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A reinvenção do crime organizado transnacional em tempos de pandemia

Tales de Paula Roberto de Campos

Mestrando em Relações Internacionais pelo Programa de Pós-Graduação em

Relações Internacionais San Tiago Dantas (UNESP-UNICAMP-PUC-SP)

Email: talesdepaula0@gmail.com

 

A capilaridade das operações criminais está aquém da limitação geográfica. Como um exemplo fidedigno desta afirmação, a seguinte reportagem ilustra como o Primeiro Comando da Capital (PCC) – representado por um de seus membros mais importantes – continua tecendo relações com outros grupos criminosos a milhares de quilômetros de distância mesmo em uma situação ímpar para o globo neste momento: em plena pandemia do Coronavírus. Na segunda-feira, 13 de abril de 2020, uma operação conjunta envolvendo a Polícia Federal do Brasil (PF), autoridades locais moçambicanas e auxílio informacional do Drug Enforcement Administration (DEA) prendeu Gilberto Aparecido dos Santos, mais conhecido como “Fuminho” em Maputo, capital do país. Ligado ao Primeiro Comando da Capital, Fuminho era procurado por autoridades brasileiras e internacionais desde 1998, e acusado de diversos crimes, dentre os quais inclui-se a participação indireta nos assassinatos de notórios “irmãos” da facção paulista “Gegê do Mangue” e “Paca” (STARGARDTER; MUCARI, 2020, MACEDO; VASSALLO, 2020).

O crime organizado é uma atividade que pode mudar rapidamente: toda sua estrutura, hierarquia e recursos necessários para a sua subsistência podem ser alterados em curto prazo. O crime cria as próprias condições para que as oportunidades de articulação ilegal sejam possíveis (ALBANESE, 2000). Em oposição aos empreendimentos ilegais, o Estado como autoridade central não só sofre com os efeitos negativos de uma economia paralela e predatória, mas também não se dá conta que facilita o crescimento e difusão de grupos criminosos. É por tal motivo que seus recursos se tornam, mais cedo ou mais tarde, subutilizados. Desta forma, quando a alternativa é agir, o Estado já perdeu as forças necessárias para responder a altura da ameaça. Seu sistema político acaba minado pela corrupção interna causada pelos grupos à margem da lei em um cenário avançado de parasitismo criminal (KARSTEDT, 2014).

Por exemplo, entre os anos de 1920 a 1933, em razão da adoção da Lei Seca nos Estados Unidos, as máfias capitalizaram a proibição de bebidas alcoólicas a fim de construir uma economia ilegal envolta na produção de álcool e derivados (HILL, 2006). Da mesma forma, durante o processo de entrada dos Estados Unidos na Segunda Guerra Mundial (1939-1945), setores de inteligência da marinha teceram relações com o submundo do crime que controlava as docas e a pesca na cidade de Nova Iorque. Grupos liderados pelos mafiosos Joe Adonis, Willie Moretti e “Lucky” Luciano concordaram em vigiar e impedir qualquer ato de espionagem do Eixo na costa marítima de Nova Iorque durante o decorrer do conflito (BROOKS, 2017). Em suma, o crime organizado é volátil e altera facilmente as condições conforme lhe convier.

Em uma situação onde a estrutura que compõe o Estado é forçada a utilizar o máximo de sua envergadura, a pandemia do COVID-19 leva toda a economia e os serviços públicos a serem centralizados em prol da saúde geral da população. Esta estratégia vai se tornando cada vez inferior conforme menor a renda ou a infraestrutura disponível. Uma vez que mesmo Estados com alta distribuição de capital como a Itália sofrem os efeitos nefastos da rápida expansão do Coronavírus, o resultado em nações em desenvolvimento e subdesenvolvidas seria severo (MAXMEN, 2020). É por tal motivo que, nos Estados onde os efeitos do crime organizado são mais acentuados, provavelmente esta será uma janela para os grupos criminosos explorarem outras oportunidades de enriquecimento a fim de brevemente reorientarem sua estrutura.

O resultado desta estratégia no mundo criminal é único – a fórmula para manter as atividades ilegais rentáveis está sendo novamente aprofundada durante este momento de pandemia. Por exemplo, de acordo com o ex-capo da Família Colombo, Michael Franzese, “este é um cenário perfeito para golpes, e alguns dos meus antigos associados estão na rua neste momento”. Claramente, a maneira como cada organização deve se reformular para se tornar novamente sustentável varia e por vezes certos negócios e atitudes transnacionais precisam ser alteradas ou abandonadas temporariamente. Os fluxos transnacionais eram aliados dos criminosos. Em tempos de COVID-19, atividades que necessitam de movimento e contato humano precisam ser repensadas. Na Bósnia, roubos de carros têm sido cada vez mais difíceis com menos movimentos nas ruas uma vez que as pessoas se encontram em isolamento social (BEHAR, 2020).

O crime organizado deverá encontrar sua própria forma de buscar demandas e providenciar ofertas para mercados nacionais e internacionais. Se, por um lado, em El Salvador, o distanciamento social tem impactado na diminuição radical nos homicídios e na eliminação de rivais por gangues (GLOBAL INITIATIVE AGAINST TRANSNATIONAL ORGANIZED CRIME, 2020), no Brasil, o Comando Vermelho (CV) estabelecido na Cidade de Deus e na favela do Jacarézinho aplica toques de recolher e ameaças de agressão em caso de descumprimento das normas em razão da pandemia (BLOIS, 2020). Em outro extremo,  milícias no Rio de Janeiro estão forçando comerciantes locais a abrirem o comércio por meio de extorsão e de taxas (POLÍCIA INVESTIGA…, 2020). A forma como se exerce domínio criminal pode sofrer variações.

Em termos transnacionais, a carência de oferta de determinados produtos estão afetando a rotina de criminosos. Os traficantes mexicanos não estão conseguindo encontrar os ingredientes necessários para a produção de metanfetamina dado que diversos produtos originários da China estão sendo barrados em grande quantidade em entrepostos comerciais. Da mesma forma, coiotes na Líbia não têm condições de traficar pessoas do Mediterrâneo para as fronteiras da Europa (GLOBAL INITIATIVE AGAINST TRANSNATIONAL ORGANIZED CRIME, 2020). Como um efeito dominó, menos imigrantes ilegais afetam a renda de atravessadores que ajudavam a transportar parte das 60 mil pessoas que chegavam em meio a crise migratória através  da rota dos Balcãs anualmente (GLOBAL INITIATIVE AGAINST TRANSNATIONAL ORGANIZED CRIME, 2020a).

Entretanto, há atividades à distância que seguem sem alteração e se tornaram o novo foco de evidência do crime organizado. Por exemplo, a Interpol regularmente realiza a chamada “Operação Pangéia” com o objetivo de impedir a venda online de produtos farmacêuticos no mercado negro. Durante todo o período de existência do projeto foram feitas mais de 3 mil apreensões e 105 milhões de medicamentos retirados de circulação. De acordo com a Interpol, 11 por cento dos remédios revendidos por meio da Internet são contrabandeados (INTERPOL, 2019). Durante a pandemia do COVID-19, uma operação conjunta envolvendo a Europol, a Interpol e autoridades de 90 países na Operação Pangéia de 2020 encontraram, entre os dias 3 a 10 de março, receitas falsas de supostas curas para o Coronavírus e contrabando de material hospitalar. Em 121 apreensões, foram recuperados 37.000 itens médicos (em sua maioria, máscaras cirúrgicas), e 13 milhões de euros em material farmacêutico desviado (EUROPEAN UNION, 2020).

A comercialização ilegal de produtos farmacêuticos tem nos crimes cibernéticos uma das formas de propagação. Hackers lançaram um ransomware¹ no sistema computadorizado do Hospital Universitário de Brno, na República Tcheca, atingindo a estrutura médica responsável pela testagem e tratamento da COVID-19. Com a fragilidade dos sistemas de saúde, grupos criminosos realizaram cyber-ataques ao longo dos três meses por todo globo contra departamentos nacionais, roubaram dados, cometeram fraudes e invadiram contas pessoais a fim de venderem informações obtidas ilegalmente sobre a pandemia na internet (GLOBAL INITIATIVE AGAINST TRANSNATIONAL ORGANIZED CRIME, 2020b).

Em suma, aos poucos o crime organizado vai encontrando a sua forma que melhor privilegia seus membros em meio ao fechamento dos meios físicos. A quarentena e as medidas de distanciamento são um desafio aos estudos transnacionais. A interação que envolve instituições ilegais a partir do momento em que tudo é obrigado a ser interrompido impõe desafios a cooperações no exterior. O transnacionalismo envolvendo dois países ou mais por meio de organizações variadas sofrem diversas implicações. O mesmo questionamento deve ser feito em relação a como as fronteiras nacionais vem a impactar as ações de atores multinacionais, assim como qualquer que seja a manifestação de soberania nacional (HUNTINGTON, 1979).

Entretanto, é importante ressaltar que toda atividade global pôde ser freada uma vez que se tratava de organizações legais pautadas em um pensamento previsto em constituições e normas aceitas por Estados e indivíduos. No caso dos grupos criminosos, a atuação é marginal às normas e ainda mais à ordem criada por governos. Por mais que o transnacionalismo esteja em um período crítico (WILLETS, 2001), o debate sobre a reformulação do crime organizado transnacional amplia-se conforme certas atividades ilegais são amplamente afetadas pela falta de recursos (desde ingredientes para produção de drogas a pessoas dispostas a atravessar fronteiras nacionais), assim como a forma que outras destas irão prevalecer – principalmente uma vez que os Estados estão operando em sua capacidade máxima e envoltos em uma crise de saúde pública.

 

¹ Um ransomware se trata de um ataque ao sistema operacional de um determinado usuário de computador. Normalmente, ele não poderá ter acesso aos seus próprios dados ou o controle de sua conta pessoal. Consequentemente, o hacker exige que a pessoa afetada tenha acesso novamente mediante resgate ou pagamento ao infrator (GLOBAL INITIATIVE AGAINST TRANSNATIONAL ORGANIZED CRIME, 2020b).

 

REFERÊNCIAS:

ALBANESE, Jay S. The causes of organized crime: do criminals organize around opportunities for crime or do criminal opportunities create new offenders?. Journal of Contemporary Criminal Justice, vol. 16, n. 4, p. 409-423. Nov. 2000.

BEHAR, Richard. Organized Crime In The Time Of Corona. Forbes. 27 de março de 2020. Coronavírus. Disponível em: https://www.forbes.com/sites/richardbehar/2020/03/27/organized-crime-in-the-time-of-corona/#2a571b0e150d. Acesso em: 18/04/2020.

BLOIS, Caio. Tráfico impõe toque de recolher em favelas do Rio em meio a crise do corona. Uol. 24 de março de 2020. Coronavírus. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2020/03/24/coronavirus-faccoes-do-trafico-impoem-toque-de-recolher-em-favelas-do-rj.htm. Acesso em: 18/04/2020.

BROOKS, Tom. Naval intelligence and the mafia in World War II. NSISA History Project. Aug. 2017. Disponível em: http://ncisahistory.org/wp-content/uploads/2017/08/Naval-Intelligence-and-the-Mafia-in-World-War-II.pdf. Acesso em: 16/04/2020.

EUROPEAN UNION. Europol. Rise of fake ‘corona cures’ revealed in global counterfeit medicine operation. 21 de março de 2020. Disponível em: https://www.europol.europa.eu/newsroom/news/rise-of-fake-%E2%80%98corona-cures%E2%80%99-revealed-in-global-counterfeit-medicine-operation. Acesso em: 18/04/2020.

GLOBAL INITIATIVE AGAINST TRANSNATIONAL ORGANIZED CRIME. A problem displaced: the smuggling of migrants through Bosnia and Herzovina. Geneva, mar. 2020a. p. 1-15. Disponível em: https://globalinitiative.net/wp-content/uploads/2020/03/Bosnia-Migration.16.03.web3_.pdf. Acesso em: 18/04/2020.

GLOBAL INITIATIVE AGAINST TRANSNATIONAL ORGANIZED CRIME. Crime and contagion: the impact of pandemic on organized crime. Geneva, mar. 2020. p. 1-18. Disponível em: https://globalinitiative.net/wp-content/uploads/2020/03/CovidPB1rev.04.04.v1.pdf. Acesso em: 18/04/2020.

GLOBAL INITIATIVE AGAINST TRANSNATIONAL ORGANIZED CRIME. Cybercrime: threats during the COVID-19 pandemic. Geneva, apr. 2020b. p. 1-19. Disponível em: https://globalinitiative.net/wp-content/uploads/2020/04/Cybercrime-Threats-during-the-Covid-19-pandemic.pdf. Acesso em: 18/04/2020.

HILL, Peter B. E. The Japanese mafia: Yakuza, Law, and the State. New York: Oxford University Press, 2006. p. 6-65.

HUNTINGTON, Samuel P. Transnational Organizations in World Politics. World Politics, v. 25, n. 3, p. 333-368, Apr. 1979. Disponível em: https://www.jstor.org/stable/pdf/2010115.pdf. Acesso em: 18/04/2020.

INTERPOL. News and Events. Operation Pangea – shining a light on pharmaceutical crime. 21 nov. 2019. Disponível em: https://www.interpol.int/News-and-Events/News/2019/Operation-Pangea-shining-a-light-on-pharmaceutical-crime. Acesso em: 18/04/2020.

KARSTEDT, Susanne. Organizing crime: the state as agent. In: PAOLI, Letizia (ed). The Oxford Handbook of Organized Crime. New York: Oxford University Press, 2014. p. 303-321.

MACEDO, Fausto. VASSALLO, Luiz. Veja ‘Fuminho’, lugar-tenente de Marcola do PCC, preso em Moçambique. O Estado de São Paulo. 13 de abril de 2020. Política. Disponível em: https://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/veja-fuminho-lugar-tenente-de-marcola-do-pcc-preso-em-mocambique/. Acesso em: 16/04/2020.

MAXMEN, Amy. How poorer countries are scrambling to prevent a coronavirus disaster. Nature. Vol. 580. p. 173-174. Apr. 2020. Disponível em: https://www.nature.com/articles/d41586-020-00983-9. Acesso em: 22/04/2020.

POLÍCIA INVESTIGA reabertura de comércio a mando de milícia no Rio. Uol. 17 de abril de 2020. Coronavírus. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2020/04/17/policia-investiga-reabertura-de-comercio-a-mando-de-milicia-no-rio.htm. Acesso em: 18/04/2020.

STARGARDTER, Gabriel. MUCARI, Manuel. Líder do PCC, “Fuminho” é preso em Moçambique e indica expansão do grupo pelo mundo. Uol. 14 de abril de 2020. Economia. Disponível em: https://economia.uol.com.br/noticias/reuters/2020/04/14/lider-do-pcc-fuminho-e-preso-em-mocambique-e-indica-expansao-do-grupo-pelo-mundo.htm. Acesso em: 16/04/2020.

WILLETS, Peter. Transnational Actors and International Organizations in Global Politics. In: BAYLIS, John B. SMITH, S (eds.). The Globalization of World Politics. 2. Ed. New York: Oxford University Press, 2001. p. 356-383.

 

Créditos da imagem: Murph CC.

Soldados da Democracia e da Paz? Considerações sobre os efeitos da participação de militares em operações de paz sobre as relações civis-militares

Leonardo Dias de Paula, Mestre em Relações Internacionais pelo PPGRI San Tiago Dantas e pesquisador do Gedes

 

A participação em operações de paz da Organização das Nações Unidas (ONU) pode ser observada como uma função alternativa de emprego para as forças armadas. As possibilidades de profissionalização, redirecionamento do emprego das forças ao exterior, o contato com princípios democráticos e de proteção de direitos e liberdades fundamentais, contidas na interpretação convencional sobre as operações de paz, podem ser compreendidos como fatores potencialmente capazes de contribuir para a consolidação de relações entre civis e militares balizadas pelo controle das forças castrenses pelos representantes políticos eleitos.

Assim, é possível vislumbrar que o engajamento das forças armadas em missões de paz contribua para a transformação dos propósitos e valores partilhados pelas instituições militares em prol de relações civis-militares em que se verifica um consolidado controle civil sobre os militares (VELÁZQUEZ, 2010). Charles Moskos (1976) nutriu a expectativa de que a participação em operações de paz poderia modificar as interações entre militares, outros poderes políticos e a sociedade. Em síntese, a participação em operações de paz resultaria em forças militares distantes da disputa política e do desempenho de funções subsidiárias internas, e, portanto, concentradas em missões voltadas ao exterior.

No entanto, ao analisar o caso brasileiro, é possível identificar efeitos contrários a essa expectativa. A participação na Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti (Minustah), entre 2004 e 2017, teve implicações para o emprego das forças armadas em missões internas e para o prestígio dos militares diante da opinião pública, contribuindo para seu retorno ao centro do poder. Ambos os efeitos seguem na direção oposta à consolidação de mecanismos de supervisão das forças armadas pelo poder civil.

Uma opção para iniciar esse estudo concerne à identificação das atividades desempenhadas por contingentes militares em operações de paz da ONU. Com efeito, as tarefas desempenhadas em missões de paz diferem das funções de defesa nacional, próprias às forças castrenses, ainda que ambas voltem sua face ao exterior. Observam-se, entretanto, que as operações de paz aprovadas pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas (CSNU) passaram por transformações. Enquanto as missões desdobradas no período da Guerra Fria estiveram predominantemente circunscritas a tarefas como a supervisão de acordos de cessar fogo e do movimento das partes beligerantes, os mandatos contemporâneos compreendem funções localizadas em um espectro mais extenso. Ao longo das décadas de 1990 e 2000, as operações de paz incorporaram tarefas como o suporte à distribuição de auxílio humanitário, a realização de projetos de impacto rápido, a supervisão de eleições, entre outras funções.

As atividades contidas nos mandatos de operações de paz contemporâneas, portanto, se aproximam às funções subsidiárias realizadas pelas forças castrenses. Simultaneamente, as missões desdobradas nesse período podem ser caracterizadas por sua maior permissividade ao recurso à violência como instrumento para garantir a realização dos objetivos do projeto internacional de paz. Enquanto as operações de outrora eram regidas por uma estrita limitação no uso de meios coercitivos durante a execução de suas atividades, os mandatos contemporâneos são fundamentados em uma interpretação mais flexível quanto às restrições no uso da violência para alcançar os objetivos políticos aprovados pelo CSNU para cada missão desdobrada em terreno.

A volumosa participação de militares do Exército Brasileiro na Minustah não secundou os mecanismos de controle civil sobre as forças armadas. A atuação dos contingentes brasileiros no Haiti foi caracterizada por concatenar tarefas estritamente relacionadas à esfera da segurança – como o uso da violência contra gangues e criminosos – e projetos de desenvolvimento e de distribuição de auxílio humanitário. Cerca de 37,5 mil militares do país desembarcaram no país caribenho para integrar a missão das Nações Unidas. Durante todo o período, oficiais do Exército brasileiro foram selecionados como comandantes do componente militar da missão de estabilização.

A experiência em operações urbanas adquirida no país caribenho foi relevante para a condução de missões de segurança pública em território brasileiro na forma de operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO). As similaridades entre as operações conduzidas em Porto Príncipe e na cidade do Rio de Janeiro foram frequentemente evocadas: as semelhanças entre as periferias de ambas as cidades – os teatros de operação para as forças armadas brasileiras; as características dos alvos das operações – grupos violentos envolvidos em atividades ilegais; as formas de engajamento, das quais se destaca a criação de bases garantidoras de domínio sobre os territórios urbanos – os “pontos fortes” do contingente militar da missão de paz e as Unidades de Polícia Pacificadora atribuídas à Polícia Militar do estado do Rio de Janeiro.

A violência acentuada é também um elo que une as ações de militares brasileiros no Haiti e nas operações domésticas. Assim, é possível observar a repatriação da experiência adquirida pelas forças armadas nacionais durante a operação de paz em favor de processos de militarização da segurança pública (HARIG, 2019; MARQUES, 2018). O padrão de emprego das forças armadas que caracteriza ambos os tipos de operação desempenhadas por militares brasileiros pode ser arregimentado sob o signo da contrainsurgência, em especial por apensar o uso da violência à realização de atividades de governo dos territórios sob intervenção.

Amiúde, o prestígio auferido durante a operação de paz contribuiu para uma imagem das forças militares como garantidoras da ordem e bálsamo para a conjuntura política nacional. Mesmo se restringirmos nosso estudo à década de 2010, é possível identificar diferentes episódios em que a atuação das forças armadas, ou de membros delas, afetou a cena política brasileira. Manifestações favoráveis a uma intervenção militar na política nacional proliferaram, angariando gradativamente mais fiéis, desde o ano de 2013. Durante a greve de caminhoneiros em 2018, por exemplo, viu-se o estender de faixas clamando por um novo golpe militar; simultaneamente, as forças castrenses foram empregadas para garantir a distribuição de mercadorias essenciais e desobstruir vias em todo o território brasileiro, marchando de encontro aos interesses dos caminhoneiros em greve. Parte relevante desses pedidos esteve fundamentada em uma interpretação torpe do artigo 142º da Constituição Federal de 1988 e em uma futurologia imaginativa de ameaças à ordem.

A comunicação irascível de oficiais da reserva e da ativa das forças militares, muitas vezes realizada através de comentários curtíssimos na rede social Twitter, pressionou representantes democraticamente eleitos e membros do judiciário. Um exemplo dessa pressão pode ser observada durante o julgamento de um pedido de habeas corpus do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, ameaçando uma intervenção em caso de uma imaginada violação da ordem e contrariedade aos anseios de parte da população. Com efeito, durante a década de 2010, sugestões de golpes militares como alternativas para imaginados casos de ameaça à lei e à ordem foram demasiadamente frequentes, indicando a fragilidade da democracia brasileira. As menções à prontidão para o serviço pulularam entre devotos do autoritarismo membros das forças armadas. Um episódio especialmente marcante foram as elegias do general Hamilton Mourão à possibilidade de golpes pelas forças armadas.

É preciso ainda destacar um evento anterior ao pleito. Candidatos de diferentes espectros político-ideológicos se submeteram a sabatinas do então comandante do Exército, general Eduardo Villas-Boas. O militar, que deveria obediência aos representantes eleitos à presidência da República, inspecionou os planos dos postulantes para a política brasileira durante um eventual mandato.

Conquanto seja possível observar a permanência dos militares em questões políticas após a transição ao regime democrático brasileiro, as eleições de 2018 representaram o retorno de militares ao centro do poder através na esfera federal. A vitória de Jair Bolsonaro resultou em uma seleção numerosa de ministros e de outros cargos relevantes oriundos da caserna. O plantel ministerial em janeiro de 2019 contava com seis membros das forças castrenses. Militares passaram a capitanear postos sensíveis às políticas de defesa, como o Gabinete de Segurança Institucional (GSI) e o Ministério da Defesa. Há militares em outros setores: infraestrutura, ciência, empresas estatais. As nomeações não se restringiram aos primeiros escalões do governo federal, irradiando-se por outros níveis e também através das autarquias estaduais.

Parte relevante do ministério empossado no início do ano de 2019, bem como de outros cargos relevantes da Federação, teve experiência na Minustah. Apesar das rotações no elenco, militares permanecem em postos sensíveis. Em fevereiro de 2020, com a indicação do general Walter Souza Braga Netto, os quatro ministérios que despacham da sede do poder Executivo passaram a ser ocupados por militares: três membros das forças armadas e um policial militar. O novo habitué do Palácio do Planalto fora nomeado pelo ex-presidente, Michel Temer, como interventor federal para o estado do Rio de Janeiro em 2018; depois, tornou-se comandante do Estado-maior do Exército.

Comandante do componente militar da Minustah durante o Massacre de 6 de Julho, o general Augusto Heleno tornou-se um dos homens-fortes do governo de Jair Bolsonaro. Ministro do GSI, Heleno protagonizou notícias com declarações que atentam contra a democracia. Em uma gravação transmitida através da internet, o general esbravejou que o governo não deveria aceitar negociações junto a parlamentares. A deselegância do ministro apenas coroa seu desapreço pelo regime democrático.

É preciso insistir: essa breve coletânea de eventos no Brasil contemporâneo contraria as expectativas de que a participação em operações de paz contribuiria para a consolidação de mecanismos de controle e supervisão das forças armadas de um país. Recorrer ao engajamento nesse tipo de missão como alternativa para reformar as forças castrenses e instituir formas de controle civil sobre as instituições militares é uma medida inócua na ausência de outros mecanismos de supervisão (SOTOMAYOR, 2007). Assim, a criação de instituições de controle efetivo depende de um entendimento preciso das características e prerrogativas militares, bem como do processo decisório em um Estado para que mudanças radicais nas relações civis-militares sejam planejadas e implantadas.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

HARIG, Christoph. Re-Importing the ‘Robust Turn’ in UN Peacekeeping: Internal Public Security Missions of Brazil’s Military. International Peacekeeping, Vol. 26, n. 2, 2019.

 MARQUES, Adriana A. Missões de paz e relações civis-militares: reflexões sobre o caso brasileiro. Revista Brasileira de Estratégia e Relações Internacionais. v. 7, n. 14. Jul/dez 2018. p. 242-262.

MOSKOS, Charles C. Peace Soldiers: the Sociology of United Nations Military Forces. Chicago: Chicago University Press, 1976.

 SOTOMAYOR, Arturo. La participación en operaciones de paz de la ONU y el control civil de las fuerzas armadas: los casos de argentina y uruguay. Foro Internacional. 2007. v. XLVII, n. 187 (1). pp. 117-139.

VELÁZQUEZ, Arturo C. Sotomayor. Peacekeeping effects in South America: common experiences and divergent effects on civil-military relations. International Peacekeeping. v. 17, n. 5. 2010. p. 629-643.

Créditos da imagem: Força Aérea Brasileira, Sgt Rezende/ Pelotão de Infantaria da FAB embarca para missão da ONU no Haiti

Brasil y Chile, caminos divergentes

Uno pugna por regresar al pasado, el otro busca encontrar nuevos aires

Artigo de Ernesto López para El Cohete a la Luna

 

En el marco de una globalización que anda a los tumbos, con su deshilachada gobernanza neoliberal sacudida por profundos desentendimientos y conflictos, se ubican los interesantes casos de Brasil y Chile.

La evidencia empírica abunda sobre los trastornos de la globalización. La reciente Conferencia sobre Nuevas Formas de Fraternidad Solidaria, realizada en el Vaticano el pasado 5 de febrero lo reflejó cabalmente. Reunió a las más altas autoridades del FMI (Kistalina Georgieva) y de la CEPAL (Alicia Bárcena), a diversos ministros de economía y/o de finanzas latinoamericanos, entre ellos Martín Guzmán (Argentina), Benigno López (Colombia) y Arturo Herrera (México); y a invitados especiales, como el economista y premio Nobel Joseph Stiglitz, entre otros. Y también al Papa Francisco, quien pronunció un discurso breve y sustancioso.

Sorprendieron las coincidencias que se escucharon. Georgieva hizo una desprejuiciada intervención, inusual entre los altos funcionarios del FMI. Sinceró que el “capitalismo está haciendo hoy más mal que bien en el mundo”. Y agregó que tiene una tremenda deuda global que “nos lleva a estar expuestos a la inestabilidad”.

Stiglitz repitió el diagnóstico rotundo que ha expuesto ya en anteriores declaraciones y columnas de opinión. Sostuvo que el capitalismo está en crisis y debe ser reformado. Y que “el crecimiento de las desigualdades, la destrucción del ambiente, la polarización de nuestras sociedades y el permanente descontento no pueden ser negados”. Para luego rematar: “El fundamentalismo de mercado y la agenda neoliberal han dominado por 4 décadas y han fracasado”.

El Papa Francisco, por su parte, brindó una alocución que inició con una dura advertencia. Dijo: “El mundo es rico y sin embargo los pobres aumentan a su alrededor”. Colocó luego una fuerte crítica al funcionamiento de la economía global, que se desdobló hacia el plano de sus consecuencias sociales. Y enfáticamente afirmó que “no existe un determinismo que nos conduzca a la inequidad universal. Permítanme repetirlo: no estamos condenados a la inequidad universal”.

Estas advertencias y diagnósticos son congruentes con un amplio espectro de acontecimientos  que retratan los trastornos actuales de la globalización económica bajo gobernanza neoliberal y sus secuelas políticas y sociales. Entre otros:

– La interdependencia compleja entre Estados y economías nacionales diversas que alcanzó inicialmente la globalización se encuentra menguada y /o interrumpida en la actualidad.

– El multilateralismo otrora predominante hoy tambalea, como ejemplifican el retiro de Estados Unidos del Tratado de París sobre asuntos climáticos; los desacuerdos dentro del G20 que minimizan su agenda y el estancamiento que atraviesa la Organización Mundial de Comercio.

– El desarrollo de conflictos comerciales, financieros y tecnológicos entre Estados Unidos y China.

– El abandono de la gran potencia del norte –de la mano de Donald Trump— del Acuerdo Transpacífico de Comercio y de la Asociación Transatlántica para el Comercio, que se encontraba aun en gestación.

– El pandemónium en que se ha convertido la Unión Europea, al que se ha sumado recientemente el Brexit.

– Las movilizaciones y protestas sociales antiglobales que aquejan a diversos países y la recomposición de escenarios políticos que han dado lugar al inesperado surgimiento de gobiernos de centroderecha.

A todo esto hay que agregar la existencia de unos teatros de guerra persistentes y de un espeso clima belicista a escala mundial, que se acompaña de unas geopolíticas cada vez más desembozadas, entre las que destaca especialmente la norteamericana.

Todo lo aquí indicado son síntomas que abonan la hipótesis de que la globalización y su gobernanza tal como se ha conocido hasta hora, se encuentran en un cono de sombra parecido a un ocaso.

 

Brasil y Chile

En este contexto, Brasil y Chile navegan coyunturas divergentes que conviene examinar.

Brasil padeció el golpe blando que derrocó a Dilma Rousseff en mayo de 2016 y poco después, el encarcelamiento de Lula da Silva. Quedó abierto así el camino de regreso a un régimen neoliberal, opción que había sido descartada por los exitosos gobiernos del Partido de los Trabajadores (PT). Esta operación en dos etapas, impulsada por un cuadrilátero integrado por un grupo de medios, por los militares, por diversas agencias de los Estados Unidos y por el Partido Socialdemócrata Brasileño y el Movimiento Democrático Brasileño (MDB), culminó con la elección como presidente del exótico Jair Bolsonaro,  un viejo nacionalista de centroderecha que simultáneamente profesa un marcado fundamentalismo de mercado.

Como bien ha definido Eric Nepomuceno , Bolsonaro destrozó a Brasil en 400 días. Profundizó el Programa de Desestatización impulsado inicialmente por Michel Temer en busca de una ampliación de la privatización de empresas nacionales y abrió las puertas a la explotación privada del petróleo offshore. Arrasó con los programas y políticas sociales establecidos por los gobiernos del PT. Descuajeringó la largamente elaborada política exterior autonómica brasilera. Y entre otros objetivos va por la explotación de la Amazonia y la evangelización de los pueblos originarios que todavía la habitan. Su fundamentalismo neoliberal y su furioso alineamiento subordinado no están dejando títere con cabeza. Practica con enjundia la ortodoxia de un converso.

Chile fue pionera en incorporarse a la globalización en Sudamérica, con cierto éxito en el plano estrictamente económico. Ocurrió bajo la dictadura de Augusto Pinochet y  se continuó bajo los gobiernos democráticos que le siguieron, sin mayores conflictos, asentada sobre una transición pactada, que incluyó la aceptación de la Constitución de 1980 impuesta por Pinochet manu militari, es decir, por decreto.

Este largo decurso entró en crisis en octubre del año pasado. Una tras otra fueron desarrollándose combativas protestas y movilizaciones populares centradas en reivindicaciones específicas: el costo del transporte, de la educación, del esparcimiento y de la vida cotidiana  en general. Fueron, asimismo, fogoneadas por el ácido hastío resultante del endeudamiento crediticio al que la gente se veía obligada a recurrir debido a sus bajos ingresos, entre otros motivos. Las calles de las principales ciudades de Chile fueron ganadas por una persistente protesta cuyo cimiento principal era y es la inequidad. Las muchedumbres insurgieron contra las políticas gubernamentales a partir de reclamos y exigencias específicas. Pero también, por carácter transitivo, contra los fundamentos y las políticas filo-globalizadoras que habían sido sostenidas tanto los partidos del centroderecha como los de centroizquierda.

En tan sólo cuatro meses, el apoyo al Presidente Sebastián Piñera quedó reducido al 6%, según una encuesta del Centro de Estudios Políticos realizada en enero de este año. A mediados de noviembre, se vio obligado a convocar una consulta nacional denominada Plebiscito Nacional 2020, que se realizará el próximo 26 de abril. El electorado deberá decidir si aprueba o no una reforma constitucional  y si los miembros de esa convención constituyente se elegirán, todos, por voto directo o si se apelará a una fórmula mixta: 50% elegidos por voto directo y 50% de miembros del actual Congreso.

 

Final

Es curiosa y desafiante –en términos intelectuales— la contraposición de los casos brasileño y chileno. Brasil se ha lanzado de lleno a incluirse en un modelo de globalización que recula y tambalea. Chile, en cambio, se ve abrumada por una protesta social que ha puesto en la picota al modelo filoglobalista instalado por Pinochet y parece haberle marcado un límite definitivo. ¿Cómo seguirán estas historias que quizá muestren posibilidades y alternativas al resto de los países sudamericanos?

Brasil corre sin mesura ni duda, nuevamente, al encuentro de una globalización que día tras día está dejando de ser lo que era. El bolsonarismo parece desdeñar la posibilidad de que aquella haya alcanzado un punto de inflexión y de que se encuentre a las puertas de un proceso de cambio. Chile, por el contrario, más allá de la tendencia a la retranca de su sistema político, impulsada por las protestas y las movilizaciones que la recorren, probablemente encare un aggiornamento de su manera de estar en el mundo y de intervenir sobre la cuestión social.

Es difícil escudriñar el porvenir. Tanto más cuanto que los apetitos geopolíticos de las grandes potencias –con niveles de enfrentamiento altos, hoy— en particular, la de aquella que nos toma por “patio trasero”, probablemente no repararán ni en formas ni en procedimientos. Habrá que ver también cómo influye esto sobre la curiosa situación que se presenta: Brasil parece pugnar por regresar al pasado en tanto que Chile anda en busca de salir de aquél y de encontrar nuevos aires. Así las cosas, valdrá la pena prestarle atención a estos procesos divergentes.

 

Acesso: http://www.elcohetealaluna.com/brasil-y-chile-caminos-divergentes/?fbclid=IwAR2y9ucDK_Zv68r0SCm2YRxrfsqn4_DB7cmfe2dlXuW7bdOaeutuKORk9hk

O exército futurista da Rússia: soldados ciborgues

                     Jonas de Paula Vieira, graduando em Relações Internacionais pela Universidade Estadal Paulista (UNESP), campus de Franca

 

Historicamente, as grandes potências têm investido no desenvolvimento de novas tecnologias militares para obter vantagens estratégicas em relação aos seus rivais. Assim, por exemplo, foram criados contemporaneamente os armamentos nucleares, as armas ultrassônicas (AUS), as bombas EMPs (Electronic Magnetic Pulse) os caças de quinta geração, os drones, além dos modernos sistemas de monitoramento e localização (GPS, Strelets), entre uma diversidade de tecnologias mais ou menos significativas militarmente. Na ordem global atual, essas inovações têm sido lideradas, principalmente, pelos Estados Unidos e pela Rússia que apresentam níveis semelhantes de poderio militar, tal qual a China, que tem se destacado nos últimos anos nos setores espacial e aeroespacial. Todavia, o Estado russo está desenvolvendo uma tecnologia que poderia lhe dar uma relativa vantagem em relação ao seu principal rival, os Estados Unidos, pelo menos no que condiz à infantaria, já que por meio de seu projeto Rátnik (“Guerreiro” em português) está conseguindo transformar o seu soldado em um verdadeiro ciborgue, como se tivesse saído de um filme de ficção científica.

Para seu criador, Manfred Clynes, o termo ciborgue foi cunhado em 1960 e é uma contração de organismo cibernético – pois em inglês cyborg consiste da junção das palavras cybernetic organism –  que significa a incorporação de estruturas robóticas em um organismo biológico, sem que ele sofra modificações da sua hereditariedade. Clynes era engenheiro biomédico e levantou a hipótese de desenvolver um organismo modificado, parte máquina e parte humana, que potencializasse as chances de exploração do espaço sideral. O ciborgue seria a solução das limitações humanas, já que sofreria melhorias bioquímicas, psicológicas e físicas, proporcionadas por suas partes eletrônicas e assim, o homem estaria “livre” de suas limitações e uma nova era evolucionista começaria.

Por outro lado, Donna Haraway, filósofa e teórica do “ciberfeminisno”, discorda do conceito defendido por Clynes , porém dá uma definição crucial do termo ciborgue em seu ensaio “Manifesto Ciborgue”: “um ciborgue é um organismo cibernético, um híbrido de máquina e organismo, uma criatura de realidade social e também uma criatura de ficção” (Haraway, 1991, p. 36). Para ela, a ideia de ciborgue alude a um corpo-máquina de alta performance, no qual habita um humano, sendo toda a sociedade ciborgue, pois a vida atual provoca uma tênue relação entre tecnologia e pessoas, tornando-se impossível diferenciar onde termina o humano e começa o artificial. Já as definições mais modernas de Chris Gray e Figueroa-Sarriera de 1995, incluem todo o tipo de intervenção tecnológica no corpo humano, seja o uso de medicamentos ou psicotrópicos, seja a interconectividade do homem com instrumentos de mecânica, informática ou eletrônica.

As definições dos autores apresentam oscilações quanto ao conceito do que é ciborgue, porém, concordam que o amálgama entre corpo biológico e máquina potencializa as capacidades sensoriais e cognitivas, além da resistência e da durabilidade da espécie humana. O homem se torna capaz de dar grandes saltos evolutivos em um curto prazo de tempo e de romper barreiras biológicas intransponíveis, como deter uma superforça proveniente de exoesqueletos ou usar um simples marca-passo que regula os batimentos cardíacos de seu usuário, postergando sua vida.

O Estado russo se inspirou na terminologia da palavra ciborgue e procurou criar um exército de “humanos-máquina”. Assim, impulsou a concepção do projeto Rátnik em meados de 2011. O audacioso projeto é dividido em três etapas: Rátnik-1, Ratnik-2 e Rátnik-3. Os dois primeiros apresentam armadura corporal modernizada, visão noturna/térmica, um moderno sistema de comunicação via voz e vídeo (Strelets), muito inspirado no sistema de combate francês FELIN, dentre outros equipamentos. Vale destacar que o Rátnik-2 apresenta um sistema de camuflagem inteligente, que muda conforme o ambiente de combate do soldado, além do  traje que suporta temperaturas entre -30ºC e 50ºC.  Os trajes Rátnik começaram a ser entregues às Forças Armadas Russas ainda em 2015, e vestem as tropas das forças especiais (Spetsnaz), os fuzileiros da Frota do Pacífico e os snipers da base militar russa na Armênia, e posteriormente, os soldados russos que combatiam na guerra civil da Síria. Segundo o governo, até 2020 todos os combatentes estarão equipados com o traje. O Tenente General Andrey Grigoriev, chefe da Advanced Research Foundation (ARF) responsável pelo projeto Rátnik, disse em uma entrevista em 2018 à rede de televisão estatal russa, RIA Novosti, como seria o campo de batalha do futuro: “Eu vejo uma grande robotização, de fato, a guerra do futuro envolverá operadores e máquinas, e não soldados atirando uns nos outros no campo de batalha”.

O principal avanço que a Rússia vem dando para a concretização de seu exército ciborgue, se dá pela terceira etapa do projeto Rátnik, no qual o traje será composto por dois exoesqueletos: um exoesqueleto ativo, cujas dobradiças são equipadas com movimentações hidráulicas e elétricas e um exoesqueleto passivo, servindo unicamente para reduzir a carga sobre as articulações e proteger os usuários de choques balísticos. Somado a isso, o traje apresentaria um tecido invisível à imagem infravermelha com camuflagem inteligente e um capacete com HUD (head up display) exibindo informações sobre o traje, o ambiente, as horas e o tipo de armamento e vestimenta do inimigo. O exoesqueleto daria características sobre-humanas para os soldados que o usarem, pois também terá um sistema com a função de estancar o sangramento de seus combatentes feridos, munindo-os de uma vantagem substancial no campo de batalha, além de potencializar o tempo de marcha dos soldados em campo de batalha.

Enquanto os russos pretendem equipar suas Forças Armadas até 2027 com a etapa mais avançada do traje, os Estados Unidos vêm acumulando alguns fracassos na criação de trajes similares, como é o caso do projeto TALOS (Tactical Assault Light Opeartor Suit) ou “iron man”, que tinha a mesma proposta do Rátnik -3, porém foi descartado pela dificuldade em adequá-lo a um ambiente de combate real. Além do projeto TALOS, os Estados Unidos junto com a empresa estadunidense Lockheed Martin vêm desenvolvendo em estágio embrionário um novo exoesqueleto para os soldados, chamado de ONYX. Porém, segundo o próprio Pentágono, ainda está muito longe de ser empregado em campo de batalha.

Tais situações sinalizam, por enquanto, vantagem estratégica para a Rússia em combate de solo perante os Estados Unidos. A competição estratégica entre os Estados russo e estadunidense remonta à Guerra Fria, seja no âmbito espacial, cultural, tecnológico ou armamentista, com destaque para as ogivas nucleares de ambos os lados. Os dois países  tiveram um acirramento militar muito forte, quase equiparáveis, todavia, a introdução dos ciborgues nas forças armadas russas demonstra uma clara vantagem russa sobre o seu rival estratégico, o que se torna benéfico para o país, pois apesar de ter uma defasagem marítima em comparação aos Estados Unidos consegue se lançar como propulsor de uma tecnologia quase que ficcional e assim, coloca em xeque o domínio estadunidense em guerra terrestre.

A primazia de desenvolvimento do Estado russo sobre essa nova tecnologia também é capaz de beneficiá-lo do ponto de vista econômico, já que ele pode vender os trajes ciborgues para parceiros estratégicos, tornando-os dependentes de sua tecnologia e assim maximizar seu poder em suas zonas de influência, procurando mitigar a influência estadunidense, ou despertar o interesse de seus parceiros para investirem no desenvolvimento do traje, logo, diminuindo os custos de sua produção. Ademais, a Rússia é uma grande especialista em guerra híbrida, assim como os Estados Unidos, porém com a concretização da última etapa de seu projeto, ela poderia obter vantagens substanciais no combate a grupos terroristas, contra insurgentes e guerrilheiros, ou seja, combates irregulares, já que poderá aplicar todo o seu conhecimento adquirido em táticas de guerra híbrida com a nova tecnologia desenvolvida.

Desse modo, o Estado russo encontrou o armamento amalgamador da guerra híbrida, o soldado híbrido, metade máquina e metade humano, adequado ao novo ambiente de combate que caracteriza o século XXI. No qual, vem como uma resposta ao árduo processo de revitalização das forças armadas russas, que passaram por um momento de encolhimento e defasagem no pós-Guerra Fria. Assim, o ciborgue pode ser uma das tecnologias bélicas responsáveis por recuperar o status e prestígio que a Rússia apresentava no sistema internacional antes do esfacelamento da União Soviética.

 

Referências Bibliográficas

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Créditos da Imagem: The Johns Hopkins University Applied Physics Laboratory (JHU/APL)/ Public Domain

A criação de uma Guarda Nacional no México: militarização da segurança pública e autonomia dos militares

João Estevam dos Santos

Mestrando em Relações Internacionais pelo Programa de Pós-Graduação

San Tiago Dantas, bolsista CAPES e pesquisador do Gedes.

 

No dia 28 de fevereiro de 2019, o congresso mexicano aprovou a lei que deu aval à criação de uma Guarda Nacional, com jurisdição federal. A nova força seria composta por 60.000 efetivos, vindos da Polícia Federal (18.000), Polícia Militar (35.000) e da Polícia Naval (8.000) – sendo que os dois últimos corpos policiais são subordinados, respectivamente, à Secretaria de Defesa Nacional, responsável pelo Exército e pela Força Aérea e à Secretaria da Marinha, que comanda a Marinha do México. Por sua vez, a Guarda Nacional está sob controle da Secretaria de Segurança e Proteção Cidadã, órgão criado em 2018 pelo novo governo e que é responsável por tarefas de segurança pública, ao invés da Secretaria de Defesa Nacional.

lei aprovada também definiu os objetivos e a estrutura da Guarda Nacional. O objetivo central definido para essa força foi a investigação e combate a delitos cometidos em localidades sob jurisdição do governo federal. Essa força pode ser considerada uma instituição “híbrida”, uma vez que, apesar de estar subordinada a uma secretaria civil, seus integrantes são em sua maioria militares e sua estrutura é análoga à do Exército. Além disso, o Comandante escolhido pelo presidente foi um militar da ativa, com patente de general.

O projeto de criação de uma Guarda Nacional foi idealizada pelo presidente eleito do México em 2018, Andrés Manuel López Obrador (cujo partido é o MORENA) e foi incorporado no seu Plano Nacional de Paz e Segurança 2018-2024. Essa medida constituía uma de suas principais apostas para a reformulação do combate ao crime organizado, sobretudo ao narcotráfico. Segundo aquele documento, a criação de uma Guarda Nacional seria uma alternativa à utilização das Forças Armadas em tarefas de segurança pública – medida criticada por López Obrador quando ainda era candidato. No dia 30 de junho de 2019, foi anunciada a entrada em funcionamento da Guarda Nacional. Efetivamente, a nova força é composta por 70.000 integrantes, empregados nas 150 regiões mais violentas do país e com o objetivo de chegar a 82.000 integrantes até o final do ano e a 150.000 até 2023. A nova força também foi designada para substituir a Polícia Federal (devido aos seus altos índices de corrupção e de ineficiência).

A criação de um corpo intermediário de segurança gerou novos insumos a dois debates de grande importância no México: a militarização da segurança pública e as relações civis-militares. No que tange ao primeiro tema, as Forças Armadas mexicanas possuem um papel histórico no provimento da segurança interna e no combate ao narcotráfico. Entretanto, esse fato começou a intensificar-se a partir sobretudo dos anos 2000, com o fortalecimento dos cartéis mexicanos. Porém, foi a partir de 2006, no governo de Felipe Calderón (2006-2012) que houve uma escalada ainda maior do emprego de militares na segurança interna do país, com o presidente tendo declarado oficialmente guerra às drogas e empregado mais de 45.000 militares no combate ao narcotráfico. Dessa maneira, nas décadas de 2000 e de 2010 o número de militares empregados em missões antinarcóticos cresceu de 30.991 em 2000 para em torno de 52.000 em 2018.

Apesar de algumas mudanças no governo Peña Nieto, os militares permaneceram nas ruas, fazendo com que uma medida declarada como temporária em 2006 se estendesse por 13 anos. Apesar disso, os resultados apresentados têm sido bastante insatisfatórios. Entre 2006 e 2018 houve 225.790 homicídios; número de homicídios em 2017 foi o mais alto desde 1997 e atualmente existem mais de 27.000 pessoas desaparecidas.

No referente a questão das relações civis-militares, as Forças Armadas no país desfrutam, historicamente, de uma autonomia. Essa autonomia consolidou-se durante o regime do Partido Revolucionário Institucional (PRI) ao longo da maior parte do século XX e continuou mesmo após o fim da hegemonia do partido em 2000, com a vitória do presidente Vicente Fox. Desse modo, não houve uma reforma institucional nas Forças Armadas que as subordinassem plenamente ao setor civil como ocorreu em outros países da América Latina. A estrutura de comando dos militares permaneceu intacta, com estes estando subordinados à Secretaria de Defesa Nacional (no caso do Exército e da Força Aérea) e à Secretaria da Marinha, duas instituições independentes, subordinadas apenas à Presidência da República. Traço indicador dessa autonomia ainda existente, o setor militar tem se agrupado enquanto estamento a fim de influenciar decisões políticas, como foi o caso da forte influência dos militares na aprovação da Lei de Segurança Interior pelo Congresso em 2017, que concedia maiores poderes para as Forças Armadas desenharem e implementarem políticas de segurança. Entretanto, essa lei foi anulada pela Suprema Corte de Justiça porque muitos pontos contidos nela eram incompatíveis com a Constituição do país.

Assim, no que se refere à primeira questão, embora a criação de uma força intermediária seja utilizada por países que buscaram estabelecer algum grau de diferença entre segurança interna e defesa, como Argentina (Gendarmería) e Chile (Carabineros), a incorporação de militares como mais da metade de seu contingente não permite deixar de falar sobre militarização de segurança pública e de desvio de funções por parte dos militares. Apesar do novo treinamento que receberão enquanto membros da Guarda Nacional, é sabido que os objetivos, as doutrinas e o treinamento das instituições militares diferenciam-se bastante daqueles encontrados em forças de segurança civis. Além disso, a utilização de militares em uma força intermediária e “híbrida”, com estrutura análoga às das Forças Armadas e comandadas por um general do Exército demonstram que, ao invés de ser uma iniciativa para desmilitarização do combate a delitos e a organizações criminosas, a criação da Guarda Nacional parece consolidar a institucionalização do uso de militares em funções policiais.

Cabe destacar que as forças militares de um país são treinadas com o objetivo de neutralizar qualquer agente que ameace subverter a ordem normativa interna daquela sociedade – o “inimigo”. No entanto, no caso do crime organizado e de outras atividades ilícitas, não se trata de uma subversão da ordem interna, mas de agentes que auferem ganhos à margem dela – nesse caso, são considerados “delinquentes”. A criação de um corpo de segurança que conta com a presença de militares que possuem doutrinas e estratégias próprias (ainda que submetidos a um novo tipo de treinamento – mas por um tempo relativamente curto) e treinados para liquidar “o inimigo” não faz com que o problema da militarização da segurança pública seja superado. E isso ocorre justamente porque não há uma compatibilização entre dois tipos de forças coercitivas (militares e policiais), visto que elas próprias possuem razões de ser diferentes.

Assim, o que se tem visto no caso de alguns países latino-americanos, como a Colômbia, é a transformação das Forças Armadas, mediante renovação doutrinária e reestruturação organizacional para permitir uma melhor participação em tarefas de segurança pública. Também há a possibilidade de realizar uma reestruturação dos corpos policiais para uma atuação mais intensa no combate a grupos criminosos, que contam com armamentos pesados e grande capacidade de organização. No entanto, no caso mexicano, a criação da Guarda Nacional não resolve nem um problema nem o outro.

Apesar dessas críticas à criação do novo corpo armado, esta representa uma mudança significativa e uma busca por tentar solucionar a desprofissionalização das Forças Armadas, que passaram por um processo de reestruturação organizacional durante o governo de Calderón para melhor adequar-se ao combate ao crime organizado. Dessa maneira, pode-se dizer que há uma “suavização” do problema do emprego dos militares em atividades de segurança pública, dado que as Forças Armadas enquanto instituições não continuarão a ter esse papel no longo prazo, mas apenas uma parcela das forças.

No que se refere às relações civis-militares, a criação da Guarda Nacional parece perpetuar uma situação histórica de autonomia das instituições militares no processo decisório. A nomeação de um militar, ainda que subordinado à Secretaria de Segurança e Proteção Cidadã, permite ver que o setor militar ainda possui grande capacidade de influência nos processos de tomada de decisão na área de segurança. Aliado a isso, a falta de perspectivas de uma reforma na estrutura das Forças Armadas, a fim de subordiná-las ao poder civil, bem como a falta de modificações no sistema doutrinário ou nos tipos de missões delegados às Forças Armadas corrobora a percepção de que, ao invés de uma mudança radical na política de segurança mexicana, a criação de uma Guarda Nacional apenas reforçará o mesmo tipo de interação entre Forças Armadas e poder civil. Além disso, é importante mencionar que a continuação da presença de militares em tarefas de segurança pública – ainda que em um corpo de segurança diferente das Forças Armadas – perpetua o seu prestígio ante o governo que  tem sido usado desde a década de 1990 e reforçado a partir dos governos Fox e Calderón para garantir a sua autonomia.

 

Imagem: Desfile Comemorativo da Independência mexicana |  Presidencia de la República Mexicana.

Memória e verdade: sobre a necessidade de manter acesa a história da resistência ao autoritarismo

Os ataques de Jair Bolsonaro à memória dos presos políticos, torturados e executados pelo Estado brasileiro durante a ditadura militar (1964-1985) devem ser interpretados como um assalto à democracia brasileira. Seria ingênuo afirmar que as manifestações raivosas e mentirosas do presidente quanto à memória de Fernando Santa Cruz são o ápice de uma comunicação verborrágica e que demonstra o desafeto de Bolsonaro às instituições democráticas. A carreira política do capitão da reserva do Exército brasileiro foi erigida sobre declarações e posicionamentos violentos e inverossímeis; não é inusitado antever a recorrência de falas virulentas. Listamos a seguir alguns dos episódios indignantes de louvor do atual presidente da República ao autoritarismo.

O atual chefe do Executivo constantemente se apresentou como uma personagem afeita à ditadura militar brasileira. Antes de assumir a presidência em 2019, Jair Bolsonaro afirmou que a ditadura brasileira deveria ter executado um número maior de seus oponentes políticosostentou imagens repugnantes de chacota à busca de ossadas dos combatentes da Guerrilha do Araguaia, e celebrou solitariamente o golpe de 1º de abril de 1964 em frente ao Ministério da Defesa, no ano de 2013.  Durante o rito do impeachment, o voto de Bolsonaro foi precedido de louvores ao reconhecido torturador da ditadura militarCarlos Alberto Brilhante Ustra, responsável, dentre outras dezenas de vítimas, pela tortura da presidenta Dilma Rousseff.

Marca de sua campanha, a falta de compromisso com a memória e a verdade histórica também se fez presente ao zombar da tortura e execução do jornalista Vladimir Herzog 1975, na sede do Destacamento de Operações de Informação – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi), na cidade de São Paulo. Na ocasião, Bolsonaro afirmou: “suicídio acontece, pessoal pratica suicídio”. Os fatos contrariam as alegações de Bolsonaro. O Estado brasileiro foi condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos pela falta de investigação e responsabilização dos torturadores de Herzog. Após ser empossado presidente da República, a postura de Bolsonaro permaneceu inalterada. Ao final do mês de março, determinou que o Ministério da Defesa realizasse celebrações nas unidades militares em referência ao início da ditadura militar. O 31 de março havia sido retirado do calendário oficial de comemorações das forças armadas em 2011, no governo Rousseff – mais de duas décadas após o fim do regime. Em julho, contrariou a história da repressão no país, e mesmo documentos oficiais do Estado, ao negar a tortura sofrida pela jornalista Miriam Leitão e a execução de Fernando Santa Cruz. As declarações foram acompanhadas de caracterizações pejorativas das vítimas, atribuindo-lhes a participação em movimentos da resistência armada à ditadura brasileira. Quando questionado acerca da inverossimilhança das declarações, o chefe do Executivo afirmou que os documentos históricos em relação aos mortos durante a ditadura militar são “balela”.

A comunicação verborrágica – que revela a covardia de enfrentar a verdade – também resulta em políticas materiais. Um decreto assinado por Bolsonaro e pela ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves, determinou a alteração de 4 dos 7 membros da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos. A nova composição da comissão responsável por investigar crimes da ditadura passa a contar com militares e filiados do Partido Social Liberal (PSL). Em agravo, entre os novos integrantes há defensores do período autoritário, como o deputado federal, Filipe Barros (PSL-PR).

O revigoramento das narrativas estapafúrdias sobre a ditadura militar no Brasil pode ser parcialmente atribuído à incapacidade em investigar os crimes do regime autoritário e responsabilizar seus autores. O empenho da Comissão Nacional da Verdade (CNV) permitiu desnudar parte das violações de direitos humanos ocorridas entre 1946 e 1988. Instituída durante o governo Rousseff a partir da Lei 12.528, de 18 de novembro de 2011, a CNV teve como objetivos centrais a efetivação do direito à memória e à verdade histórica e a reconciliação nacional.

A proposta de uma comissão que investigasse os crimes da ditadura remonta ao ano de 2004, quando o então presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, anunciou a organização do Arquivo da Intolerância, cuja função era tornar público o acesso documentos referentes a torturas, prisões e desaparecimentos ocorridos durante o regime militar e que estivessem sob a tutela do Estado brasileiro. Entretanto, o decreto 4.553 assinado na última semana do governo de Fernando Henrique Cardoso, aumentou o prazo de duração da classificação de documentos ultrassecretos para 50 anos renováveis indefinidamente, “de acordo com o interesse da segurança da sociedade e do Estado”. A conjuntura política à época, somada ao debate público que surgiu sobre o tema e às barreiras impostas pelas forças armadas, postergaram a efetivação do projeto do presidente Lula (SAINT-PIERRE; WINAND, 2007, p. 69).

A comissão atuou durante o governo Rousseff, em meio a debates relacionados à revisão da Lei da Anistia brasileira (1979) e ao aniversário de 50 anos do golpe de 1964. Temas sensíveis trabalhados pela Comissão, como a execução dos componentes da Guerrilha do Araguaia e a participação brasileira na Operação Condor, estiveram entre os debates da CNV e foram divulgados pelos principais veículos de comunicação do país à época. A operacionalização da CNV, contudo, foi seguidas vezes obstaculizada pelas forças armadas brasileiras, interessadas em evitar o acesso e a divulgação de documentos que comprovassem sua responsabilidade na repressão violenta (WINAND; BIGATÃO, 2014).

Após mais de dois anos de extensivos trabalhos de pesquisa documental e coleta de depoimentos, a Comissão publicou em três volumes seu relatório final, entregando-o em 10 de dezembro de 2014. De lá para cá, mesmo as aparentemente incontestáveis e exequíveis recomendações ali permaneceram. Apesar dos esforços de investigação e identificação dos responsáveis conduzidos pela CNV, seu empenho não ecoou entre representantes políticos e seu eleitorado. A onda autoritária contemporânea no Brasil aderiu a narrativas deturpadas sobre o período ditatorial.

Os projetos brasileiros para a conservação da memória e para a garantia do direito à verdade em relação à ditadura militar permanecem tímidos diante da ação de outros Estados para a preservação da história de regimes autoritários. Em outros países sul-americanos, assim como nos países que outrora foram ocupados pelo fascismo e o nazismo na Europa, a marca indelével da violência de regimes autoritários é reavivada no cotidiano como sinal de respeito às vítimas do passado e lembrete às novas gerações. Para além das comissões da verdade instaladas ainda na década de 1980, Argentina, Chile e Uruguai, sediam edificações destinadas à preservação da história dos regimes autoritários. Um olhar para essas experiências internacionais pode contribuir para aventarmos iniciativas de preservação da verdade no Brasil.

No Chile, o Parque por La Paz Villa Grimaldi, resignificou um centro de sequestro, tortura e extermínio gerido pela Dirección de Inteligencia Nacional. Na cidade de Santiago, o Museo de la Memoria y los Derechos Humanos garante visibilidade às violações de direitos humanos cometidas pelo Estado entre 1973 e 1990 e tem como missão estimular debates para que as atrocidades da ditadura de Pinochet não se repitam. Na Argentina, o Archivo Provincial de la Memoria, na cidade de Córdoba, é apenas um dos monumentos de preservação da história recente de autoritarismo e violência. Em Buenos Aires, o Parque de la Memoria recorda “as vítimas do terrorismo de Estado”; enquanto o Museo de la Memoria de Rosário mantém vívida a memória das crianças sequestradas pelo Estado argentino. Em Montevideo, no Uruguai, o Centro Cultural Museo de la Memoria possui uma exposição permanente com objetos, fotografias e documentos que retratam as prisões, a resistência popular e o exílio.

Que seja inequívoco: a defesa dos valores democráticos demanda posturas intransigentes diante da ressaca do autoritarismo. Hoje, esse movimento requer um inabalável apreço pela verdade e um profundo respeito pela memória daqueles que, lutando pelo retorno da democracia e da liberdade, foram aprisionados, torturados ou executados pela ditadura. O resguardo da verdade histórica contribui para a identificação dos arroubos autoritários e de suas manifestações violentas no presente e evita o seu ressurgimento erigido com base em narrativas distorcidas.

 

Referências Bibliográficas:

SAINT-PIERRE, Héctor Luis; WINAND, Érica. O legado da transição na agenda democrática para a Defesa: Os casos brasileiro e argentino. IN: Controle civil sobre os militares e política de defesa na Argentina, no Brasil, no Chile e no Uruguay. Org: Héctor Luis Saint-Pierre. São Paulo: Editora UNESP: Programa San Tiago Dantas de Pós-Graduação em Relações Internacionais da UNESP, Unicamp, e PUC-SP, 2007.

WINAND, Érica Cristina A.; BIGATÃO, Juliana P. A política brasileira para os direitos humanos e sua inserção nos jornais: a criação da Comissão Nacional da Verdade. Revista Interdisciplinar de Direitos Humanos. v. 2, n. 2. 2014. p. 41-52.

 

Leonardo De Paula e Laura Donadelli são pesquisadores do GEDES e, respectivamente, mestrando e doutoranda pelo PPG RI San Tiago Dantas (UNESP/UNICAMP/PUC-SP).

 

Imagem: Comissão Nacional da Verdade. Por: Júlia Lima/ PNUD Brasil.

As efemérides humanitárias de 2019: a atualidade dos limites de Ruanda e Kosovo

Há 25 anos, em 07 de abril de 1994 teve início o Genocídio de Ruanda, que durou cem dias e matou cerca de um milhão de pessoas. Em 1999, teve início a intervenção no Kosovo liderada pela Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), que ocasionou na província um processo de paz inconcluso e ainda muito questionado sobre seus resultados, mesmo 20 anos depois. Os dois eventos chocaram a comunidade internacional e a sociedade civil global e tiveram parte fundamental no exponenciamento das crises humanitárias causadas por conflitos na década de 1990.

As calamidades humanitárias colocaram em pauta importantes debates sobre a responsabilidade dos organismos internacionais em responder a conflitos localizados, face à monta de violência aberta deste período. A somatória destas situações na periferia – com menção também à guerra na ex-Iugoslávia – gerou um profundo mal-estar sobre a incapacidade dos instrumentos de governança global em prevenir e conter violações de direitos humanos em larga escala.   A presunção de proteção à dignidade humana é uma das bases do sistema das Nações Unidas; um compromisso da comunidade internacional para impedir a repetição dos genocídios ocorridos na Segunda Guerra Mundial.

Entretanto, a experiência mais clara do envio de operações de paz anterior aos anos 1990 ocorreu ao final da década de 1950 com a descolonização do Congo; isto, pois com a preocupação sobre os armamentos nucleares na segunda metade do século XX, o Conselho de Segurança das Nações Unidas (CSNU) dedicou pouca atenção à proteção das populações minoritárias. Assim, passada a euforia pela suposta expansão dos direitos humanos e da democracia liberal com a queda da União Soviética já ao final do século, o compromisso ficou sem lastro pela inação internacional frente à profusão de tragédias humanitárias – que escalava a necessidade de a organização direcionar esforços neste sentido.

As cenas de corpos empilhados, miséria extrema, campos de refugiados como verdadeiros concentrados de sofrimento humano passaram a compor o imaginário coletivo – graças ao efeito dos meios de comunicação em massa. E este contexto de urgência desembocou em um longo e inconcluso processo de reformulação dos pilares constitutivos da segurança internacional legislada pelo CSNU, criando mecanismos de atuação internacional. As intervenções humanitárias foram revividas de modo mais robusto, passaram a incluir fortes contingentes militares e a autorização do uso da força pelos capacetes azuis tornou-se uma questão incontornável do modelo de operações.

O que ocorreu durante os anos 1990 foram tentativas apressadas de dotar de eficácia os mecanismos onusianos de ação humanitária, com a ampliação destes instrumentos sobre o uso da força, sob o véu da necessidade de tornar a proteção internacional vigorosa. A costura deste elo com as noções de segurança humana – que torna peremptória a condição dos indivíduos enquanto elemento da estabilidade social – colocou o tema das intervenções humanitárias como expressão da conjunção de dois regimes centrais do sistema ONU: o acordo de segurança coletiva sobre a manutenção da paz internacional e o regime universal de direitos humanos.

As experiências dos anos 1990 se provaram emblemáticas para a consolidação de diretrizes internacionais de atuação e de expedientes militares em contextos de convulsão humanitária. Houve a produção, pela Secretaria Geral da Organização, de uma série de documentos que aludiram a modelos de contingenciamento de crises e reconstrução – a exemplo de “Uma Agenda para Paz”, em 1992; “Suplemento de Uma Agenda para Paz”, de 1995; “Relatório Brahimi”, 2000; e da “Doutrina Capstone”, 2008 –, os quais balizavam tanto a autoridade do CSNU sobre contextos localizados de conflito aberto, quanto a noção central de proteção a civis com o uso da força.

Os dois trágicos eventos citados no início deste texto são paradigmas para formação do entendimento da comunidade internacional sobre como lidar com crises humanitárias. Ambos os casos foram pautados pela dificuldade em conciliar interesses das potências do Conselho – a França no episódio ruandês e a Rússia no caso kosovar; esta última contornada via OTAN – e expuseram o flanco vulnerável das Nações Unidas, isto é, o contraste entre a exortação à ação prevista em seus instrumentos e a capacidade de agir eficazmente.

Ademais, os exemplos de Ruanda e Kosovo são ligados pela centralidade que a narrativa sobre civis obteve nas incursões. Em Ruanda, a preocupação em divulgar o número de mortes civis pelas organizações internacionais não-governamentais – especialmente os Médicos Sem Fronteira e a OXFAM – e pelo comando da restrita missão humanitária, já encampada em 1994, fez recrudescer o debate sobre a responsabilidade da ONU em proteger a população ruandesa e dos efeitos práticos de sua própria omissão.  A manifesta inquietação do governo de Bill Clinton sobre o risco de extermínio dos kosovares pelo Estado sérvio justificou o mote de “ilegal, porém legítima”, atribuído à intervenção da OTAN, que não contou com mandato autorizado pelo CSNU no primeiro momento.

Ao final da década de 1990 estava patente a transformação da legitimidade no campo internacional em favor da proteção de diretos humanos e com relativização da soberania estatal. Sem dúvidas, esta mudança não foi acompanhada unanimemente por todos os membros da comunidade internacional, nem sequer provou-se consolidado nos instrumentos legais. No entanto, a pavimentação de mecanismos que justificam a proteção humana como imperativo, apesar da predominância dos princípios de um sistema de segurança coletiva gestado em 1945, impulsionou movimentações institucionais intensas para a reforma de parâmetros de não intervenção, sendo também fundamental nas retóricas de atuação militar dentro e fora da autoridade do Conselho – como é o caso da invasão do Iraque pelos EUA em 2003 e da incursão da Rússia na Geórgia em 2008.

A partir deste panorama, a constelação de temas sobre as intervenções humanitárias desdobrou-se em múltiplas vertentes, contudo, as marcas duodecenais aqui apontadas levam à reflexão de dois tópicos comuns a todas: o primeiro é o imperativo da proteção civil, que inaugurou reformas importantes no arcabouço das operações de paz onusianas; o segundo é a decorrente discussão sobre a compatibilidade entre a “legitimidade pelo resultado” e os objetivos protetivos.

Assim, nos últimos 25 anos, a ONU criou intersecções normativas destes temas com a presunção de imperatividade da proteção civil como mote poderoso para a reforma das operações de paz. O passo retórico dado foi o posicionamento do objetivo de salvaguarda das populações como razão de ser da atuação internacional, mobilizando as nuances de legitimidade para este campo.

O movimento mais ousado neste sentido foi a formulação do princípio de Responsabilidade de Proteger – difundido em inglês como Resposibility to Protect, R2P –, em 2001. De modo bastante sucinto, o R2P criou elos de responsabilidade entre as autoridades estatais e a comunidade internacional, a fim de evitar violações massivas de direitos humanos; e condicionou a soberania territorial a esta proteção. O instituto passou por remodelações significativas desde seu lançamento e sofre com resistências de países como Rússia e China – especialmente depois de seu uso na malfadada operação na Líbia em 2011.

O que esta breve retomada temporal aponta é a permanência das preocupações já presentes em Ruanda e no Kosovo em promover o uso militar legitimado por princípios de proteção defendidos na esfera das Nações Unidas. Os dois exemplos da década de 1990 inauguraram um processo de reestruturação normativa cadenciada pelo argumento da proteção de civis. Hoje, entre a reformulação de diretrizes operacionais e a continuidade de incursões controversas, é possível identificar aprendizados institucionais que consolidaram os direitos humanos como imperativo da segurança internacional. Entretanto, este entendimento não é pacificado entre os membros da comunidade internacional que autorizam o uso da força, de modo que a capacidade da organização em entregar suas promessas de proteção permanece coibida pelo jogo clássico de poder no Conselho de Segurança. A paralisia do órgão frente a atual guerra na Síria é a prova mais evidente neste sentido.

Ao final, Ruanda e Kosovo permanecem atuais como exemplos das barreiras levantadas pela conformação da governança global instaurada em 1945 e apontam os desafios constantemente presentes para a efetivação da proteção de civis em conflitos armados, mesmo depois de mais de duas décadas de seus acontecimentos.

 

 

Letícia Rizzotti é mestranda em Relações Internacionais pelo PPGRI San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP, PUC-SP) e pesquisadora do GEDES.

A Missão de Estabilização das Nações Unidas na República Democrática do Congo e a presença do Brasil

Em 2010, com base no capítulo VII da Carta da ONU, o Conselho de Segurança das Nações Unidas (CSNU) decidiu prolongar a Missão das Nações Unidas no Congo (MONUC), que passou a se chamar Missão de Estabilização das Nações Unidas na República Democrática do Congo (MONUSCO). Essa missão destaca-se, especialmente, pela proteção de civis e defesa dos Direitos Humanos, assim como pela estabilização e consolidação da paz no país. Posteriormente, devido à permanência dos conflitos, o CSNU deu continuidade à missão e as resoluções sucessoras trouxeram novos enfoques, tais como verificar e prevenir a questão do estupro pelas milícias e o aumento do contingente militar no país.

Assim, uma das funções da MONUSCO foi atender a população civil congolesa contra as milícias, sobretudo na região leste do país, pois as Forças Armadas da República Democrática do Congo (FARDC) vinham se mostrando incapazes de desmantelar os grupos rebeldes que atuam nas regiões mais vulneráveis. Considerando a complexidade para a resolução dos conflitos na República Democrática do Congo (RDC), o CSNU decidiu aplicar a quinta técnica de resolução de conflitos, chamada “Imposição da Paz” (Peace-enforcement), buscando manter a estabilidade no país.

De modo geral, apesar da persistência dos conflitos, os resultados da MONUSCO desde a sua implementação são considerados positivos. Vale citar, por exemplo, a criação da Rede de Alerta da Comunidade da MONUSCO para a proteção de civis, onde a segurança do Estado e a MONUSCO conseguiram resolver 85% de alertas de ameaças, além da patrulha militar para proteção dos civis e detenção de forças negativas. Ainda, foram realizadas 93 campanhas e 34 capacitações aos atores da sociedade civil a fim de mitigar riscos em eleições.

Na questão de gênero, em 2018, mais de 80% dos escritórios da missão trabalharam em ações específicas para maior participação da mulher congolesa na sociedade. No âmbito infantil, mais de 1000 crianças foram separadas de grupos armados. Ademais, sobressaem-se as atividades de Organizações Internacionais Não Governamentais presentes no país, como a Cruz Vermelha Internacional e os Médicos Sem Fronteiras, que atuam em áreas assoladas pela epidemia do Ébola, levando auxílio e garantindo a proteção dos civis nas regiões que são foco principal da missão. Porém, os desafios continuam sobretudo no que concerne ao fortalecimento das instituições estatais de segurança, tendo em vista que os grupos rebeldes continuam atuando, ocasionando mortes e obrigando o deslocamento da população local.

Desse modo, a presença de soldados especialistas em guerra na selva foi solicitada, pois boa parte dos grupos rebeldes se refugiam nas florestas. Tal empreitada foi encarregada ao Brasil por ser a principal referência na área em nível internacional por meio do Centro de Instrução de Guerra na Selva (CIGS). Assim, a missão conta com 13 soldados brasileiros especializados em guerra na selva para se juntarem à Brigada de Intervenção – composta por batalhões da África do Sul, Tanzânia e Malui – que já atuam no combate aos grupos armados. Os soldados brasileiros se encontram no país desde junho de 2019 para treinar a Brigada, assim como a FARDC.

Vale destacar que a presença do Brasil na MONUSCO data desde o mandato do General Santos Cruz que esteve na frente de comando durante os anos 2013-2014, sendo reconhecido por ajudar a desmantelar o grupo rebelde M23 em março de 2013. Atualmente, o General Elias Filho, também brasileiro, está à frente da missão, com vasta experiência em Operações de Manutenção de Paz, administrativa e operacionalmente. Ainda, o general tem atuado em atividades de formação com representantes de outras missões de paz da ONU no continente africano, compartilhando experiências seja em termos de baixa de tropas, segurança individual e coleta, planejamento, neutralização de grupos armados, dentre outros.

Ademais, o Brasil possui uma longa participação em Operações de Manutenção de Paz da ONU, o que lhe dá credibilidade nesta atividade, tanto do ponto de vista da atuação diplomática na resolução dos conflitos, quanto na disponibilidade de soldados para o campo de ação. O país também apoia iniciativas de caráter administrativo, como foi o caso do fornecimento de materiais de escritórios, com o objetivo de auxiliar no equipamento de unidades locais que lutam contra violência e abusos sexuais, assim como buscam promover a proteção de crianças.

Destaca-se ainda o âmbito educacional recreativo, como o projeto “Capoeira para a paz” (Capoeira for Peace), implementado em 2014 com intuito de treinar ex-crianças-soldado como forma de reintegração social. O projeto é resultado da integração entre a Embaixada do Brasil e o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), e têm como desafios a reintegração das mais de 3 mil crianças que ainda se encontram associadas a grupos armados, sobretudo nas regiões do Kivu e Katanga, no leste do país. No entanto, apesar da complexidade ainda apresentada pela missão e os problemas internos do país em garantir a segurança e estabilidade em nível nacional, reconhece-se que os esforços do aparato militar e administrativo têm sidos disponibilizados, sobretudo financeiramente.

O apelo pela técnica de “imposição da paz”, mediante o uso da força pelos soldados da missão, deve ser analisado cuidadosamente considerando o processo de construção do Estado como um todo, principalmente no setor de segurança que ainda depende de ajuda externa para manter o clima de estabilidade. Embora pouco executadas, as atividades de peace enforcement na MONUSCO têm auxiliado em grande medida a execução das atividades estratégico-militares, impulsionando o processo de construção do Estado no setor de segurança.

Apesar de as operações de peace enforcement terem seu caráter jurídico na Carta da ONU, sua aplicação é recomendada em situações de ameaças à paz e à ajuda humanitária, na proteção e defesa da missão no país. Porém, vale destacar que as experiências observadas na década de 1990, como o genocídio de Ruanda, mostraram resultados insuficientes e frágeis no processo de consolidação e estabilização paz.

Na RDC, o uso da força focou na neutralização de grupos rebeldes em conjunto com as Forças Armadas da República Democrática do Congo (FARDC) e a Brigada da Intervenção, visando a proteção dos civis. Assim, contou ainda com auxílio tecnológico do uso de drones para eliminar as ameaças de grupos rebeldes escondidos nas florestas. É neste cenário que a presença de soldados brasileiros especialistas em guerra na selva contribui, por meio de treinamento, no combate a estes grupos foragidos.

Interpreta-se que, a aplicação da imposição da paz na RDC tem objetivo estratégico militar para desmantelar grupos rebeldes em ação. Porém, o processo de construção e consolidação da paz vai além, passando pela análise de como ocorreram as negociações de paz pós-conflitos entre as partes envolvidas. Ou seja, passa por uma discussão do processo de construção do Estado considerando a necessidade de estabelecimento de instituições estatais competentes capazes de congregar os interesses dos atores locais com base nas origens dos conflitos.

Logo, um programa de atividade de reforma do setor de segurança eficiente serve de política de encaminhamento para a consolidação da paz mediante aplicação de programas como Desmobilização, Desarmamento e Reintegração (DDR) de ex-combatentes, bem como interação dos atores locais e internacionais para implementação prática dessas atividades. Nesse sentido, é mister recordar a atuação brasileira no processo de construção do Estado timorense, diplomaticamente, com destaque para a figura de Sérgio Vieira de Mello nesse processo de negociação no Timor Leste.

Contudo, os desafios da MONUSCO continuam, especialmente aqueles voltados para ações militares e estratégicas de combate aos grupos rebeldes que têm causado instabilidades no país e impedido a ação das intervenções de ajuda humanitária. Assim, reafirmando os objetivos da missão de proteger os civis, estabilizar o país e apoiar a implementação de paz, a missão conta atualmente com 1,3 mil agentes policiais e 4 mil civis atuando no terreno, além de 16 mil militares sob comando do general brasileiro Elias Filho.

As políticas para a consolidação da paz não abrangem o território nacional, a atuação dos atores internacionais ainda é restrita e o exército nacional ainda atua de modo delimitado na proteção da sociedade civil. Dessa forma, a presença brasileira tem sido percebida principalmente no  papel desempenhado pelos comandantes especialistas em missões de paz, e, recentemente, pela chegada de soldados brasileiros especialistas em guerra na selva para o treinamento da Brigada de Intervenção a fim de enfrentarem os grupos rebeldes.

Contudo, a MONUSCO vem mostrando resultados satisfatórios e a presença brasileira tem sido relevante aos olhos da comunidade internacional, seja na sua liderança em campo, como em questões táticas e estratégicas por meio de troca de experiência com os soldados recém-chegados ao país, de grande relevância no combate aos grupos rebeldes. Apesar dos desafios internos no estabelecimento de instituições no setor de segurança, é possível notar certo clima de confiança e esperança da sociedade congolesa no trabalho da missão e dos governos locais.

Autor: Laurindo Tchinhama é doutorando em Relações Internacionais pelo PPGRI San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP, PUC-SP).

Os Militares do Presidente

Em meio a um festival de incompetências, amadorismos e declarações estapafúrdias que tem se mostrado o governo Bolsonaro, um grupo, em específico, chama atenção por ao menos dois motivos. Em primeiro lugar, porque não devia estar lá. Em segundo lugar, porque tem dado manifestações recorrentes de que é o locus de racionalidade de um governo que mais se assemelha a uma versão mal editada de um reality show. Refiro-me aqui aos militares, notadamente do Exército, que têm ocupado cargos importantes no governo. “Braço Forte e Mão Amiga”, os militares têm sustentado o governo Bolsonaro não apenas executando as missões a eles atribuídas, mas dando ao governo uma dosagem de legitimidade imprescindível.

A face deste fenômeno é, por certo, Hamilton Mourão. Atual vice-presidente da República, Mourão, um militar da reserva, tem chamado atenção pelas declarações que, não raramente, colocam-se em contraposição aos demais membros da equipe de governo, quando não, ao próprio presidente. Sua atuação na Vice-Presidência tem se destacado de tal forma que até mesmo o jornalista Ricardo Noblat, em sua conta no Twitter, realizou uma enquete avaliando o desempenho do general.

Num âmbito geral, Mourão tornou-se a figura governista favorita da mídia brasileira, por um motivo muito simples: o tratamento dispensado ao jornalismo é o que, naturalmente, espera-se de um representante político. Ao contrário do secto bolsonarista, adepto à moda trumpista de deslegitimar a atividade jornalística, Mourão monstra tamanha polidez que lhe rendeu a alcunha de “queridinho da imprensa”. Sua atual aparente sensatez choca-se com as declarações polêmicasemitidas durante a campanha. Em que medida isso representa um recém-adquirido senso de responsabilidade, resta ser avaliado.

De todo modo, uma vez empossado, o agora vice-presidente tem se esforçado, por motivos ainda desconhecidos, para superar o clima de campanha e se colocar a altura do cargo que ocupa – contrastando, assim, com o papel de youtuber do entourage da Presidência. E foi dessa forma que foi percebida, por exemplo, sua declaração quanto ao exílio de Jean Wyllys – sobre as ameaças sofridas pelo parlamentar, Mourão declarava que se tratava de um ataque à democracia.

Mas é no campo das decisões em política externa que se torna mais visível o abismo entre um certo senso de responsabilidade dos militares no governo e os voluntarismos irresponsáveis dos demais membros do gabinete, principalmente do próprio presidente. Fala-se mesmo em um “cordão sanitário” formado pelos militares do governo em torno do chanceler Ernesto Araújo. Nesse campo, ganham destaque as falas do general Augusto Heleno, atual chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), além das afirmações de Hamilton Mourão. Comecemos, pois, pelo vice-presidente:

Mourão foi pivô de assertivas que questionavam diretamente as diretrizes da política externa do governo Bolsonaro, bem como a capacidade de Ernesto Araújo em conduzi-la. Em entrevista concedida à revista Época para a formulação de um perfil do chanceler, Mourão sugeria como chamada: “terá Ernesto condições de tocar e dizer o que é a política externa do Brasil?”. Somado a isso, o vice-presidente tem mantido uma agenda nutrida de reuniões com diversas representações internacionais. Em muitos desses encontros não houve a presença de Araújo e, nas reuniões em que o chanceler participou, cumpriu apenas o papel de pajem. Sua participação no Grupo de Lima, por exemplo, no qual o chancele teve apenas papel secundário ou ainda também na reunião mantida por Mourão com Juan Guaidó, autoproclamado presidente venezuelano, no marco de sua visita ao Brasil. Em suma, seu entendimento sobre a política externa bolsonarista expressa-se  na seguinte frase: “está faltando prudência. Não podemos falar qualquer coisa e depois desfalar (sic). Agora é tempo de analisar. Não é tempo de sacar soluções da cartola. A palavra é prudência”.

Não bastasse, tem sido também divergente a abordagem dos militares e do governo em relação à crise na Venezuela. Tanto Mourão, quanto Heleno têm sido enfáticos na negação de que uma intervenção militar no país vizinho faz parte dos planos do governo brasileiro. Durante o período de transição, Heleno ressaltava o trabalho humanitário feito pelas Forças Armadas com os refugiados venezuelanos e pontuava os impedimentos constitucionais a uma incursão militar brasileira na Venezuela. Quando ainda era cotado para ocupar o Ministério da Defesa, na tentativa de pôr fim aos rumores de intervenção, Heleno afirmava que o Brasil não aderiria à defesa estadunidense de uma intervenção militar. Considerando os custos de uma eventual intervenção, declarava: “é constitucional que o Brasil não aceita ingerência de países estrangeiros nos assuntos internos e também não fará ingerência nos assuntos internos de outros países. Então, é isso aí”.

O comportamento dos militares do presidente denota uma elevada familiaridade com o fazer político. Pedimos licença aqui para não nos atermos especificamente à legitimidade de sua atuação política. Dado o processo de formação na caserna, é difícil sustentar que uma vez na reserva os militares deixam de ser militares e passam a configurar como corpo civil. Na verdade, a própria noção de reserva vem acompanhada de um “senso de servir” – os militares da reserva estariam sempre em prontidão para voltar à ativa caso convocados. Seja como for, fato é que a atuação dos militares no governo tem funcionado como um sustentáculo de racionalidade num mar de despautérios. E a pergunta que fica é: mas a que custo?

No dia 13 de novembro de 2018, no marco da nomeação de Azevedo e Silva ao Ministério da Defesa, o então comandante do Exército, Eduardo Villas Bôas, voltou a pontuar que apesar de aprovar a nomeação do militar para o cargo, não haveria de se confundir o número de militares no governo com um governo de militares. Em suas palavras, “embora muitos militares estejam sendo chamados a participar do Governo, isso não significa que o Exército, como instituição, esteja fazendo isso. O Exército continua no seu papel de instituição de Estado, apolítica e apartidária”.

Apesar do paradoxo de suas declarações, quando confrontadas com o fato de que o próprio Villas Bôas hoje faz parte do governo, a preocupação manifestada pelo então comandante dialoga exatamente com nosso argumento. Ao transferirem para o governo a legitimidade institucional de que gozam perante a sociedade, os militares arriscam serem confundidos, em si, com o governo no qual ocupam cargos. Como consequência, expõem-se ao risco de terem não apenas a imagem manchada face à sociedade brasileira, mas principalmente de desprofissionalização de seus quadros.

No bojo da crescente participação militar nos quadros governamentais – fato cujo fenômeno mais recente é o anúncio de quatro programas televisivos para as Forças na TV pública –, as manifestações sobre o Golpe de 1964 chamam especial atenção pelo caráter esdrúxulo e desrespeitoso às vítimas do regime opressor e assassino que se instaurou no Brasil. Após o comunicado de Bolsonaro que incentivava comemorações ao golpe, a cúpula militar manifestou-se – por receio ou prudência – alegando que os eventos deveriam ser conduzidos “de maneira discreta” e “sem manifestações públicas”. Ciosos pelo esquecimento deste período da história brasileira, os militares deparavam-se ali com o que há de mais atroz no governo: a releitura deturpada da história.

Quando Dilma Rousseff instituiu a Comissão da Verdade, a relação entre seu governo e os militares, já deteriorada, rumou à debacle – o que é corroborado por Sérgio Etchegoyen, ex-chefe do Gabinete de Segurança Institucional, em evento no Instituto Fernando Henrique Cardoso. Tomando sua ação como um ataque direto à instituição, os militares, ao menos tacitamente, passaram a antagonizar a presidenta. O resto da história é conhecido. Agora, aos militares que apostaram na figura de Bolsonaro como ferramenta de retomada do poder via voto, resta a tomada de consciência de que, além deles, o governo é composto por unidades não tão organizadas. Dão-se conta dos desmandos de um Abraham Weintraub na Educação e dos absurdos proferidos por uma Damares Alves, ministra da pasta Mulher, Família e Direitos Humanos. Deparam-se com a influência de um suposto filósofo a quem Alberto Santos Cruz, general e então responsável pela Secretaria de Governo, qualificava como desequilibrado.

Ao fim, do ponto de vista das Forças, a pergunta mais importante é: conseguirão as forças armadas brasileiras terminar o período do governo Bolsonaro sem ter sua imagem maculada? Em se confiando nos dados disponíveis, o cenário não é positivo. É exatamente isso que indica a recente exoneração do próprio Santos Cruz da Secretaria de Governo da Presidência da República. Fruto justamente da disputa entre ala olavista e os militares, a queda de Santos Cruz acaba por confirmar o inevitável: sua presença no governo os coloca na linha de frente das disputas políticas nacionais, fazendo-os sujeitos, inclusive, às mesmas táticas de difamação que elegeram o atual presidente.

Por outro lado, se é certo que a desprofissionalização das Forças é anterior ao seu retorno ao poder, sendo a imagem mais evidente deste processo a crescente participação militar em operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO), é certo também que sua atuação política é disfuncional em si mesma, demandando atenção redobrada. Num contexto no qual grassa a insensatez, não se pode estar desatento ao simbolismo de uma estrutura de governo cuja equivalência em termos de militarização só se encontra no período ditatorial. Em outras palavras, não podemos cair no canto da sereia.

Em texto escrito para a Revista Piauí, a jornalista Malu Gaspar iniciava com a seguinte chamada: “atacado pelos radicais bolsonaristas, o vice-presidente se coloca como garantia contra solavancos do governo”. A chamada – assim como o título no qual lê-se “Mourão, o avalista” – é representativa da situação que se instaurou no Brasil, quando comparamos as alas mais radicais do governo aos militares. Há uma espécie de excitação geral quanto a participação dos militares na política que se expressa em duas linhas básicas.

Por um lado, tal visão advém do respeito de que gozam as forças armadas perante a sociedade, o que faria com que sua atuação política fosse vista como compromissada com o país e livre de desvios morais. Por outro, tem sido cada vez mais recorrente o argumento de que os militares serviriam como moderadores, impondo limites ao governo. Esta última acepção é particularmente interessante – e preocupante – e se expressa de forma singular na declaração de Gaudêncio Torquato: “eles [os militares] se consolidam como poder moderador e escudo protetor do governo em caso de crise. A simples presença deles inibirá sugestões de alternativas fora da Constituição”.

O que se apresenta problemático não é necessariamente que se tenha uma visão positiva acerca dos militares. Ora, no âmbito da subjetividade somos livres em nossas percepções – ao menos em tese. A questão torna-se mais complexa, entretanto, quando observamos jornalistas e acadêmicos transpondo essa percepção ao exercício de suas funções, numa espécie de agitação esperançosa inapropriada. Lembremos: comparativamente, até mesmo o mandato relâmpago de Fernando Collor pode ser considerado positivo. Tudo é questão de parâmetros.

Em que pese seu recente Media Training, não esqueçamos que foi Mourão quem, caneta em punho, feriu de morte a Lei de Acesso à Informação. Foi também esse mesmo Mourão, ainda na ativa, que insinuou, por diversas vezes, a necessidade de um novo golpe militar no país. Assim, se aceitamos a tese de Marcos Nobre de que a eleição de Bolsonaro representa “a revolta das baixas patentes”, sendo os militares o fator de legitimação e, até certo ponto, organização desse governo, é certo que não podemos admitir, a priori, a normalidade de suas ações ou sequer que tais ações advenham de um senso de responsabilidade imaculado para com o país. Com isso, não intento atacar a instituição, senão que reconheço a singularidade do momento em que vivemos: preparados para a guerra, aos militares não cabe a posição de avalista. Instituições burocráticas do Estado, não lhes cabe assumir o papel de Quarto Poder.

Não obstante as tentativas de militares – dentro e fora do governo – de se afastarem do passado ditatorial, o assunto ainda é muito recente e muito mal resolvido para que não nos atentemos às excepcionalidades. Na ânsia de encontrarmos algum grau de normalidade num governo marcado pelo caos, temos de ter cuidado para não incorrer na normalização da crescente participação e ingerência militar na política – em todo o país, são cerca de 7 mil os postos ocupados por militares. É preciso estar atento e forte.

Autor: Jorge M. Oliveira Rodrigues é mestre em Relações Internacionais pelo PPGRI San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP, PUC-SP) e bacharel em Relações Internacionais pela Universidade Federal de Sergipe. Pesquisador do Grupo de Estudos em Defesa e Segurança Internacional (GEDES) e do Grupo de Estudos Críticos sobre Política de Defesa, Cooperação, Segurança e Paz (COOP&PAZ).

Imagem: Roque de Sá/ Agência Senado CC

Solidariedade e Violência: notas sobre os 15 anos do desembarque brasileiro em Porto Príncipe

O dia 1º de junho de 2019 marcou 15 anos do início do engajamento de militares brasileiros na Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti (MINUSTAH). A operação de paz iniciada em 2004 foi instrumentalizada como estandarte das políticas Externa e de Defesa brasileiras. As implicações do engajamento na missão de pacificação no Caribe difundiram-se através de temas da política doméstica, sobretudo naqueles relacionados à segurança pública. É plausível indicar que o prestígio e a experiência adquiridos pelas forças armadas através da participação na operação de pacificação no Haiti foram fatores importantes para seu emprego em questões domésticas e para sua reaproximação ao centro do poder. No entanto, há que se desvelar episódios controversos do engajamento de militares brasileiros no Haiti, e que se repetem em território brasileiro.

A participação brasileira na MINUSTAH não permaneceu alheia às críticas às ações violentas de militares no decorrer do processo de pacificação, mesmo que caracterizada como demonstração de solidariedade em relação à população haitiana e de não-indiferença diante das crises humanitárias. A proposição de um modus operandi característico dos contingentes brasileiros em operações de paz foi maculada por problemas comuns ao engajamento das forças armadas de outros Estados em intervenções ao redor do globo. Investigações conduzidas por organizações não-governamentais e agências de jornalismo concentraram-se em discutir episódios de violações de direitos e liberdades fundamentais por membros de diferentes nacionalidades do quadro da missão.

Entre os casos de emprego excessivo da violência está a operação conduzida pelo comandante do componente militar da missão entre 2004 e 2005, general Augusto Heleno, em 6 de julho de 2005. A ação denominada “Operação Punho de Aço” foi também reconhecida pela alcunha de massacre. Em busca de Emmanuel Wilmer, chefe de uma gangue na favela de Cité Soleil, em Porto Príncipe, 440 militares da MINUSTAH assassinaram ao menos 27 civis, incluindo crianças, e 5 membros do grupo de Wilmer. Relatos da população local contabilizaram até 60 mortos em decorrência da ação violenta executada pelos militares internacionais. Na ocasião, registraram-se disparos de 22 mil projéteis de acordo com documentos oficiais. Os excessos cometidos no Haiti guardam inquietante semelhança com os projéteis disparados contra o carro de uma família na cidade do Rio de Janeiro e que resultaram na morte de Evaldo dos Santos Rosa e Luciano Macedo.

O combate às gangues haitianas foi reforçado pela mobilização de um destacamento de operações especiais marcado pela falta de transparência na condução de suas atividades. O Destacamento de Operações de Paz foi imbuído de realizar o reconhecimento de regiões críticas e empregado em confrontos diante dos grupos locais. Amiúde, o grupo também executou ações tipicamente vinculadas às doutrinas militares de contrainsurgência, contribuindo para a aquisição de controle da MINUSTAH sobre regiões críticas no Haiti. O engajamento desse grupo de militares brasileiros foi caracterizado pelo sigilo na condução de operações para adquirir informações que amparassem as atividades do componente militar da MINUSTAH.  Amparados por atiradores de elite, por vezes os militares desse destacamento atuaram sem identificação e com as faces cobertas para evitar seu reconhecimento.

No que toca a política de segurança pública brasileira, a experiência adquirida na MINUSTAH foi muitas vezes considerada como referência para a condução de operações de pacificação com o apoio das forças armadas no Brasil. As consecutivas operações de Garantia da Lei e da Ordem e a intervenção federal no estado do Rio de Janeiro, dependentes da participação das forças armadas, reimportaram parte das práticas executadas nas comunidades de Porto Príncipe (HARIG, 2019). Seguidas vezes, a aplicação das regras de engajamento vigentes na MINUSTAH foi apresentada como necessidade para garantir o sucesso das incursões militares nas comunidades fluminenses. As semelhanças geográficas e a aproximação das características da crise de segurança pública em Porto Príncipe e no Rio de Janeiro foram dispostas como justificativas para o emprego mais violento das tropas. Em entrevista, o atual ministro do Gabinete de Segurança Internacional, general Augusto Heleno, defendeu a possibilidade do emprego de violência letal durante o período de intervenção federal no estado do Rio de Janeiro como fator de sucesso para as operações. O ex-comandante do Exército, general Villas Boas, argumentou que a ação mais robusta das forças armadas brasileiras no Rio de Janeiro deveria ser amparada por um conjunto de garantias jurídicas de que excessos cometidos por militares durante sua atuação não fossem investigados.

Cabe ainda reiterar uma outra questão influenciada pela participação brasileira na operação de paz no país caribenho: a reaproximação das forças armadas ao centro do poder. A participação na MINUSTAH foi considerada como experiência para a aquisição de qualidades necessárias às tratativas políticas, bem como oportunidade de profissionalização dos contingentes enviados ao Haiti, e prestigiou oficiais e praças do contingente brasileiro. Mais recentemente, seis militares com participação na MINUSTAH foram alçados a ministros de Estado, incluindo quatro ex-comandantes do componente militar da missão.

São eles: o general Augusto Heleno, ministro do Gabinete de Segurança Institucional e comandante militar da operação entre 2004 e 2005; o general Carlos Alberto Santos Cruz, ex-ministro da Secretaria de Governo e comandante militar da MINUSTAH entre 2006 e 2009; o general Floriano Peixoto, ministro da Secretaria-Geral da Presidência e comandante militar da missão entre 2009 e 2010; e o atual ministro da Secretaria de Governo, general Luiz Eduardo Ramos Baptista Pereira, force commander da MINUSTAH entre 2011 e 2012. A lista é complementada pelos ministros da Infraestrutura, capitão Tarcísio Gomes de Freitas, e da Defesa, general Fernando Azevedo e Silva, que assumiram, respectivamente, as funções de chefe da seção técnica da Companhia de Engenharia entre 2005 e 2006, e de Chefe de Operações do 2º Contingente brasileiro na MINUSTAH.  Demandam relevo ainda a designação dos ex-comandantes da missão, generais Ajax Porto Pinheiro e Edson Leal Pujol, para a assessoria da presidência do Supremo Tribunal Federal e para o Comando do Exército.

As ramificações do engajamento de militares brasileiros na MINUSTAH instigam investigações que tragam a lume os eventos que permanecem irresolutos na história da participação das forças armadas brasileiras no Haiti e desvendem suas implicações na política brasileira. Um passo inicial demanda desacreditar a narrativa de uma intervenção solidária e sem máculas a partir do estudo minucioso de casos que reemergiram em um passado recente.

Autor: Leonardo Dias de Paula é mestrando em Relações Internacionais pelo PPGRI San Tiago Dantas e pesquisador do Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional (GEDES).

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

HARIG, Christoph. Re-Importing the ‘Robust Turn’ in UN Peacekeeping: Internal Public Security Missions of Brazil’s Military. International Peacekeeping, Vol. 26, n. 2, 2019.