mas apresenta sua face mais nefasta neste momento de urgente zelo à vida. Triste o país que chora as mortes de hoje (e do amanhã) sem conhecer os mortos do passado recente e os nomes de seus algozes.

 

 

Foto: Reprodução/Facebook

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