123

Autodeterminação e irredentismo: a luta por independência de Nagorno-Karabakh

Danielle Amaral Makio: Mestranda nos programas Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Santas (UNESP/UNICAMP/PUC-SP) e International Master in Central and East European, Russian and Eurasian Studies (Universidade de Glasgow) e bolsista Erasmus Mundus. E-mail: daniellemakio@gmail.com

O horizonte político do enclave de Nagorno-Karabakh (N-K), também conhecido como Artsakh, coloca-se como verdadeiro obstáculo à estabilidade regional no sul do Cáucaso. A assimetria causada pela existência de um território majoritariamente composto por armênios dentro do Estado azeri fomenta violentos atritos entre os dois grupos étnicos, atritos estes que permanecem latentes mesmo após a assinatura do cessar-fogo em 1994. As históricas demandas do enclave pela incorporação à jurisdição da Armênia foram substituídas, nos anos recentes, por demandas separatistas que ambicionam o reconhecimento de N-K como um Estado independente (POKALOVA, 2015).

Nos anos 1920, as nações transcaucasianas, nomeadamente armênios, geórgicos e azeris, buscaram se consolidar como Estados independentes, iniciando um turbulento processo de demarcação territorial. Neste contexto, os conflitos entre Armênia e Azerbaijão, que já haviam lutado pela posse do enclave de Nagorno-Karabakh, localizado na região fronteiriça entre ambos os países, antes de tornarem-se Repúblicas Soviéticas, escalariam substancialmente. Embora as raízes da disputa entre Armênia, cristã, e Azerbaijão, muçulmano de maioria xiita, pelo controle do território sejam seculares e tenham um nomeado embasamento étnico-religioso, é notável que o período soviético configura um verdadeiro ponto de viragem na postura dos dois Estado frente à região em virtude do redesenho das fronteiras do Cáucaso desempenhado pela URSS (GEUKJIAN, 2012).

Neste contexto, em 1923, o Politburo, comitê de comando da União Soviética, viria a declarar que, apesar da maioria étnica armênia em N-K, o enclave passaria a estar formalmente vinculado ao território do Azerbaijão. Como forma de amenizar as animosidades dos armênios de Karabakh, o Politburo concederia à região o status de província autônoma (Oblast) da União Soviética. A despeito da manobra constitucional adotada pelo Partido Comunista, torna-se evidente que os direitos de N-K constituíam um mero estatuto formal, uma vez que o governo azeri continuava a desempenhar um papel dominante em seus assuntos internos, constrangendo não apenas os anseios do vizinho rival, como os da própria população de N-K  (DE WAAL, 2003).

As políticas discriminatórias do Azerbaijão frente aos armênios de Karabakh constituiriam um elemento crítico nas reivindicações do enclave pela secessão. Sob a óptica da região fronteiriça, desde a década de 1920, suas características étnicas são constantemente ameaçadas pela nação titular azeri através de medidas como a supressão da história e dos símbolos armênios nas escolas e nos meios de comunicação. As posições mais elevadas na sociedade também tendem a ser delegadas aos nativos azeris, um tratamento preferencial que se explicita não apenas nas esferas da vida pública, mas também na constituição nacional, que fora gradualmente ajustada em favor da nacionalidade azerbaijana. A questão cultural seria agravada ainda pela forte política de migração promovida pelo Estado para compensar o predomínio da etnia armênia na região, enquanto que na esfera econômica o enclave enfrentaria privações no acesso a recursos e investimentos estruturais em decorrência de políticas econômicas formuladas pelo Azerbaijão. Gradualmente, estas intervenções se traduziriam em sistemáticas políticas discriminatória que visavam sufocar as potenciais demandas da região por autonomia e que, inevitavelmente, viriam a representar um elemento crítico das demandas de N-K por secessão (BERG; MÖLDER, 2012).

Em 1988, as preocupações frente ao comportamento hostil de Baku (capital azeri) se traduziriam em demandas substanciais do enclave para sua incorporação à Armênia, Estado com o qual tinha um forte sentimento de identificação em vista da compartilhada origem étnica de ambos. O Comitê Central da URSS, opondo-se a qualquer tentativa de alteração das fronteiras soviéticas e a qualquer mobilização que pudesse fornecer um precedente a demais movimentos separatistas, mostrou-se irredutível frente aos anseios dos armênios de Karabakh (DE WAAL, 2003). No entanto, a linguagem revolucionária da demanda pelo irredentismo enunciaria um novo período de confrontos violentos, cujo ápice se consolidaria em 1992 (SIMÃO, 2010).

Podemos notar, portanto, que o desmantelamento da URSS (datado de 1991) representou o fim do elemento de autoridade que assegurava a relativa estabilidade na região: durante a era soviética, as demandas do enclave eram verdadeiramente negligenciadas – e sufocadas – pelo Politburo, que temia que a concessão de maior autonomia a N-K pudesse fornecer o precedente para a revolta de outros grupos nacionais. No pós-1991, contexto da onda independentista das Repúblicas Soviéticas, os sucessivos confrontos entre armênios e azeris pela ocupação e controle de N-K escalaram ao nível do embate violento e do isolamento absoluto dos dois grupos étnicos. Em 1992, no episódio conhecido como  Desde então, o enclave se caracteriza pela população monoétnica, de origem exclusivamente armênia. Neste cenário, atesta-se que, a despeito do cessar-fogo acordado em 1994, a ausência de um confronto direto não se traduziu no estabelecimento da paz (DE WAAL, 2003; HILL, 1993).

Diante do cenário de “no war, no peace” estabelecido em Nagorno-Karabakh, tem início a intervenção da OSCE (Organization for Security and Cooperation in Europe) no conflito. As ações da organização, neste contexto, procuravam desmantelar o ambiente de demandas totalizantes e desconfiança com vistas a apontar uma alternativa consoante aos princípios, nem sempre conciliáveis, da organização: a integridade territorial dos Estados e o direito dos povos à autodeterminação. A criação do Grupo Minsk em 1992, uma comissão ad hoc composta por França, Rússia e Estados Unidos, marca o início da atuação da OSCE no contexto da Transcaucásia. No mesmo ano, entretanto, as reuniões iniciais falham e a ação militar predominou sobre a via diplomática. Após a assinatura do cessar-fogo, que se dá em 1994, por forte influência russa, são apresentados os princípios norteadores da atuação da organização no local, princípios estes que englobariam o direito de Nagorno-Karabakh à autoafirmação, a integridade territorial do Azerbaijão e a garantia de segurança à população do enclave (POKALOVA, 2015).

Uma nova tentativa de estabelecimento do pacote de resolução de conflito é feita pelo Grupo em 1997. A sugestão mantinha o reconhecimento do direito de autoafirmação dos armênios de Karabakh e previa, ainda, a criação de zonas-tampão patrulhadas por operações de peacekeeping da OSCE e a concessão da alcunha de unidade estatal do Azerbaijão a N-K. No mesmo ano foi adicionada à proposta uma cláusula de desmilitarização que previa a retirada das tropas das partes envolvidas no conflito. Todavia, a não definição clara do status formal concedido ao território litigioso acarreta uma nova rejeição, que é seguida por sucessivas tentativas também mal sucedidas de negociação (POKALOVA, 2015).

A lentidão e a falta de perspectiva das negociações levantam a necessidade de preenchimento das insuficiências existentes ao longo do processo, um problema cuja solução é então desenhada pelo Processo de Praga que, em 2004, sugere uma aproximação baseada em respeito e confiança mútuos entre ambos as partes negociadoras. Em 2006, entretanto, o frágil horizonte de possibilidades de resolução do conflito sofre uma forte alteração: após realizar uma série de referendos populares, N-K ascende à condição de busca por uma independência estrita, de modo que sua anexação à Armênia deixa de ser uma opção viável. A atitude dos armênios de Karabakh foi duramente criticada pela OSCE que, em 2007, cria os chamados Princípios de Madrid, prevendo a retirada das tropas dos Estados envolvidos e a realização de um novo referendo acerca do status de N-K. Já em 2011, durante as negociações de Kaza, ocorre mais um ponto de viragem da disputa: Armênia e Azerbaijão atacaram-se mutuamente alegando falta de comprometimento e sinceridade de ambas as partes (POKALOVA, 2015).

A análise da atuação da OSCE em N-K permite definir, basicamente, três momentos no conflito: (1) o desejo de independência da região que dá início ao litígio no início da década de 1990; (2) a aproximação da Armênia e a legitimação popular de uma possível anexação por esta que marca o início das negociações em 1994; e (3) a retomada da busca pela independência e pelo reconhecimento internacional formalizada em 2006 . A crescente solidificação das instituições de N-K leva a região a atingir um nível de maturidade suficientemente grande para que a autonomia volte a ser uma pauta definitiva. Junto do aumento do nível de militarização da segunda metade dos anos 2000, a desconfiança entre as partes e a posição de N-K enquanto estado de facto vem barrando as negociações, uma vez que levanta um impasse dentro do próprio escopo dos princípios da OSCE (MYCHAJLYSZYN, 2001).

O conflito em questão origina-se, na perspectiva de Karabakh, a partir do direito de autodeterminação dos povos, enquanto que, sob a óptica azeri, há uma clara infração do princípio de integridade territorial. Uma vez que a independência passa a ser a única solução aceita por uma das partes, há uma necessária infração dos fundamentos basilares da OSCE – seja da autodeterminação, seja da integridade territorial. Outro impasse que dificulta a resolução do conflito em questão, ademais, é a falta de poder econômico para financiar os projetos propostos pelo Grupo Minsk, fato que dificulta a implementação dos pacotes propostos pela organização e aumenta a influência de grupos interessados na manutenção do conflito (MYCHAJLYSZYN, 2001).

Após anos de congelamento do conflito em vista do insucesso nas negociações e da supressão de interações violentas entre as partes, o conflito voltou a apresentar sinais de retomada das hostilidades em 2016. Em fevereiro deste ano, a Armênia acusou o Azerbaijão de investidas militares que desrespeitariam o acordo, declaração que gerou movimentações armadas sobre Karabakh por ambas as partes: ao longo de ofensivas que se prolongaram de 2 a 11 de abril, cerca de 200 pessoas foram mortas em decorrência do evento. Graças à atuação da OSCE e, sobretudo em decorrência de negociações encabeçadas pela Rússia, a escalada foi contida.

A situação do litígio permaneceu estável até meados de 2020, quando o então presidente do Azerbaijão, Ilham Aliyev, afirmou que a resolução militar do conflito seria possível. A declaração foi o estopim para uma nova escalada do conflito, que voltou a contar com investidas militares entre azeris e armênios e mobilizou Rússia, União Europeia as Nações Unidas.

A incongruência entre Estado e nação constitui a lógica fundamental que sustenta o início do conflito em N-K, região que ainda hoje permanece ocupada por Karabakhs de origem étnica armênia e subjugada à jurisdição dos azeris . Os desdobramentos que sucederam o estopim do conflito em 1991, contudo, apontam para uma indelével característica da disputa: o silenciamento dos armênios de Karabakh. Se a princípio temos uma luta por autodeterminação, atualmente temos um contexto em que Armênia e Azerbaijão lutam pelo futuro de um território cujo povo busca por uma independência não atrelada a nenhum dos Estados. O protagonismo de armênios, azeris e terceiros na arena de negociações a respeito do futuro de uma nação irredentista, assim, parece não necessariamente favorecer os desejos da população de N-K e levanta questionamentos acerca de quais interesses têm sido de fato defendidos ao longo do histórico do conflito.

Outra questão que merece menção especial é a estratégica localização do litígio. N-K está no caminho de duas grandes rotas energéticas: (1) a malha de gasoduto que liga Rússia e Armênia e (2) linhas de transporte estabelecidos entre Turquia e Geórgia. Em virtude desta disposição geográfica, a disputa em questão tem relevância aos assuntos internos de atores regionais, nomeadamente Rússia e Turquia. Tipicamente interessada na manutenção de sua influência no espaço pós-soviético, a primeira sempre se mostrou um ator atento aos desdobramentos do cenário aqui discutido e proativo no que diz respeito à liderança do processo negocial. Contudo, ao passo em que os russos tipicamente demonstram favorecer um alinhamento à Armênia, o Azerbaijão tem sido recorrentemente apoiado pela Turquia, cuja expansiva presença no cenário securitário da Transcaucásia vem se afirmando em tempos recentes. É este, pois, o panorama geral de um dos mais sangrentos conflitos do Cáucaso,

Imagem: Garoto brinca em cidade destruída pela guerra de Nagorno-Karabakh, Brendan Hoffman/Getty Images

REFERÊNCIAS

BERG, E.; MÖLDER, M. Who is entitled to ‘earn sovereignty? Legitimacy and regime support in Abkhazia and Nagorno-Karabakh. Nations and Nationalism. Estonia, v. 18, n. 3, p. 527-545, 2012

DE WAAL, Thomas. Black Garden: Armenia and Azerbaijan through Peace and War. Nova Iorque: New York University Press, 2003.

GEUKJIAN, Ohannes. Ethnicity, nationalism and conflict in the South Caucasus: Nagorno-Karabakh and the legacy of Soviet nationalities policy. England: Ashgate Publishing, 2012.

HILL, R. J. The Soviet Union: From “federation” to “Commonwealth”. Regional Politics and Policy. Londres, v.3, n.1, p.96-122, 1993.

MYCHAJLYSZYN, Natalie. The OSCE and Regional Conflicts in the Former Soviet Union”, Regional & Federal Studies: vol.11, ed.3, p.194-219, 2001.

POKALOVA, Elena. Conflict Resolution in Frozen Conflicts: Timing in Nagorno-Karabakh.  Journal of Balkan and Near Eastern Studies: vol.17, ed.1, p.68-85, 2015.

SIMÃO, Licínia. Engaging Civil Society in the Nagorno-Karabakh Conflict: What Role for the EU and its Neighbourhood Policy?. Brighton: MICROCON, 2010.

compartilhe este post