Aos que sonhavam com a estabilidade, o ano de 2018 veio para comprovar que não há crise que não possa piorar. O caos político instaurado com o processo ilegítimo de deposição da presidenta Dilma Rousseff levou a uma verdadeira profusão de forças conservadoras em nossa sociedade. É gritante a ascensão de movimentos políticos reivindicando, por paradoxal que o seja, a restrição dos direitos sociais. É ainda mais alarmante a movimentação de setores militares no ímpeto de sobressair-se enquanto atores políticos, articulando candidaturas e aproximando-se inclusive de tais grupos políticos.
Para a pesquisadora Maria Celina D’Araujo[1] as forças armadas brasileiras “se beneficiaram da maturação do corporativismo como política de Estado para fazer valer seus interesses e, passado o período de governo autoritário, utilizaram esse recurso como forma de explicitar e evidenciar demandas da corporação”, estando “fora do campo político-eleitoral” desde sua retirada do poder ao final dos anos 1980. Se em algum momento houve, de fato, tal retirada do campo político-eleitoral, no cenário atual esta tese cai por terra. Para além das controversas declarações do atual comandante do Exército, general Villas Bôas, chama atenção o movimento de militares da reserva que buscam não apenas a candidatura de pessoal próprio, mas também a alavancada de candidatos que, em seus parâmetros, condizem com o que o Brasil “precisa” em termos de política.
Na ativa ou na reserva, é inegável a insistência de setores das forças armadas brasileiras em se conformar enquanto ator político. A princípio, os militares da reserva têm garantidos os seus direitos de manifestação política. Os da ativa, como Villas Bôas, ao fazê-lo desrespeitam o Regulamento Disciplinar de suas respectivas forças, quebram a hierarquia a qual estão submetidos e erroneamente se configuram enquanto atores políticos em contexto no qual só lhes cabe acatar ordens. Como se prevendo os fatos acima mencionados, matéria da revista Le Monde Diplomatique Brasil, veiculada em Março de 2018, trazia um apontamento interessante acerca da insistente manifestação política dos militares. O pesquisador Fábio Malini, citado na matéria, em uma análise das redes políticas brasileiras aponta que há uma considerável participação de membros das forças armadas em redes sociais, tecendo comentários similares aos do comandante do Exército e dos demais generais que o seguiram.
A pergunta é: tendo em vista que o pacto hobbesiano implica a cessão do direito de uso dos meios de violência enquanto forma de resolução dos conflitos sociais em troca da garantia de ordem e proteção providas pelo Estado, seria sensato que os integrantes dos braços armados deste mesmo Estado estivessem inseridos na atividade política? Em outras palavras: num quadro democrático, é possível conceber que indivíduos advindos das forças policiais e militares se conformem enquanto atores políticos? Não bastasse o exercício de funções alheias aos seus deveres constitucionais – como a administração de escolas –, os militares insistem em fazer política, intenção que nunca esteve verdadeiramente ausente.
Resultado de um processo de transição pactuado, sempre houve na caserna a pretensão de tutela em relação à política brasileira, como se a eles coubessem o resguardo da vida política e, sobretudo, da ordem no país. Os resquícios de tal processo são diversos. Citamos aqui a crescente participação das forças armadas em ações de segurança pública enquanto fruto de tais prerrogativas mantidas quando da negociação de sua saída do governo. Sua função seria, portanto, a de um Poder Moderador, responsável pelo funcionamento das demais instituições. É sintomática, nesse sentido, a declaração do general Hamilton Mourão, famoso pelas manifestações controversas e antidemocráticas acerca de uma possível intervenção militar no país, sobre a “necessidade de candidaturas militares” a postos políticos. Em 26 de Fevereiro de 2018, o general, atualmente na reserva, afirmou “planejar uma frente de candidatos das Forças Armadas” para as eleições deste ano. Mesmo na reserva, o general se mostra ativo em fazer dos militares atores políticos. Sua crítica da intervenção federal no Rio de Janeiro exemplifica sua linha de pensamento, uma vez que enfoca, justamente, o fato de os militares terem recebido “apenas” poder militar. Por absurdo que o seja, para ele a situação demandaria que os militares obtivessem também poder político!
Daí que retomo o questionamento: podem os militares fazer política? A questão aqui não é negar aos militares os direitos inerentes à cidadania. Entretanto, pelas razões já abordadas, a preocupação com os efeitos da ascensão militar a cargos decisórios é justificada. A questão posta é se os militares estão dispostos a jogar o jogo político e se submeterem às regras de uma sociedade alegadamente democrática ou se, mais uma vez, romperão com tais regras quando, por seus padrões morais, a sociedade estiver desvirtuada. O ranço autoritário que permeia setores das forças armadas brasileiras é contraditório às iniciativas de participação nas dinâmicas político-partidárias. O jogo democrático da representação política dispensa o uso da violência e do autoritarismo.
[1] Militares, Democracia e Desenvolvimento: Brasil e América do Sul. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2010, p. 125-126.
Imagem 1: Tweet do general Villas Bôas, comandante do Exército.
Imagem 2: Paraqueditas dos Exército Brasileiro. Por: Exército Brasileiro.
Jorge Matheus Oliveira Rodrigues é mestrando pelo Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (UNESP/UNICAMP/PUC-SP).