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Soldados da Democracia e da Paz? Considerações sobre os efeitos da participação de militares em operações de paz sobre as relações civis-militares

Leonardo Dias de Paula, Mestre em Relações Internacionais pelo PPGRI San Tiago Dantas e pesquisador do Gedes

 

A participação em operações de paz da Organização das Nações Unidas (ONU) pode ser observada como uma função alternativa de emprego para as forças armadas. As possibilidades de profissionalização, redirecionamento do emprego das forças ao exterior, o contato com princípios democráticos e de proteção de direitos e liberdades fundamentais, contidas na interpretação convencional sobre as operações de paz, podem ser compreendidos como fatores potencialmente capazes de contribuir para a consolidação de relações entre civis e militares balizadas pelo controle das forças castrenses pelos representantes políticos eleitos.

Assim, é possível vislumbrar que o engajamento das forças armadas em missões de paz contribua para a transformação dos propósitos e valores partilhados pelas instituições militares em prol de relações civis-militares em que se verifica um consolidado controle civil sobre os militares (VELÁZQUEZ, 2010). Charles Moskos (1976) nutriu a expectativa de que a participação em operações de paz poderia modificar as interações entre militares, outros poderes políticos e a sociedade. Em síntese, a participação em operações de paz resultaria em forças militares distantes da disputa política e do desempenho de funções subsidiárias internas, e, portanto, concentradas em missões voltadas ao exterior.

No entanto, ao analisar o caso brasileiro, é possível identificar efeitos contrários a essa expectativa. A participação na Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti (Minustah), entre 2004 e 2017, teve implicações para o emprego das forças armadas em missões internas e para o prestígio dos militares diante da opinião pública, contribuindo para seu retorno ao centro do poder. Ambos os efeitos seguem na direção oposta à consolidação de mecanismos de supervisão das forças armadas pelo poder civil.

Uma opção para iniciar esse estudo concerne à identificação das atividades desempenhadas por contingentes militares em operações de paz da ONU. Com efeito, as tarefas desempenhadas em missões de paz diferem das funções de defesa nacional, próprias às forças castrenses, ainda que ambas voltem sua face ao exterior. Observam-se, entretanto, que as operações de paz aprovadas pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas (CSNU) passaram por transformações. Enquanto as missões desdobradas no período da Guerra Fria estiveram predominantemente circunscritas a tarefas como a supervisão de acordos de cessar fogo e do movimento das partes beligerantes, os mandatos contemporâneos compreendem funções localizadas em um espectro mais extenso. Ao longo das décadas de 1990 e 2000, as operações de paz incorporaram tarefas como o suporte à distribuição de auxílio humanitário, a realização de projetos de impacto rápido, a supervisão de eleições, entre outras funções.

As atividades contidas nos mandatos de operações de paz contemporâneas, portanto, se aproximam às funções subsidiárias realizadas pelas forças castrenses. Simultaneamente, as missões desdobradas nesse período podem ser caracterizadas por sua maior permissividade ao recurso à violência como instrumento para garantir a realização dos objetivos do projeto internacional de paz. Enquanto as operações de outrora eram regidas por uma estrita limitação no uso de meios coercitivos durante a execução de suas atividades, os mandatos contemporâneos são fundamentados em uma interpretação mais flexível quanto às restrições no uso da violência para alcançar os objetivos políticos aprovados pelo CSNU para cada missão desdobrada em terreno.

A volumosa participação de militares do Exército Brasileiro na Minustah não secundou os mecanismos de controle civil sobre as forças armadas. A atuação dos contingentes brasileiros no Haiti foi caracterizada por concatenar tarefas estritamente relacionadas à esfera da segurança – como o uso da violência contra gangues e criminosos – e projetos de desenvolvimento e de distribuição de auxílio humanitário. Cerca de 37,5 mil militares do país desembarcaram no país caribenho para integrar a missão das Nações Unidas. Durante todo o período, oficiais do Exército brasileiro foram selecionados como comandantes do componente militar da missão de estabilização.

A experiência em operações urbanas adquirida no país caribenho foi relevante para a condução de missões de segurança pública em território brasileiro na forma de operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO). As similaridades entre as operações conduzidas em Porto Príncipe e na cidade do Rio de Janeiro foram frequentemente evocadas: as semelhanças entre as periferias de ambas as cidades – os teatros de operação para as forças armadas brasileiras; as características dos alvos das operações – grupos violentos envolvidos em atividades ilegais; as formas de engajamento, das quais se destaca a criação de bases garantidoras de domínio sobre os territórios urbanos – os “pontos fortes” do contingente militar da missão de paz e as Unidades de Polícia Pacificadora atribuídas à Polícia Militar do estado do Rio de Janeiro.

A violência acentuada é também um elo que une as ações de militares brasileiros no Haiti e nas operações domésticas. Assim, é possível observar a repatriação da experiência adquirida pelas forças armadas nacionais durante a operação de paz em favor de processos de militarização da segurança pública (HARIG, 2019; MARQUES, 2018). O padrão de emprego das forças armadas que caracteriza ambos os tipos de operação desempenhadas por militares brasileiros pode ser arregimentado sob o signo da contrainsurgência, em especial por apensar o uso da violência à realização de atividades de governo dos territórios sob intervenção.

Amiúde, o prestígio auferido durante a operação de paz contribuiu para uma imagem das forças militares como garantidoras da ordem e bálsamo para a conjuntura política nacional. Mesmo se restringirmos nosso estudo à década de 2010, é possível identificar diferentes episódios em que a atuação das forças armadas, ou de membros delas, afetou a cena política brasileira. Manifestações favoráveis a uma intervenção militar na política nacional proliferaram, angariando gradativamente mais fiéis, desde o ano de 2013. Durante a greve de caminhoneiros em 2018, por exemplo, viu-se o estender de faixas clamando por um novo golpe militar; simultaneamente, as forças castrenses foram empregadas para garantir a distribuição de mercadorias essenciais e desobstruir vias em todo o território brasileiro, marchando de encontro aos interesses dos caminhoneiros em greve. Parte relevante desses pedidos esteve fundamentada em uma interpretação torpe do artigo 142º da Constituição Federal de 1988 e em uma futurologia imaginativa de ameaças à ordem.

A comunicação irascível de oficiais da reserva e da ativa das forças militares, muitas vezes realizada através de comentários curtíssimos na rede social Twitter, pressionou representantes democraticamente eleitos e membros do judiciário. Um exemplo dessa pressão pode ser observada durante o julgamento de um pedido de habeas corpus do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, ameaçando uma intervenção em caso de uma imaginada violação da ordem e contrariedade aos anseios de parte da população. Com efeito, durante a década de 2010, sugestões de golpes militares como alternativas para imaginados casos de ameaça à lei e à ordem foram demasiadamente frequentes, indicando a fragilidade da democracia brasileira. As menções à prontidão para o serviço pulularam entre devotos do autoritarismo membros das forças armadas. Um episódio especialmente marcante foram as elegias do general Hamilton Mourão à possibilidade de golpes pelas forças armadas.

É preciso ainda destacar um evento anterior ao pleito. Candidatos de diferentes espectros político-ideológicos se submeteram a sabatinas do então comandante do Exército, general Eduardo Villas-Boas. O militar, que deveria obediência aos representantes eleitos à presidência da República, inspecionou os planos dos postulantes para a política brasileira durante um eventual mandato.

Conquanto seja possível observar a permanência dos militares em questões políticas após a transição ao regime democrático brasileiro, as eleições de 2018 representaram o retorno de militares ao centro do poder através na esfera federal. A vitória de Jair Bolsonaro resultou em uma seleção numerosa de ministros e de outros cargos relevantes oriundos da caserna. O plantel ministerial em janeiro de 2019 contava com seis membros das forças castrenses. Militares passaram a capitanear postos sensíveis às políticas de defesa, como o Gabinete de Segurança Institucional (GSI) e o Ministério da Defesa. Há militares em outros setores: infraestrutura, ciência, empresas estatais. As nomeações não se restringiram aos primeiros escalões do governo federal, irradiando-se por outros níveis e também através das autarquias estaduais.

Parte relevante do ministério empossado no início do ano de 2019, bem como de outros cargos relevantes da Federação, teve experiência na Minustah. Apesar das rotações no elenco, militares permanecem em postos sensíveis. Em fevereiro de 2020, com a indicação do general Walter Souza Braga Netto, os quatro ministérios que despacham da sede do poder Executivo passaram a ser ocupados por militares: três membros das forças armadas e um policial militar. O novo habitué do Palácio do Planalto fora nomeado pelo ex-presidente, Michel Temer, como interventor federal para o estado do Rio de Janeiro em 2018; depois, tornou-se comandante do Estado-maior do Exército.

Comandante do componente militar da Minustah durante o Massacre de 6 de Julho, o general Augusto Heleno tornou-se um dos homens-fortes do governo de Jair Bolsonaro. Ministro do GSI, Heleno protagonizou notícias com declarações que atentam contra a democracia. Em uma gravação transmitida através da internet, o general esbravejou que o governo não deveria aceitar negociações junto a parlamentares. A deselegância do ministro apenas coroa seu desapreço pelo regime democrático.

É preciso insistir: essa breve coletânea de eventos no Brasil contemporâneo contraria as expectativas de que a participação em operações de paz contribuiria para a consolidação de mecanismos de controle e supervisão das forças armadas de um país. Recorrer ao engajamento nesse tipo de missão como alternativa para reformar as forças castrenses e instituir formas de controle civil sobre as instituições militares é uma medida inócua na ausência de outros mecanismos de supervisão (SOTOMAYOR, 2007). Assim, a criação de instituições de controle efetivo depende de um entendimento preciso das características e prerrogativas militares, bem como do processo decisório em um Estado para que mudanças radicais nas relações civis-militares sejam planejadas e implantadas.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

HARIG, Christoph. Re-Importing the ‘Robust Turn’ in UN Peacekeeping: Internal Public Security Missions of Brazil’s Military. International Peacekeeping, Vol. 26, n. 2, 2019.

 MARQUES, Adriana A. Missões de paz e relações civis-militares: reflexões sobre o caso brasileiro. Revista Brasileira de Estratégia e Relações Internacionais. v. 7, n. 14. Jul/dez 2018. p. 242-262.

MOSKOS, Charles C. Peace Soldiers: the Sociology of United Nations Military Forces. Chicago: Chicago University Press, 1976.

 SOTOMAYOR, Arturo. La participación en operaciones de paz de la ONU y el control civil de las fuerzas armadas: los casos de argentina y uruguay. Foro Internacional. 2007. v. XLVII, n. 187 (1). pp. 117-139.

VELÁZQUEZ, Arturo C. Sotomayor. Peacekeeping effects in South America: common experiences and divergent effects on civil-military relations. International Peacekeeping. v. 17, n. 5. 2010. p. 629-643.

Créditos da imagem: Força Aérea Brasileira, Sgt Rezende/ Pelotão de Infantaria da FAB embarca para missão da ONU no Haiti

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