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As relações Rússia-Otan (1991-2023): um breve panorama histórico

Getúlio Alves de Almeida Neto*

 

Trinta e dois anos após a dissolução da União Soviética, observamos o reposicionamento dos 15 países que compunham o bloco, em diferentes contextos e níveis de aproximação ou distanciamento, em relação ao chamado mundo ocidental liderado pelos Estados Unidos. Em específico, a Rússia, oficialmente o Estado sucessor da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), possui um delicado e complexo relacionamento com o assim chamado Ocidente. Nesse sentido, o objetivo do presente texto é apresentar um breve panorama sobre o desenvolvimento das relações entre a Rússia e a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), em específico no que se refere aos temas de Segurança Internacional.

Em 1º de julho de 1991, antes mesmo da dissolução oficial da URSS, teve fim o Pacto de Varsóvia (PV), aliança militar criada em 14 de maio de 1955, durante o governo do líder soviético Nikita Kruschev. A aliança, composta por URSS, Bulgária, Tchecoslováquia, Alemanha Oriental, Hungria, Polônia, Romênia e Albânia (até 1968), fora, sobretudo, uma reação à adesão da antiga Alemanha Ocidental, naquele mesmo ano, à aliança militar ocidental criada em 1949. É nesse contexto que se encontra um dos germes do que viria a ser uma das principais críticas de Moscou aos líderes ocidentais. 

Em 1990, durante o processo de reunificação da Alemanha, um encontro entre o Secretário de Estado dos EUA, James Baker, e o líder soviético, Mikhail Gorbachev, gerou discussão, que perdura até os dias atuais. Conforme a perspectiva dos soviéticos –  alegada pelos russos, como visto por Putin em sua mais recente entrevista com o jornalista estadunidense Tucker Carlson – Baker teria dito à Gorbachev que a OTAN não expandiria “nem um centímetro a mais para o leste”, após o governo soviético ter concordado em retirar suas tropas do território da Alemanha Oriental. A frase foi tema de disputas de narrativas desde então, mas uma série de documentos desclassificados comprovam reiteradas garantias de Baker na conversa com Gorbachev e outros memorandos e comunicações entre líderes europeus que indicariam aos soviéticos que a OTAN não iria incorporar mais Estados à leste. Ademais, a própria continuidade da existência da OTAN sempre foi vista pela Rússia como incongruente no contexto pós-Guerra Fria, uma vez que a aliança havia sido criada justamente para fazer frente à ameaça da União Soviética. Assim, não teriam motivos que justificassem a manutenção do bloco.

Não obstante, as possibilidades de cooperação entre Rússia e os países da OTAN se abriram, sobretudo durante o primeiro mandato de Boris Yeltsin. Assim, algumas iniciativas surgiram nessa direção, tais como: o Conselho de Cooperação Norte-Atlântico (NAAC, na sigla em inglês), criado em 1991  e mais tarde substituído pelo Conselho de Parceria Euro-Atlântico (EAPC, na sigla m inglês), em 1997, e a Parceria para a Paz (PfP, na sigla em inglês), em 1994. Estas iniciativas, ainda existentes, buscavam, como objetivo último, estabelecer uma base de diálogo para promover a confiança e a cooperação bilateral em assuntos militares entre os países da OTAN e os países não-membros da aliança na Europa e Ásia Central, muitos deles ex-repúblicas soviéticas. Além destas iniciativas, a participação de tropas russas em missões de peace enforcement (IFOR, 1995-1996) e peacekeeping (SFOR, 1996-2004) na Bósnia e no Kosovo (KFOR, desde 1999), sob liderança de tropas da OTAN, foram amostras da tentativa de aproximação e cooperação entre o novo Estado russo com o Ocidente. Por último, a assinatura do Ato Fundador em 27 de maio de 1997, no qual havia o reconhecimento mútuo do status de não-adversário entre as partes e a definição de princípios como o interesse comum, reciprocidade, transparência e o conceito de segurança indivisível, materializado na instituição do Conselho Permanente OTAN-Rússia, parecia ser mais um elemento que colocaria fim na lógica de dois inimigos da Guerra Fria. 

Entretanto, dois eventos do ano de 1999 podem ser entendidos pontos de virada na relação entre as partes: o bombardeio da OTAN contra as tropas sérvias durante a Guerra do Kosovo e a segunda expansão da aliança após a Guerra Fria, com a adesão da Tchéquia, Polônia e Hungria, todas ex-repúblicas soviéticas. Críticas foram feitas pelo governo russo à forma como tropas ocidentais intervieram no conflito contra o governo de Belgrado, histórico aliado da Rússia, ainda mais sem a aprovação ou anuência do Conselho de Segurança da ONU (CSNU). Soma-se a isso, o novo conceito estratégico publicado pela OTAN, em 24 de abril de 1999, o qual estabelecia a possibilidade de intervenção da aliança mesmo que não em defesa de um membro que sofrera um ataque, conforme estabelecido no Artigo 5º de seu documento fundador. Além disso, o documento deixava em aberto a possibilidade de futuro alargamento a qualquer país interessado. Como resultado, o governo russo passou a ver menor possibilidade de cooperação com o Ocidente, e a entender que seus interesses não seriam levados em consideração devido à desproporcionalidade das relações de forças militar e econômica entre Moscou e o bloco liderado por Washington. 

Na virada do século, a rápida aproximação de Putin com George W. Bush na esteira dos ataques de 11 de setembro parecem ter sido, novamente, uma tentativa de mostrar a potência russa como possível parceiro estratégico dos EUA na condução das políticas de segurança internacional. Pouco tempo depois, no entanto, novos episódios trouxeram ao Kremlin a dúvida sobre a disposição estadunidense de levar em consideração os interesses russos. A Guerra do Iraque (2003), cuja invasão da coalizão liderada pelos EUA não fora aprovada pelo CSNU; a retirada dos EUA dos Tratado sobre Mísseis Antibalísticos (ABM), em vigor desde de 1972; e uma nova rodada de expansão da OTAN, em 2004 – com a adesão de Bulgária, Romênia, Eslováquia, Eslovênia, Estônia, Letônia, Lituânia, novamente todas ex-repúblicas soviéticas ou países membros do Pacto de Varsóvia – demonstraram a Putin que o contexto internacional pós-Guerra Fria era, sem dúvida alguma, marcado pela unipolaridade estadunidense e falta de capacidade russa de defender seus interesses ou participar de um concerto global da segurança internacional. Por fim, as chamadas Revoluções Coloridas que depuseram governos mais próximos a Moscou na Geórgia (2003), na Ucrânia (2004) e no Quirguistão (2005), contribuíram para o entendimento do governo russo de que o objetivo final do Ocidente era minar qualquer capacidade de influência russa no seu entorno geográfico. Todas essas críticas foram expostas e principalmente marcadas pelo célebre discurso de Putin na Conferência de Munique, em 2007. 

Depois de 2007, uma série de eventos se avolumaram para contribuir com a piora das relações entre Rússia e os países da OTAN. Através de suas incursões militares na Guerra da Geórgia (2008) e na Guerra da Síria (2011 – atualmente) em defesa do governo de Bashar al-Assad e em lado oposto ao apoio dado pelos EUA aos rebeldes sírios, bem como a anexação da Crimeia pela Rússia (2014), Moscou demonstrou que  não mais hesitaria em empregar suas forças armadas para fazer valer seus interesses em oposição aos interesses de norte-americanos e europeus. Em paralelo a este cenário, a divulgação de novos documentos oficiais de defesa e política externa da Rússia evidenciaram o aumento da insatisfação de Moscou com a contínua expansão do bloco ocidental e a definição da OTAN como principal ameaça ao país

De 2009 a 2020, outras três rodadas de expansão da OTAN incluíram a adesão de Albânia, Croácia, Montenegro e Macedônia do Norte. Da perspectiva russa, a promessa feita pelos líderes ocidentais a Gorbachev estava claramente sacrificada. Não somente houve uma expansão à leste, como também uma incorporação considerável de novos Estados que anteriormente estavam sob influência de Moscou. Por fim, a invasão russa à Ucrânia em 24 de fevereiro de 2022 e a continuidade da guerra parecem ter colocado um fim, ao menos no presente momento, de qualquer possibilidade de cooperação entre Moscou e o bloco com sede em Bruxelas. Evidência principal dessa afirmação são as adesões de Finlândia e Suécia, tradicionais países neutros, à OTAN. 

De tal forma, a indefinição sobre as possibilidades de cooperação entre Rússia e OTAN caracterizadas pelo otimismo e institucionalização de iniciativas nos anos 1990 foi, ao longo do tempo, dando espaço a uma crescente certeza do status de adversários geopolíticos com interesses divergentes até chegar em seu momento mais crítico com a Guerra da Ucrânia. Nesse sentido, o questionamento sobre a validade da manutenção da OTAN enquanto aliança militar que fora criada na lógica da Guerra Fria é, ao mesmo tempo, a origem dos confrontos indiretos entre as duas partes e a justificativa para sua continuidade em meio a um cenário politicamente conturbado e marcado por guerras. 

 

*Getúlio Alves de Almeida Neto é doutorando e Mestre em Relações Internacionais pelo Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais “San Tiago Dantas” (Unesp/Unicamp/Puc-Sp). Bolsista FAPESP. Pesquisa na área de Defesa e Segurança, com enfoque na reestruturação militar russa pós-soviética como instrumento de projeção de poder e a política russa para o Ártico. Bacharel em Relações Internacionais pela Universidade Estadual de São Paulo “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP, campus de Franca – SP). Pesquisador e membro-fundador do CIRE (Centro de Investigação em Rússia, Eurásia e Espaço Pós-Soviético).

Imagem: History of Nato enlargement. Por: Creative Commons 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

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NATO. Topic: Partnership for Peace programme Disponível em: https://www.nato.int/cps/en/natohq/topics_50349.htm. Acesso em: 14 fev. 2024

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Uma tragédia anunciada: os ataques à Faixa de Gaza e o genocídio palestino

*Carolina Antunes Condé de Lima

Abordar os acontecimentos que começaram no dia 07 de outubro de 2023 na Faixa de Gaza com a apresentação de números e fatos não dá conta da dimensão da tragédia humana que os palestinos estão vivendo. Todos os dias somos assombrados com imagens de corpos sem vida e de destruição, histórias de fome e sede, de desespero e desamparo, ao mesmo tempo que chegam imagens de torturas, saques, humilhações e crimes contra a humanidade praticados pelo exército de ocupação israelense.

De acordo com o Artigo 7 do Estatuto de Roma, são considerados crimes contra a humanidade a “difusão ou ataque sistemático contra qualquer população civil” com o intuito de assassinato, extermínio, escravização, deportação ou transferência forçada de uma população, encarceramento ou severa privação da liberdade física, tortura, violências sexuais de vários tipos, perseguição de um grupo identificável por razões políticas, raciais, nacionais, étnicas, culturais, religiosas e de gênero, desaparecimento forçado de pessoas, apartheid, e outros atos desumanos que, intencionalmente, causam sofrimento, ferimentos contra a saúde física e mental (ICC, 2018).

Com base nos crimes cometidos desde o início desta  última ofensiva, a África do Sul apresentou à Corte Internacional de Justiça (CIJ) no dia 29 de dezembro de 2023, acusação formal contra o Estado de Israel pelo crime de genocídio. Este foi reconhecido pela ONU via Resolução 260 A, de dezembro de 1948, em que se  estabelece  genocídio como  todo “ato cometido com a intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso”, em tempos de guerra ou  de paz (UN, 1948). Os juristas sul-africanos listaram inúmeras ações dos últimos quatro meses para justificarem sua ação.

Infelizmente, contudo, esses episódios não tiveram início em outubro de 2023. O texto que segue tem a intenção de remontar esse processo. Desse modo, o texto resume brevemente o cenário atual e, em seguida, apresenta questões históricas que precedem os acontecimentos dos últimos cinco meses e nos ajudam a colocar em perspectiva diversas análises e ações referentes a esses ataques.

Era manhã de sábado, 07 de outubro de 2023, quando começaram a chegar as notícias do ataque do Hamas a cidades israelenses perto da barreira com a Faixa de Gaza, ao sul do país. Na ocasião, 1139 pessoas foram mortas e outras 240 foram feitas reféns pelo grupo palestino. O governo israelense, desde as primeiras horas após o ataque, acusou o Hamas de cometer crimes de guerra, como tortura, estupros e mutilações, acusações negadas pelos membros do grupo. Desde então já se passaram mais de quatro meses de ataques israelenses que vêm causando a destruição de prédios residenciais, hospitais, infraestrutura básica, sítios arqueológicos e monumentos históricos. Ao norte da Faixa de Gaza foi imposta uma política de destruição total, conhecida como “aparar a grama”, que tem como consequência tanto a devastação do território como o genocídio histórico.

A Faixa de Gaza, um dos locais de maior densidade populacional do mundo, se viu ainda mais sufocada com a ida de mais de um milhão de palestinos do norte da região em direção a Rafah, cidade mais ao sul. A situação na fronteira sul teve uma piora considerável após os ataques israelenses a Rafah, declarada zona segura em outubro, que tiveram início na madrugada do dia 12 de fevereiro de 2024. Esses são vistos por especialistas como parte de um plano maior do governo israelense de depopular a Faixa de Gaza por completo, o que abriria espaço para a reocupação da região pelo Estado de Israel.

Antes dessa nova fase de terror, a vida na Faixa de Gaza já era bastante difícil. A população vive sob cerco desde 2007 e era alvo constante de ações militares, racionamento de água, energia e comida, além de ser impedida de circular livremente – ambas as saídas, tanto a de Rafah como a de Erez há anos ficam fechadas por longos períodos e, quando abertas, a passagem é bastante restrita. O cerco a Gaza teve início após o Hamas vencer as eleições representativas da região em 2006, o que não foi aceito pelo governo israelense. No ano seguinte, a Faixa de Gaza foi fechada para o mundo, tornando-a uma grande prisão a céu aberto.

Para entender a situação em Gaza e em toda a Palestina ocupada é preciso voltar na história e reviver um instrumento de dominação bastante conhecido: o colonialismo. Processo histórico que teve início com a expansão europeia no século XV, a qual permitiu a invasão, conquista e exploração dos territórios não-europeus e a violência contra corpos não-brancos desde a imposição dessa organização de mundo. A mesma lógica é reproduzida hoje na Palestina ocupada: em que o Estado de Israel é o colonizador, e a população nativa palestina é a colonizada.

Parte importante da colonização é a percepção de que a colônia é um espaço no qual reina o estado de exceção, dessa forma, ali é permitido que qualquer ato seja praticado, sem que haja julgamento de valor moral sobre o mesmo (Mbembe, 2016). A isso soma-se o recurso da objetificação do colonizado (Fanon, 2021; Said, 2007), a partir do qual as populações não-brancas são relacionadas a animais, doenças ou objetos que podem ser eliminados. A consequência é a percepção de que alguns corpos são descartáveis e indignos de comoção e solidariedade internacional quando grandes crises os afetam. Isso tem impacto direto, por exemplo, na maneira como a grande mídia, nacional ou internacional, aborda questões que envolvem populações não-brancas.

O racismo é elemento central de todo processo de colonização, empregado para justificar violências cotidianas. A violência subjetiva, impulsionada pelos ideais de superioridade racial do branco frente às demais populações do mundo, abre espaço para a violência física contra corpos e territórios. Outra característica é a ocupação e transformação do espaço, com a imposição de barreiras físicas que restringem o movimento livre das populações colonizadas, o que cria espaços restritos aos colonizados. Na Palestina, os checkpoints são uma realidade constante, assim como o impedimento da livre circulação e a construção de barreiras físicas de separação.

A colonização da Palestina pode ser configurada como um colonialismo de substituição e assentamento, ou seja, o objetivo central é deslocar e/ou eliminar a população nativa para que o território seja ocupado pelos colonos, tais quais assistimos nas colonizações da América do Norte, Austrália e Nova Zelândia, por exemplo. Há, contudo, um elemento central para entender a colonização dos territórios palestinos: o sionismo.

Esse movimento político surgiu no centro da comunidade judaica europeia no final do século XIX e sua vertente mais conhecida, capitaneada por Theodor Herzl, defendia a criação de um Estado nacional no território palestino como solução para a perseguição e o antissemitismo milenar dos quais judeus eram vítimas. O sionismo de Herzl partia da premissa de que a colonização deveria ser por e para os judeus, com o deslocamento da população palestina.

Essa característica é determinante para entender a dinâmica de violência que se perpetua na região desde antes da inauguração do Estado de Israel, em maio de 1948. Durante o Mandato Britânico da Palestina (1920-1948), o número de imigrantes judeus na região cresceu de 1.806 imigrantes em 1919 para 8.223 em 1920 (Basel, 2007, p. 215-217). Na década seguinte, entre 1919-1939, 364.519 judeus imigraram para os territórios da Palestina, passando a representar um terço da população na região (no começo do Mandato Britânico, representavam menos de 10% da população total) (Basel, 2007).

Soma-se a isso o processo de compra de terras por agências sionistas de incentivo a imigração, como a Jewish Colonization Association, que passaram a adquirir terras por todo o território palestino com o objetivo de criar cinturões de propriedades que seriam repassadas para o cultivo para aqueles que tivessem interesse em imigrar para o território (Lockman, 2012; Wolfe, 2012). O contexto acabou se tornando um barril de pólvora e deu início a anos de violências entre a população autóctone e aqueles que chegavam com fins de colonização. Desse modo, diferentemente do disseminado, podemos notar que o conflito entre palestinos e israelenses não começa em 1948, mas trinta anos antes, quando o Estado de Israel era apenas uma ideia.

Dentre todos os anos de conflito, dois momentos são os mais conhecidos no contexto pré-1948: a Revolta Árabe de 1936-1939 e o Plano Dalet, iniciado após a  Resolução 181 da Assembleia Geral das Nações Unidas, em novembro de 1947, que recomendou a partilha do território do Mandato Britânico (Bose, 2017; Pappé, 2006).

A Revolta Árabe de 1936-1939 foi a primeira revolta armada organizada que os palestinos fizeram desde o início do processo de colonização sionista e, desde sua eclosão, tem sido importante referência para os movimentos e mobilizações nacionais palestinos. Em poucos meses, aproximadamente mil árabes já haviam sido mortos pelas forças britânicas. Entre 1937 e 1939, 8.958 palestinos foram presos em campos de detenção (Barat; Chomsky; Pappé, 2016; Bose, 2017). Os britânicos iniciaram um processo punitivo de destruição de casas de insurgentes palestinos, prática utilizada pelo exército israelense até hoje. Em 1939, britânicos e colonos sionistas saíram vitoriosos, além de minar as lideranças políticas palestinas, o que contribuiu para a implementação do plano de partilha em 1947.

Entre a decisão pela partilha, em novembro de 1947, e a instituição do Estado de Israel, em 14 de maio de 1948, uma série de ataques promovidos por ambos os lados resultou na morte de centenas de civis. No contexto do Plano Dalet um dos acontecimentos mais marcantes foi o massacre de Deir Yassin pela milícia sionista Irgun (mais tarde usada como base para formação do exército israelense), que resultou no assassinato de 254 palestinos.

A Nakba, conhecida como a tragédia palestina, representa não apenas a fundação do Estado de Israel e a expulsão de quase oitocentos mil palestinos de suas terras, mas o início de uma história de conquista de território pela violência e a ocupação ilegal de territórios palestinos pelo Estado de Israel (Pappé, 2006). Além disso, a Nakba marca a criação do território da Faixa de Gaza. Com uma extensão de 360 km², até o início das ofensivas de outubro de 2023, a região era lar de quase dois milhões de palestinos, sendo que, aproximadamente, 70% deles são descendentes de refugiados de 1948 (Finkelstein, 2018; Salamanca, 2011).

A Faixa de Gaza foi ocupada pelo Estado de Israel após a Guerra de 1967 e permaneceu com presença militar e de colonos israelenses na região até 2005 quando, após decisão unilateral do então Primeiro Ministro Ariel Sharon, foi ordenada a saída de todos os ocupantes. A retirada, contudo, não significou o fim da ocupação. As fronteiras externas da Faixa de Gaza ficaram controladas pelo exército israelense, responsável por regular a entrada e saída de pessoas e bens; além do Estado de Israel ser o responsável pelo acesso a água, energia e internet na região. Essa situação se agravou após a vitória do Hamas nas eleições de 2006, o que levou à instauração do bloqueio à Faixa de Gaza que perdura desde 2007.

Após o bloqueio, ocorreram as chamadas Operação Chumbo Grosso (2008-2009), Operação Pilar Defensivo (2012), Operação Margem Protetora (2014) e Operação Guardiões do Muro (2021). Até o início da atual escalada de conflito, a operação de 2014, também conhecida como Guerra dos 51 dias, era tida como a mais destrutiva desde a Guerra de 1967: foram mais de dois mil mortos e onze mil feridos, de acordo com dados da ONU. Em comparação com os números das operações de 2014, a perda humana nas ofensivas iniciadas em outubro de 2023 é mais de dez vezes maior.

Quando colocados em perspectiva, portanto, fica claro que os atuais acontecimentos são uma tragédia anunciada, decorrente de uma política de Estado vigente desde antes do próprio surgimento do Estado israelense em 1948. Há de se apontar as tentativas de alguns membros da sociedade internacional de responsabilizar Israel pelo que vem acontecendo nos últimos quatro meses, como a acusação de genocídio contra o país feita pela África do Sul na Corte Internacional de Justiça, os rompimentos de relações diplomáticas feitos por alguns países e as constantes e expressivas manifestações civis realizadas em vários países do mundo pedindo pelo cessar fogo.

Apesar de todas as manifestações de apoio aos palestinos e os pedidos pelo fim do bombardeio que já matou quase trinta mil pessoas (um terço delas, crianças) o fim das atrocidades cometidas em Gaza não parece próximo. Há poucos dias, o primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu afirmou que a ofensiva contra Gaza não vai cessar até que a “vitória completa” seja alcançada. O ataque ao campo de refugiados de Rafah, na madrugada do dia 12 de fevereiro (horário do Brasil) e a política de fome e morte imposta aos palestinos que ali estão é uma clara demonstração de que o plano de Netanyahu é destruir a tudo e a todos. O nome disso é genocídio.

*Carolina Antunes Condé de Lima é doutoranda em Relações Internacionais pelo Programa de Pós Graduação em RI San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP, PUC-SP), bolsista CAPES e pesquisadora no IARAS-GEDES.

Imagem: Destruição em Gaza após ataques israelenses em Outubro de 2023. Por: Wilimedia Commons.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 

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Tharor, Ishaan. Netanyahu’s delusional, deadly quest for ‘total victory’. The Washington Post. 09/02/2024. Disponível em: https://www.washingtonpost.com/world/2024/02/09/netanyahu-israel-total-victory-hamas-palestine/. Acesso em: 12 de fevereiro de 2024.

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Sem cessar-fogo, sem negociação: a atuação do Eixo da Resistência após o 07 de Outubro

*Karime Cheaito

Em 07 de Outubro de 2023, organizações palestinas, sob a liderança do Hamas, romperam as cercas da Faixa de Gaza, invadiram e atacaram o território sul de Israel, como uma reação que refletia o esgotamento das políticas coloniais de apartheid, violência e abusos de poder perpetrados pelos sucessivos governos israelenses. Imediatamente, o governo de Israel, sob o comando de Benjamin Netanyahu, declarou guerra. No momento em que este ensaio é escrito, 26.900 palestinos foram mortos na Faixa de Gaza, a maioria mulheres e crianças, e 1.139 israelenses foram mortos pelos ataques do Hamas (dados de 31/01/2024). Após uma denúncia realizada pela África do Sul, Israel está sendo julgado pela Corte Internacional de Justiça por crime de genocídio.

Analisa-se nesta investigação a atuação do Eixo da Resistência na conjuntura médio-oriental após a reação do Hamas contra Israel em 07/10. Para isso, buscou-se compreender como o bloco tem, historicamente, se estruturado e atuado, apesar das divergências entre seus membros.

O Eixo da Resistência é, atualmente, liderado pelo Irã, que possui o governo sírio como parceiro estratégico e político (Munareto; Silva, 2023). Além disso, inclui grupos armados não-estatais da Síria; o Hamas e a Jihad Islâmica, nos territórios palestinos; o Hezbollah, no Líbano; as Unidades de Mobilização Popular do Iraque; e os Houthis (ou Ansar Allah), no Iêmen, que foram os últimos a ingressarem no Eixo (em 2015) e, em comparação com os demais membros, possuem um auxílio limitado advindo do Irã (Juneau, 2016).

Embora o 07/10 tenha explicitado a sua capacidade de atuação no Oriente Médio, o bloco não surgiu nesta data. De acordo com El Husseini (2010), sua origem data de 2003, quando o Iraque foi invadido pelos EUA, no contexto da Guerra ao Terror, e teve como fundador o comandante iraniano Qassem Soleimani, da Força Quds, unidade de elite do grupo paramilitar Guarda Revolucionária. Soleimani visava construir uma rede com aliados regionais e, desde o início, defendeu que cada parte fosse autossuficiente.

Apesar das divergências entre seus membros – como se evidenciou na guerra da Síria – o Eixo se consolidou e tem mantido sua unidade, primordialmente, por conta do alinhamento de seus objetivos e bases ideológicas. Todos os membros, apesar de suas pautas locais, possuem uma agenda antissionista e anti-EUA. A ideia de um aliado comum – o Irã – e, principalmente, um inimigo comum – Israel e os EUA – tem garantido sua coesão e existência.

Nesse sentido, embora o Irã seja responsável por fornecer a maior parte dos armamentos e treinamentos aos membros do bloco, cada ator domina suas próprias técnicas, estratégias e táticas e atua a partir de seus próprios objetivos. Por esse motivo, a pesquisadora Amal Saad afirma: o Eixo da Resistência é mais do que um conjunto de milícias apoiadas pelo Irã. Nessa mesma linha, o porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros iraniano afirmou: “Não temos nenhum papel na tomada de decisões em nome de qualquer partido na região”. Essa percepção também foi partilhada por Brian Katz, ex-funcionário do governo dos EUA: os aliados não-estatais do Irã “não são simplesmente representantes iranianos. Pelo contrário, tornaram-se um conjunto de atores político-militares maduros, ideologicamente alinhados, militarmente interdependentes, comprometidos com a defesa mútua”.

Essa perspectiva confronta as análises que identificam esses atores como proxies iranianos (Levitt, 2015; 2022; Khan; Zhaoying, 2020). Para El Husseini (2002) e Saad-Ghorayeb (2002), as relações entre o Irã e os demais membros do Eixo não são tão unificadas e interdependentes. Cada organização está, em primeira estância, conectada aos seus objetivos políticos, majoritariamente nacionalistas e pragmáticos. Após Soleimani ter sido assassinado pelos EUA em 2020, seu sucessor, Esmail Qaani, buscou descentralizar ainda mais o bloco, delegando cada vez mais autonomia às unidades locais e aos seus comandantes no que se refere às decisões táticas e operacionais.

Apesar da autonomia, a identificação de Israel como um inimigo próximo e o apoio militar entre os seus membros têm garantido a sua unidade. Em seu interior, enquanto o Irã fornece assistência militar e financeira ao Hezbollah, Hamas, Houthis e demais grupos iraquianos, a Síria tem oferecido seu território como rota de transporte ao Hezbollah, que tem auxiliado na formação técnica e militar dos demais membros.

O Eixo da Resistência se originou com uma perspectiva a longo prazo e tem se desenvolvido numa coligação em tempos de guerra, como se evidenciou em 2013, durante a guerra da Síria (com exceção do Hamas, que se posicionou contrário ao governo de Bashar al-Assad)  e no Iraque em 2014, na luta contra o ISIS ou DAESH. Nessas ocasiões, esses grupos puderam aprofundar suas capacidades militares, principalmente no que concerne aos combates urbanos, e aperfeiçoaram a lógica estratégica de sua aliança.

O 07/10 representou um importante marco ao simbolizar a primeira vez que uma coligação composta majoritariamente por atores não-estatais se envolveu diretamente em um conflito em apoio a outro ator não-estatal: o Hamas. Nos últimos 4 meses, o Hezbollah, os Houthis e grupos iraquianos e sírios lançaram ataques contra alvos israelenses e estadunidenses em apoio aos palestinos com um objetivo comum: forçar Israel a um cessar-fogo em Gaza.

Como manifestado publicamente pelo Hezbollah e pelos Houthis, tanto na fronteira com Israel como no Mar Vermelho, nenhuma negociação ocorrerá enquanto não houver cessar-fogo nos territórios palestinos. Desde o dia 08/10, três frentes de batalhas foram travadas: 1) entre Hezbollah e Israel; 2) os ataques dos grupos iraquianos contra bases estadunidenses no Iraque e na Síria; 3) os ataques dos Houthis contra navios de carga no Mar Vermelho.

Com o assassinato de Saleh al-Arouri – funcionário do alto escalão do Hamas – em Beirute no dia 02/01/24, nota-se uma escalada em toda região. O atentado representou o ataque israelense mais significativo no Líbano desde a guerra de 2006. Em resposta, o Hezbollah atacou uma das principais bases israelenses de vigilância aérea. Nos dias seguintes, a Resistência Islâmica do Iraque enviou drones para atacar bases dos EUA na Síria e no Iraque e atacou a cidade de Haifa. No Mar Vermelho, os Houthis intensificaram suas ações contra navios suspeitos de terem ligações com Israel e o Irã capturou um navio comercial no Golfo de Omã.

A atuação dos Houthis fez com que os EUA e o Reino Unido conduzissem uma série de ataques militares no Iêmen desde 11/01, fato este que tem aumentado as preocupações de escalada do conflito para uma guerra regional, pois é pouco provável que os ataques contra membros do bloco gerem um recuo, visto a identidade, os objetivos e princípios dos atores envolvidos.

Cabe destacar que o combate não tem ocorrido apenas no terreno físico. O campo de batalha tem se estendido para as redes sociais e impactado a opinião pública mundial, que tem debatido de forma inédita – em relação à dimensão da repercussão – os crimes de guerra cometidos por Israel.

Como enunciado por Nasrallah em 11/11/2023: “O mais importante neste momento é a mudança na opinião mundial em relação a Israel (…). Este desenvolvimento é do interesse da Resistência, do seu projeto e da população de Gaza (…) Com o tempo, a pressão aumenta sobre o inimigo” Desse modo, a maneira como a causa palestina reascendeu internacionalmente a partir do 07/10 pode ser identificada como uma vitória para os objetivos do Eixo da Resistência, principalmente por causa das críticas e acusações que têm sido desenvolvidas contra Israel.

Embora ainda não possamos dimensionar o impacto da opinião pública nos desdobramentos de uma solução para o conflito, o Eixo tem se evidenciado com elevado nível de coordenação e tem feito com que os EUA e seus aliados enfrentem desafios na dinâmica desses combates. Sua evolução para uma aliança, apesar da autonomia de atuação dos seus membros, está coordenada e centrada nas concepções de segurança coletiva e dissuasão alargada. A sua evolução e atual popularidade regional – manifestada publicamente – exige uma mudança fundamental na maneira como o Ocidente tem analisado as dinâmicas médio-orientais e, principalmente, suas possíveis alterações de poderes.

 

* Karime Cheaito é doutoranda em Relações Internacionais pelo Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (UNESP/UNICAMP/PUC-SP), mestre em Estudos Estratégicos (INEST/UFF) e membra do Grupo de Estudos sobre Conflitos Internacionais (GECI-PUCSP) e do Laboratório Nexus (INEST/UFF).

Imagem: cartazes retratando o fundador do Hamas, Sheikh Ahmed Yassin, o ex-comandante da Força Quds do Irã, Qassem Suleimani, e o líder do Hezbollah, Hassan Nasrallah, em Sana’a, Iêmen, 4 de janeiro de 2024. Por: Mohammed Hamoud/Getty Images

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AKBARZADEH, Shahram. Why does Iran need Hizbullah?: Iran and Hizbullah. The Muslim World, v. 106, n. 1, p. 127–140, 2016.

EL HUSSEINI, Rola. Hezbollah and the Axis of Refusal: Hamas, Iran and Syria. Third World Quarterly, v.31, n. 5, p. 803-815, 2010

JUNEAU, Thomas. Iran’s policy towards the Houthis in Yemen: a limited return on a modest investment. International Affairs, v. 92, n. 3, p. 647–663, 2016.

KHAN, Akbar; ZHAOYING, Han. Iran-Hezbollah Alliance Reconsidered: What Contributes to the Survival of State-Proxy Alliance? Journal of Asian Security and International Affairs, v. 7, n. 1, p. 101–123, 2020.

LEVITT, Matthew. Hezbollah: Party of Fraud – How Hezbollah Uses Crime to Finance Its Operations. Foreign Affairs, July 27, 2022.

LEVITT, Matthew. Iranian and Hezbollah Operations in South America: Then and Now. Prism: A Journal of the Center for Complex Operations, p. 119-133, 2015.

MUNARETO, Camila Hirt; SILVA, Gabriela Santos da. Casamento por convergência: identidades estatais e a aliança entre Síria e Irã. Malala, Revista Internacional de Estudos sobre o Oriente Médio e Mundo Muçulmano, v. 14, pág. 78–98, 2023.

SAAD-GHORAYEB, Amal. Hizbul̉lah: politics and religion. London: Pluto Press, 2002.

 

 

Desnacionalización Estratégica – Ley ómnibus, defensa nacional y ajuste fiscal

*Luciano Anzelini

** Sergio Eissa

Publicado originalmente em El Cohete a la Luna

El 20 de diciembre del año pasado, el gobierno nacional emitió el Decreto 70/2023, al que denominó “Bases para la reconstrucción de la economía argentina”, en el que declara “la emergencia pública en materia económica, financiera, fiscal, administrativa, previsional, tarifaria, sanitaria y social hasta el 31 de diciembre de 2025”. Asimismo, fija en el decreto la casi total desregulación del andamiaje económico nacional mediante la eliminación o modificación de cientos de leyes. Sin embargo, en la norma no hay prácticamente referencias a la defensa nacional, con excepción de dos menciones genéricas relativas a los códigos Aduanero (en el artículo 144) y Aeronáutico (en el artículo 184).

Una semana más tarde, el Presidente Javier Milei envió al Congreso de la Nación un extenso proyecto de ley al que denominó —parafraseando el título del histórico texto de Juan Bautista Alberdi— “Bases y Puntos de Partida para la Libertad de los Argentinos”, pero que inmediatamente se popularizó como “Ley Ómnibus”. El proyecto de ley, que profundiza la línea fijada en el Decreto 70/2023 —desregulando drásticamente el comercio, los servicios y la industria en todo el territorio nacional y procurando dejar sin efecto todo lo que entiende como restricciones a la oferta de bienes y servicios—, sí tiene referencias concretas a la defensa nacional. En efecto, ya en su artículo 1° anticipa que la norma proyectada contiene “delegaciones legislativas al Poder Ejecutivo nacional de emergencia pública en materia de (…) seguridad y defensa”.

En consecuencia, atento a la trascendencia que tiene semejante decisión —nótese que el artículo 76 de la Constitución nacional establece la prohibición “de la delegación legislativa en el Poder Ejecutivo, salvo en materias determinadas de administración o de emergencia pública, con plazo fijado para su ejercicio y dentro de las bases de la delegación que el Congreso establezca”—, urge la necesidad de un análisis detallado de lo que la norma propuesta prescribe en materia de defensa nacional.

El consenso permanece, ¿pero está firme?

En la edición del Cohete del pasado domingo 31 de diciembre, su director, Horacio Verbitsky, advertía correctamente que “el gobierno decidió no incluir en el ómnibus ninguna modificación a las leyes de defensa nacional, seguridad interior e inteligencia nacional que permitieran la actuación castrense fuera de su actividad específica. Esas leyes, promulgadas durante los gobiernos de Alfonsín, Menem y De la Rúa, expresan el consenso multipartidario que rigió durante cuatro décadas, al dividir en forma tajante entre defensa nacional y seguridad interior. Modificarlo por decreto no satisface las exigencias de los miembros de las actuales promociones para volver a enterrar sus borceguíes en el fango que ensució los uniformes de quienes los precedieron, y por ley no cuenta con el número suficiente”.

Este saludable reflejo de preservación de los militares —que advierten las consecuencias que acarrearía un involucramiento en seguridad interior— nos remonta a más de dos décadas atrás, cuando el jefe del Estado Mayor General del Ejército, teniente general Ricardo Brinzoni, rechazó el pedido del Presidente Fernando de la Rúa (1999-2001), de su secretario de Seguridad, Enrique Mathov, y de su ministro de Defensa, Horacio Jaunarena, para reprimir las protestas que estaban ocurriendo en diferentes lugares del país. A criterio de Brinzoni, no sólo no estaban dadas las condiciones de excepcionalidad previstas en la Ley de Seguridad Interior N.º 24.059, sino que además consideraba que se trataba de un problema político y socioeconómico que debía resolverse institucionalmente.

Si bien por ahora el “consenso permanece”, cabría preguntarse cuán sólido está. La Vicepresidenta, Victoria Villarruel, afirmó, cuando aún estaba en plena campaña electoral: “No estamos de acuerdo con que las Fuerzas Armadas combatan el delito”. Por su parte y en sentido contrario, la actual ministra de Seguridad y entonces precandidata de Juntos por el Cambio, Patricia Bullrich, señaló: “La lucha contra el narcotráfico tiene que ser de frente y sin cuartel; debemos usar todos los medios del Estado, incluyendo las Fuerzas Armadas”. Estas disonancias se extienden hasta el presente: si bien el proyecto de Ley Ómnibus no avanza abiertamente contra el consenso democrático de separación entre defensa y seguridad, fuentes de Casa Rosada dejan trascender que “Milei quiere avanzar cuanto antes en una fuerte batalla contra el crimen organizado y el terrorismo, no sólo con las fuerzas de seguridad, sino también con los militares”.

En este marco, es importante advertir que el artículo 3º del proyecto de Ley Ómnibus declara la emergencia en materia de defensa y seguridad, delegándole al Poder Ejecutivo Nacional facultades legislativas, tal como sostiene el artículo 1º, en clara violación con el artículo 76 de la Constitución nacional, en tanto no existe una situación excepcional y de emergencia que exija esa delegación en materia de defensa.

Ahora bien, la delegación no resulta inocua. En primer lugar, el Presidente podría modificar sin intervención del Congreso de la Nación las leyes de Defensa Nacional N.º 23.554, de Seguridad Interior N.º 24.059 y de Inteligencia Nacional N.º 25.520 y sus modificatorias, quebrando así el denominado “consenso básico” y autorizando el empleo de las Fuerzas Armadas en materia de lucha contra el narcotráfico o el terrorismo, como anhela la ministra Bullrich. Asimismo, podría otorgarle nuevas facultades al Poder Ejecutivo Nacional, como ya lo hizo el ex Presidente Mauricio Macri (2015-2019), cuando a través del artículo 10º del Decreto N.º 228/2016 autorizó el derribo de aeronaves que, como sostuvo oportunamente José Manuel Ugarte, implicaba el establecimiento de la pena de muerte sin juicio previo. Por último, más allá del loable principio establecido en el inciso l) del artículo 4º del proyecto, en lo que respecta a “los altos intereses de la Nación”, en nombre de estos ya se han introducido otras aberraciones en nuestro país como la Doctrina de Guerra Revolucionaria francesa o la Doctrina de Seguridad Nacional.

El eventual involucramiento de los militares en tareas policiales, que podría convertir a las Fuerzas Armadas en lo que Juan G. Tokatlian denomina “crime fighters” o “combatientes del crimen”, no requeriría de un aumento del presupuesto, por lo que resultaría compatible con lo que sostienen “aquellos que la ven” y que afirman que “no hay plata”. Todavía más, no sería necesaria la incorporación de material pesado a las Fuerzas Armadas, así como tampoco resultaría relevante la inversión en ciencia, tecnología y producción para la defensa. Como correlato de estas transformaciones, las Fuerzas Armadas quedarían sobredimensionadas para cumplir con estas tareas, lo que exigiría —en el mejor de los casos— llevar adelante procesos de reconversión del personal para lidiar con el “exceso de efectivos militares”.

Reconversión laboral y ajuste presupuestario

El artículo N.º 603 del Proyecto de Ley Ómnibus reemplaza el artículo 10º de la Ley N.º 25.164 que, en su redacción original, establecía el régimen de “designación y prestación de servicios del personal de gabinete”, creando un Fondo de Reconversión Laboral. Este fondo “tendrá por finalidad capacitar y brindar asistencia técnica para programas de autoempleo y formas asociativas solidarias, a los agentes civiles, militares y de seguridad, cuyos cargos quedaren suprimidos”. El descabezamiento de las cúpulas de las Fuerzas Armadas, con el consiguiente pase a retiro de oficiales superiores, es un adelanto de lo que puede suceder en el resto de las jerarquías, en línea con este artículo del proyecto de Ley Ómnibus que ha despertado creciente malestar en las Fuerzas.

El modelo de “Crime Fighters” o “Small Armed Forces” encuentra también su correlato conceptual en el desmantelamiento del sistema de producción para la defensa. El artículo 8º de la Ley Ómnibus, por ejemplo, declara sujetas a privatización empresas del complejo militar-industrial de la defensa como la Fábrica Argentina de Aviones “Brigadier San Martín”, Fabricaciones Militares Sociedad del Estado —algunas de cuyas instalaciones, como la ubicada en la localidad de Azul (provincia de Buenos Aires) habían sido cerradas por el expresidente Mauricio Macri y puestas en valor y operatividad nuevamente por el gobierno del Frente de Todos—; la emblemática Talleres Navales Dársena Norte (TANDANOR), y Construcción de Vivienda para la Armada (COVIARA). Asimismo, el postergado lugar de la ciencia, la tecnología y la producción para la defensa —o al menos un desconocimiento importante de su trascendencia— ha quedado de manifiesto en el reciente Decreto N.º 6/2024, que aprueba el Organigrama de Aplicación de la Administración Nacional en lo relativo al Ministerio de Defensa, en el que la Secretaría de Investigación, Política Industrial y Producción para la Defensa aparece simultánea —y erróneamente— como parte de la Administración Central y de los Organismos Descentralizados del sector.

El gobierno también ha tomado otras medidas por fuera de este proyecto que suman incertidumbre. Durante el mes de enero de este año se debió haber pagado la cuarta cuota de la recategorización salarial, establecida por la gestión anterior y cuya tercera cuota fue efectivizada el 1º de noviembre de 2023 a través de la Resolución Conjunta N.º 52/2023 suscripta por los entonces ministros Massa y Taiana. Al día de hoy crece el malestar en las Fuerzas Armadas por la falta de novedades sobre este asunto.

Asimismo, el presupuesto del Sistema de Defensa 2023, como el de toda la Administración pública, fue prorrogado para el presente año a través del Decreto N.º 88/2023. La Decisión Administrativa de la Jefatura de Gabinete de Ministros (JGM) N.º 1/2023 actualizó algunas de las partidas y, en el caso del Ministerio de Defensa, se modificaron las partidas del Instituto de Ayuda Financiera (IAF) para atender los gastos correspondientes a los retiros y pensiones. Al cierre de esta nota, el resto de las partidas de la jurisdicción no habían sido actualizadas y no había certeza sobre lo que podría ocurrir con el Fondo Nacional de la Defensa (FONDEF). De no mediar una nueva decisión administrativa de la JGM que actualice los gastos del Ministerio de Defensa, de acuerdo con las proyecciones de inflación para el año 2024, las actividades de adiestramiento, alistamiento y sostenimiento se verían seriamente afectadas.

Finalmente, la Ley Ómnibus crea, a través del artículo N.º 347, una comisión auditora para determinar el estado de alistamiento del sistema de defensa, lo cual refleja un desconocimiento del Ciclo de Planeamiento de la Defensa Nacional (CPDN) y del funcionamiento del Estado. El CPDN, que culminó exitosamente con la aprobación del PLANCAMIL 2023, tiene incorporado un análisis del estado de alistamiento, adiestramiento y sostenimiento de las Fuerzas Armadas. Asimismo, la Sindicatura General de la Nación (SIGEN) tiene facultades para efectuar este tipo de auditorías o evaluaciones de manera transparente. Un ejemplo de esto último puede encontrarse en el Informe de dicho organismo (IF-2022-12758871-APN-GCSI#SIGEN), que dictaminó que los aviones Super Etendard Modernisé (SEM) comprados durante la gestión de Mauricio Macri (2015-2019) no estaban en condiciones de volar y tenían componentes británicos.

Alineamiento irrestricto con los Estados Unidos

El proyecto de ley presenta la sorpresa de incorporar un tema adecuadamente regulado por la Ley 25.880, que fija desde el año 2004 el procedimiento conforme al cual el Poder Ejecutivo debe solicitar al Congreso de la Nación la autorización —establecida en el artículo 75, inciso 28, de la Constitución nacional— para permitir la introducción de tropas extranjeras en el territorio de la Nación y la salida de fuerzas nacionales fuera de él. Una lectura rápida y no muy atenta de los artículos 345 y 346 del proyecto de ley ómnibus podría llevarnos a abonar aquello que Carlos Pagni catalogó como la “wikiley” de Milei, es decir, una suerte de “cuerpo normativo elaborado con el sistema de Wikipedia, donde cada usuario puede agregar lo que se le ocurre”.

En este sentido, ¿cuál sería la razón de incorporar a esta altura los ejercicios militares a desarrollarse durante 2024 y 2025, cuando la ley que regula el tema fija que es recién en marzo cuando hay que mandar el programa de ejercitaciones al Parlamento? Todavía más, el artículo 345 anticipa que los ejercicios a realizarse durante dicho bienio no alteran la propuesta diseñada por la gestión del ministro saliente, Jorge Taiana, aunque sí corresponde advertir que se omiten los requerimientos de la Ley 25.880 en cuanto a la información básica para cada autorización de introducción de tropas extranjeras en el territorio de la nación y la salida de fuerzas nacionales fuera de él [1].

Lo verdaderamente relevante del asunto, sin embargo, aparece en el artículo 346 del proyecto de ley, en el que se faculta al Poder Ejecutivo a “autorizar el ingreso al país de contingentes de personal y medios de las Fuerzas Armadas, pertenecientes a otros países, para actividades de ejercitación, instrucción o protocolares de carácter combinado”. Ello supone delegarle al Poder Ejecutivo Nacional una facultad legislativa en materia de entrada y salida de tropas cuando no existe ninguna situación de emergencia que justifique esa delegación. El resultado de la eventual aprobación del proyecto de ley en los términos propuestos sería el de evitar la intervención del Congreso de la Nación ante la histórica presión de los Estados Unidos por conseguir una inmunidad total para sus soldados y así quedar fuera del alcance de la Corte Penal Internacional, cuya jurisdicción universal el Pentágono rechaza.

Este alineamiento irrestricto con los intereses y demandas de Washington por parte de la administración Milei posiblemente —si aparece la plata que el Presidente dice que “no hay”— se vea reflejado en el plano de las adquisiciones. En efecto, la gestión anterior —tanto a nivel ministerial como de asesoramiento técnico-militar del Estado Mayor Conjunto— no descartaba la incorporación de los cazas chinos JF-17 porque, al ser un avión de última generación y al no tener componentes británicos, cumplía con las aptitudes que exige el Plan de Capacidades Militares (PLANCAMIL 2023). Sin embargo, el actual gobierno habría optado por adquirir los cazas estadounidenses F16 en el marco del alineamiento automático con los Estados Unidos y para no generar preocupación al Reino Unido de Gran Bretaña e Irlanda del Norte. Este alineamiento con el Pentágono en el plano defensivo-militar —perfectamente discernible también en la trayectoria de los hombres elegidos para conducir el Estado Mayor Conjunto y las tres fuerzas— no debe sorprender: sigue la lógica de la reciente decisión de desistir del ingreso a los BRICS, en lo que representa una evidente mala lectura de las dinámicas e intereses que imperan en el escenario internacional.

Reflexión final

Todas estas medidas hay que enmarcarlas no solamente en los nuevos lineamientos de la política exterior argentina, sino también en una serie de medidas confluyentes en una “desnacionalización estratégica”. Cabe citar, en este sentido, la eliminación del límite para la posesión de tierras en manos extranjeras; el permiso para que otros países lleven adelante actividades pesqueras en la Zona Económica Exclusiva (ZEE); el avance sobre facultades de las provincias en materia de hidrocarburos, otorgándole más poder a las empresas del sector, y el potencial acuerdo con los Estados Unidos para patrullar conjuntamente las aguas del Atlántico Sur. El modelo económico que se está implementando afecta la soberanía y los recursos estratégicos de la Argentina y, en este esquema, las Fuerzas Armadas se convertirían en una pieza de museo. Por el contrario, si se las reconvirtiera en “Crimen Fighters” o “Small Armed Forces”, resultarían funcionales al modelo liberal-libertario, no sólo para combatir los delitos, sino para garantizar la represión de las protestas sociales. La derecha requiere guardias pretorianas antes que Fuerzas Armadas.

Esto último no es una novedad. La Argentina ya ha pasado por este trance en varias oportunidades, la más trágica durante la última dictadura militar (1976-1983). Si bien el proyecto de ley ómnibus todavía conserva el “consenso básico” —aunque podría quebrarlo vía delegación al Poder Ejecutivo de facultades legislativas—, lo cierto es que sectores importantes del actual gobierno presionan para que los uniformados vuelvan a embarrarse en la seguridad, control y represión internos. De hecho, la administración Milei se deshizo rápidamente de las promesas de campaña efectuadas a los militares —así como a su vicepresidenta Victoria Villarruel— y volvió a repetir las tendencias ya reflejadas en otros gobiernos de derecha de la historia argentina: subordinación incondicional a los Estados Unidos y ajuste fiscal, aunque este último con un carácter inédito por su radicalidad. Como señaló un historiador en las redes sociales: la historia nos enseña a no repetir el pasado, pero ello no garantiza que aprendamos de sus enseñanzas.

[1] Nos referimos a los siguientes aspectos: 1. Tipo de actividad a desarrollar.; 2. Origen del proyecto: (con el detalle de convenios o acuerdos marco y de los respectivos actos aprobatorios, si los hubiera); 3. Fundamentos de los objetivos de la actividad: a) Políticos. b) Estratégicos. c) Operativos. d) De adiestramiento. e) De adiestramiento combinado. f) De interoperatividad. g) Operaciones combinadas. h) Operaciones de imposición de la paz. i) Operaciones de mantenimiento de la paz. j) Operaciones de carácter armado y/o bélico. 4. Configuración de la actividad: a) Lugar de realización. b) Fechas tentativas de ingreso/egreso (según corresponda), tiempo de duración de la actividad. c) Países participantes y observadores: efectivos, cantidad, tipos, equipos y armamento. d) Despliegue de las tropas y medios. e) Inmunidad requerida para las tropas extranjeras que ingresan, y/o inmunidad a otorgar por otros Estados para las fuerzas nacionales que egresan. f) Costo aproximado. g) Fuentes de financiamiento. 5. En todos los casos se detallará la situación operacional real o simulada. 6. Información adicional del Ministerio de Defensa.
* Luciano Anzelini es doctor en Ciencias Sociales (UBA). Ex director nacional de Planeamiento y Estrategia (Ministerio de Defensa).
** Sergio Eissa doctor en Ciencia Política (UNSAM). Ex director nacional de Formación (Ministerio de Defensa).

Imagem: Javier Milei en A24. Por: Ilan Berkenwald/Flickr

Quien dependa de Elon Musk perderá su autonomía

*Eduardo J. Vior

Publicado originalmente em Mirada Gremial

Mediante su tecnología satelital el multimillonario dueño de Starlink limita la libertad de mercado y la soberanía de los países donde ha invertido, empezando por EE.UU.

En su mensaje de presentación del cuestionado mega DNU el pasado miércoles 20, el presidente Javier Milei reconoció que la desregulación de la provisión de Internet se hace para favorecer el ingreso a ese mercado de empresas como Starlink, la que mencionó explícitamente. El jefe de Estado, empero, no explicó qué recaudos se tomarán, para proteger la libertad de información y la soberanía del pueblo argentino ante las denuncias de funcionarios y ciudadanos norteamericanos por las limitaciones que estos principios sufren por efecto del control territorial que ejerce la empresa de comunicación digital por satélite.

“Desregulación de los servicios de Internet satelital para permitir el ingreso de empresas como Starlink”, dijo Milei al referirse al punto 28 de las 30 desregulaciones que mencionó en su discurso del miércoles 20.

Starlink es una empresa de provisión de servicios de Internet por los satélites de su matriz SpaceX, que ya colocó casi 4 mil naves en órbita terrestre baja (LEO, por su nombre en inglés) que dan acceso de alta velocidad a la red a más de un millón de clientes privados, institucionales y estatales en 70 países. En América Latina opera en Chile, Brasil, Perú, Ecuador, Colombia y México. En Argentina, en tanto, la empresa ya estaba habilitada desde 2021, pero todavía no tiene asignadas bandas de frecuencia ni ha completado la coordinación de su red trasmisora con la empresa estatal ARSAT que ofrece este mismo acceso.

A diferencia de un servicio de fibra óptica, Starlink alcanza velocidades de descarga entre 25 y 220 megabites por segundo (mbs), aunque puede superar los 100mbs, mientras que, según la propia empresa, la latencia varía entre 25 y 60mbs en tierra y más de 100mbs en ubicaciones remotas. En los países donde está presente el costo mensual del servicio Starlink Standard es de U$S90. A eso se suma una tarifa de 599 dólares por el equipamiento de antena y receptor.

SpaceX, la empresa propietaria de Starlink, comenzó a lanzar satélites Starlink en 2019 y para mediados de la década de 2020 calcula tener en órbita cerca de 12.000 satélites. La empresa también planea vender satélites para uso militar, científico y de exploración. Recientemente su propietario, Elon Musk, ha anunciado el próximo lanzamiento de Starlink 2.0 con satélites de 7,5 kg. Sin embargo, éstos requieren cohetes más grandes que los actuales y, por consiguiente, la adecuación de las plataformas de lanzamiento. Como parte de este vertiginoso desarrollo, a principios de la semana pasada la firma instaló su primera antena en Paraguay, en el Chaco Boreal. La conexión satelital permite a la compañía de Elon Musk ganar mercados en las áreas aisladas o menos urbanizadas. De ese modo adquiere una enorme ventaja sobre sus competidores y sobre los propios estados, que mayormente dependen de la conexión por fibra óptica.

Space Exploration Technologies Corp., conocida como SpaceX, es una empresa estadounidense de fabricación aeroespacial y de servicios de transporte espacial con sede en Hawthorne (California). Fue fundada en 2002 por Elon Musk con el objetivo de reducir los costos de viajar al espacio para facilitar la colonización de Marte. La compañía ha desarrollado varios vehículos de lanzamiento, la constelación Starlink, la nave de carga Dragon y ha llevado en la Dragon a dos astronautas hasta la Estación Espacial Internacional. Sus logros tecnológicos son impresionantes.

El dueño de ambas firmas tecnológicas, Elon Reeve Musk (1971), conocido como Elon Musk, es un empresario, inversor y magnate sudafricano que también posee las nacionalidades canadiense y estadounidense. Es el fundador y directivo de SpaceX; Tesla, Inc., The Boring Company; cofundador de Neuralink y OpenAI (aunque ya no tiene más participación en esta última), además de ser el director de tecnología de X Corp. Con un patrimonio neto estimado en junio de 2023 en unos 207 mil millones de dólares, Musk es la persona más rica del mundo.

Este empresario nació en Pretoria (Sudáfrica) de madre canadiense y padre sudafricano blanco. Estudió brevemente en la Universidad de Pretoria antes de trasladarse a Canadá a los 17 años para luego estudiar en la Universidad de Pennsilvania donde se graduó en Economía y Física. En 1995 se trasladó a California, cofundando la empresa de software web Zip2 con su hermano Kimbal. En 1999 la empresa fue adquirida por Compaq por 307 millones de dólares. Ese mismo año Musk creó el banco online X.com que se fusionó con Confinity en 2000 para formar PayPal. La empresa fue pronto comprada por eBay por 1.500 millones de dólares.

En 2002 Musk fundó SpaceX, fabricante aeroespacial y empresa de servicios de transporte espacial, y en 2003 se unió a la fábrica de vehículos eléctricos Tesla Motors Inc. (ahora Tesla Inc.) como presidente y arquitecto de productos, convirtiéndose en su consejero delegado en 2008. Siguieron importantes fundaciones de empresas que constituyen hitos de su imperio tecnológico. En 2022, finalmente, compró por 44.000 millones de dólares la red social Twitter, la que rebautizó como X.

En el contexto de la política estadounidense Musk ha manifestado su apoyo a Barack Obama en 2008 y 2012, a Hillary Clinton en 2016 y a Joe Biden en 2020. Sin embargo, en 2022 giró hacia el Partido Republicano, aunque sus posiciones ideológicas son contradictorias: está al mismo tiempo a favor de la renta básica universal, del derecho a la libre portación de armas, de la libertad de expresión y de un impuesto sobre las emisiones de carbono y se opone a las subvenciones gubernamentales.

Sus opiniones sobre las relaciones internacionales, incluidos los conflictos entre China y Taiwán y entre Rusia y Ucrania, han recibido reacciones encontradas. También apoyó el golpe de estado en Bolivia en noviembre de 2019 (declaradamente, para quedarse con el litio de ese país). Por el contrario, ha elogiado a China y mantiene una estrecha relación con el gobierno chino, lo que permite el acceso de Tesla al mercado de la potencia asiática.

A principios de abril de 2022, ante la destrucción de los servicios convencionales de Internet en Ucrania, SpaceX donó 3667 de un total de 5000 terminales Starlink que USAID proveyó a Ucrania. Starlink donó además las cuotas por servicio o abonos que normalmente Kiev debió haber costeado. Según Elon Musk, hasta el octubre siguiente su empresa había donado a Ucrania U$S80 millones y a fines de 2022 estimó que el costo de proveer acceso a Internet satelital a Ucrania alcanzaba los U$S20 millones mensuales.

Así, las terminales de satélite de SpaceX se hicieron cruciales para las operaciones militares ucranianas. Sin embargo, durante el verano boreal de 2023, la contraofensiva ucraniana en la sureña provincia de Zaporiyia se frenó, cuando su vanguardia descubrió que, traspasada una cierta línea, la conexión a Internet dejaba de funcionar. Interpelado por los medios, Elon Musk eludió una respuesta directa, pero declaró que había rechazado una solicitud ucraniana para extender la conexión satelital hasta Sebastopol, porque no quería involucrar a SpaceX en la guerra. Algunas fuentes citaron en ese contexto sus buenas relaciones con Vladímir Putín.

En octubre de 2022 Musk propuso en Twitter que Ucrania cediera Crimea a Rusia de forma permanente y abandonara su intento de ingresar en la OTAN. Ese mismo mes el magnate sugirió que Taiwán se convirtiera en “una zona administrativa especial” de China con un “acuerdo más indulgente que Hong Kong”. Todavía tan recientemente como el 10 de noviembre de 2023 Musk criticó las acciones de Israel en la Franja de Gaza. Sin embargo, una semana después cambió su política en la plataforma X, declarando que serán suspendidos los usuarios que utilicen expresiones que, según él, impliquen el genocidio de los israelíes.

A lo largo de su carrera en EE.UU. Elon Musk se ha involucrado en interminables polémicas. Sus puntos de vista libertarios, conspirativistas, extremadamente individualistas, machistas, antiinmigrantes, negacionistas del cambio climático y del Covid19, entre otros muchos, provocan regularmente la reacción de los medios de comunicación masivos y de la opinión pública posmodernista.

Pero la influencia de Musk es más descarada y expansiva. Hay pocos precedentes de que un civil se convierta en árbitro de una guerra entre naciones de forma tan granular o del grado de dependencia que Estados Unidos tiene ahora de Musk en diversos campos, desde el futuro de la energía y el transporte hasta la exploración del espacio. SpaceX es actualmente el único medio por el que la NASA transporta tripulación desde suelo estadounidense al espacio, una situación que persistirá al menos un año más. El plan del gobierno para que la industria automovilística se oriente hacia los coches eléctricos requiere aumentar el acceso a estaciones de carga a lo largo de las carreteras de Estados Unidos, pero esto depende de las acciones de otra empresa de Musk, Tesla. El fabricante de automóviles ha sembrado gran parte del país con sus propias estaciones de carga, hasta el punto de que el gobierno de Biden relajó su impulso inicial de una norma de carga universal que no gustaba a Musk. Todavía, empero, sus estaciones pueden recibir miles de millones de dólares en subvenciones, siempre que Tesla las haga compatibles con el otro estándar de recarga.

En los últimos veinte años, en un contexto de desmoronamiento de las infraestructuras y pérdida de confianza en las instituciones de Estados Unidos, Musk ha buscado oportunidades de negocio en áreas cruciales en las que el Estado ha retrocedido tras décadas de privatizaciones. El gobierno depende ahora de él, pero se esfuerza por reaccionar ante el gusto del empresario por tomar riesgos, su temeridad y su capricho. Funcionarios y ex funcionarios de la NASA, el Departamento de Defensa, el Departamento de Transporte, la Administración Federal de Aviación y la Administración de Seguridad y Salud en el Trabajo reconocen que la influencia de Musk se había hecho ineludible en su trabajo y varios de ellos afirmaron que ahora lo tratan como una especie de funcionario no electo.

Si la primera potencia de Occidente reconoce los riesgos que trajo la creciente influencia del pulpo tecnológico de Elon Musk y el poder que le ha dado remplazar al Estado ausente en territorios y áreas de políticas públicas esenciales, pueden imaginarse los peligros que amenazan a nuestro país, con un Estado que en el último medio siglo fue varias veces atacado, se retiró de grandes áreas de nuestro territorio y descuidó funciones esenciales que hacen al mantenimiento de la soberanía y la libertad de los argentinos. No es para mencionar tan a la ligera a una empresa, como si fuera el sponsor oficial del gobierno.

*Eduardo J. Vior é sociólogo veterano e jornalista independente, especialista em política internacional, professor do Departamento de Filosofia da Universidad de Buenos Aires (UBA).

Imagem: Starlink Mission. Por: Wikimedia Commons.

Dez Anos De Resistência Das Unidades De Defesa Das Mulheres (YPJ): um balanço da primeira década da guerrilha curda exclusivamente feminina em Rojava

Letícia Gimenez*

Criadas em 4 de abril de 2013 em Rojava, território autônomo no norte e leste da Síria instituído em 2012 após a Primavera Árabe, as Unidades de Defesa das Mulheres (YPJ – sigla que advém de Yekîneyên Parastina Jin do Kurmanji, dialeto curdo) compõem uma guerrilha exclusivamente feminina de maioria étnica curda. As YPJ são um dos elementos internacionalmente mais famosos e reconhecidos da Revolução de Rojava, principalmente pela sua atuação no enfrentamento e consequente expulsão do Estado Islâmico na Guerra da Síria, libertando milhares de mulheres escravizadas em uma imensurável façanha da humanidade contra o extremismo. O presente texto busca refletir a trajetória e relevância das Unidades de Defesa das Mulheres – que completam sua primeira década de existência e resistência em 2023 – juntamente ao contexto atual enfrentado por Rojava, que se encontra diretamente ameaçada pela Turquia – país que realiza constantes ataques de drones, tendo invadido e ocupado militarmente partes do território autônomo desde 2016.

Em outubro de 2017, a cidade de Raqqa – localizada na Síria e considerada a capital do Estado Islâmico, onde milhares de mulheres yazidis foram escravizadas e sexualmente traficadas – foi liberada do grupo jihadista. A liberação ocorreu a partir de um anúncio histórico dedicado a todas as mulheres no mundo, sendo que a comandante da operação liderada pelas Forças Democráticas Sírias (SDF) era Rojda Felat, uma mulher curda e combatente das YPJ. As Unidades de Defesa das Mulheres são constituídas a partir dos objetivos de autodefesa e de libertação das mulheres, o que reflete suas dimensões ideologicamente revolucionárias. As YPJ podem ser entendidas como um Ator Não-Estatal Violento [1] paramilitar, insurgente, étnico-nacionalista, totalmente feminino e também feminista, tendo como lema Jin, Jiyan, Azadi! (“Mulher, Vida, Liberdade!”).

Nesse sentido, a guerra contra o Estado Islâmico é também uma guerra contra o sistema patriarcal, pois, ao derrotar o inimigo, destroem-se as imposições violentas às quais são submetidas as mulheres no projeto de sociedade e de Estado imposto pelo grupo. Em 2016, um banner em al-Qamishli, considerada capital de Rojava, declarava: “vamos derrotar os ataques do Estado Islâmico garantindo a liberdade das mulheres no Oriente Médio”. Portanto, ao enfrentá-lo militarmente, as guerrilheiras das YPJ buscaram e seguem buscando reconstruir a sociedade e as relações de gênero locais. Assim, é possível compreender os motivos que levaram ao “hype” ocidental em torno das guerrilheiras curdas, tendo em vista o caráter inovador do surgimento da guerrilha exclusivamente feminina no Oriente Médio, região amplamente vista como uma das mais violentas do mundo para mulheres. No entanto, é importante ressaltar que parte da fascinação midiática ocidental em relação às combatentes curdas se deu de forma distorcida, sexualizada e orientalista – debate presente neste artigo e monografia –, sendo elas posteriormente esquecidas e silenciadas pela mídia após a expulsão do Estado Islâmico.

No que concerne ao aspecto étnico-nacionalista das Unidades de Defesa das Mulheres, suas combatentes são voluntárias e majoritariamente curdas, embora não seja obrigatório pertencer ao grupo étnico, havendo também a presença de mulheres árabes, assírias, armênias, entre outras etnias da região, além de internacionalistas de diversos países. As YPJ não representam a primeira vez que as mulheres curdas se organizam na luta armada; pelo contrário, são apenas a continuidade histórica da resistência já praticada: em 1984 elas já integravam as Forças de Defesa Popular – a guerrilha mista do Partido dos Trabalhadores do Curdistão –, sendo em 1993 criadas as primeiras unidades de guerrilha exclusivamente femininas, conhecidas como YJA-Star.

A chamada “questão curda” permeia, então, o surgimento das YPJ e sua atuação, assim como a Revolução de Rojava como um todo. Em linhas gerais, os curdos, o quarto maior grupo étnico do Oriente Médio, tiveram seu território violenta e colonialmente fragmentado em quatro partes com a criação de novos Estados no pós-Primeira Guerra Mundial, a partir da dissolução do Império Otomano. Assim, o Curdistão é um Estado-nação que não existe formalmente, pois suas fronteiras estão ocupadas pela Turquia, Síria, Irã e Iraque, em territórios cuja população é multiétnica, mas de maioria curda e que são respectivamente denominados como: Bakur (Curdistão Norte/turco), Rojava (Curdistão Oeste/sírio), Başûr (Curdistão Sul/iraquiano) e Rojhilat (Curdistão Leste/iraniano).

A partir da vivência de um século frente às consequências da limpeza étnica, assimilação cultural, genocídio e divisão de seu território, parte do movimento curdo, representado pelo Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK) e em uma virada pós-nacionalista na década de 1990, teorizou o Confederalismo Democrático. A proposta do Confederalismo Democrático abandona o ideal de criação de um Estado curdo, baseando-se em um sistema de organização social de democracia radical, caracterizado como decolonial e alternativo ao Estado, tendo sido implementado em 2012 no Curdistão sírio (Rojava) em meio à Guerra da Síria e oficializado através da Carta de Contrato Social, análoga à uma constituição. Por se tratar de uma revolução multiétnica, ecológica e feminista no século XXI, Rojava traz renovadas possibilidades para construção de novos mundos, em especial que não reproduzam a violência colonial constitutiva do Estado-nação – lição importantíssima aprendida pelos curdos através de sua própria história.

No entanto, o território autônomo no norte e leste da Síria encontra-se seriamente ameaçado por constantes ataques de drone turcos, além da invasão e ocupação militar de algumas de suas cidades, como Afrin e Serekaniye. Atualmente, a população curda resiste a violações diárias. Em sua grande maioria, a ocupação dessas regiões culminou em processos migratórios, com boa parte da população abandonando sua terra natal e se deslocando forçadamente para cidades próximas. No dia 22 de julho de 2022, um drone turco atingiu seu alvo numa estrada entre Al-Qamishli e Al-Malkiyah: um carro que transportava três mulheres combatentes das YPJ. Elas estavam saindo de um evento chamado “Fórum da Revolução das Mulheres” em decorrência do aniversário da revolução, que é reconhecidamente antipatriarcal e tem como um dos seus pilares ideológicos a igualdade de gênero. Apenas no primeiro semestre de 2022, a Turquia realizou 38 ataques de drone à Rojava, contabilizando 27 mortos e 74 feridos.

Também são comuns casos como o de Barin Kobani, integrante das YPJ assassinada em Afrin no início da invasão turca denominada “Operação Ramo de Oliveira”, em janeiro de 2018, por rebeldes apoiados e financiados pela Turquia que “brincaram com seu cadáver e o retalharam” enquanto câmeras filmavam. Assim como o caso de Amara Renas, também combatente das YPJ, executada por rebeldes que gritavam “Allahu Akbar!” em cima de seu corpo mutilado em um vídeo que foi posteriormente divulgado em redes sociais. A Operação Ramo de Oliveira foi iniciada em 20 de janeiro de 2018 pela Turquia em Afrin e, desde então, as mulheres curdas – incluindo as combatentes das YPJ – têm sido alvos de sequestros, estupros, torturas, execuções e mutilações, muitas vezes com divulgação de imagens e vídeos nas redes sociais.

Além dos ataques de drone, a Turquia utiliza-se de mercenários, incluindo ex-combatentes do Estado Islâmico, e atua sob a justificativa de combate ao terrorismo – mesmo que a suposta ameaça representada pelo território autônomo não esteja no território nacional turco, sendo externa e apenas fronteiriça. Afrin, que tem como patrimônio cultural suas oliveiras, é uma região de grande relevância econômica pela produção de azeite a partir destas árvores. No entanto, desde o início da ocupação, o bioma local tem sido extensivamente devastado, com o corte de milhares de oliveiras. Ou seja, a Operação Ramo de Oliveira traz em seu próprio nome, de maneira bastante irônica, a violência contra a terra, elemento tão importante para povos originários como os curdos. Desse modo, a ocupação atua de forma sistemática a dizimar os três pilares do Confederalismo Democrático: democracia radical, libertação das mulheres e ecologia.

Sendo assim, as guerrilheiras curdas, como as combatentes das YPJ ficaram conhecidas, não são um mero tabloide geopolítico orientalista e sexualizado, são mulheres que ativamente se armaram ideológica e militarmente contra o patriarcado e o Estado. Ao completarem sua primeira década em 2023, as Unidades de Defesa das Mulheres reafirmam que sua luta persiste, agora atuando frente à ocupação turca e aos resquícios do Estado Islâmico, que além dos ex-combatentes contratados pela Turquia, possui células secretas ainda ativas em campos de refugiados. Portanto, é preciso manter firme oposição ao silenciamento internacional e ao ditado popular que afirma que “os curdos não têm amigos, só as montanhas” e, como um verdadeiro internacionalista, colocar-se à disposição de aprender em conjunto a eles, defendendo sua revolução, sua terra e suas mulheres.

[1] Conceito traduzido de Violent Non-State Actors, os Atores Não-Estatais Violentos são muito diversos e variam em sua motivação, objetivos e estrutura. No geral, consideram-se Atores Não-Estatais Violentos: chefes militares, milícias, grupos étnicos e tribais, insurgências, grupos paramilitares, organizações terroristas, organizações de tráfico de drogas e grupos criminosos/gangues (Williams, 2008).

* Letícia Gimenez é mestranda no Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP, PUC-SP) e bolsista CAPES. Pesquisadora do Núcleo de Pesquisa Interdisciplinar em Estudos Curdos (NUPIEC), do Núcleo de Estudos de Gênero (Iaras-GEDES) e do Observatório Feminista de Relações Internacionais (OFRI).

Imagem: Btaalhão de mulheres do YPJ. Por Jakob Reimann/Wikimedia Commons.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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O setor de Defesa no novo PAC brasileiro

Marianna Braghini Deus Deu*

 

Em 11 de agosto de 2023 o governo federal brasileiro anunciou um novo Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), cujas versões anteriores foram um marco dos governos do Partido dos Trabalhadores (PT) nos anos 2000. O PAC foi originalmente concebido com a proposta de induzir crescimento econômico a partir de diferentes frentes, em especial na área de infraestrutura e facilitação de crédito, seus objetivos sempre estiveram voltados  para a criação de empregos e os projetos financiados, em conjunto, visavam a melhoria da qualidade de vida da população. Esses aspectos foram mais uma vez destacados no anúncio do novo PAC. Nessa versão do programa, uma mudança significativa foi a inclusão do setor de Defesa como destinatário de uma parte considerável dos recursos disponíveis. No entanto, essa decisão não está isenta de controvérsias devido à incerteza em relação à sua contribuição efetiva para os objetivos do programa.

Dentre os nove eixos anunciados, o setor de Defesa ocupa a quarta maior parcela desse orçamento. Foram alocados cerca de R$53 bilhões para “modernizar e equipar as forças armadas”, um montante que ultrapassa o destinado à Saúde (R$30,5 bilhões) e à Educação (R$45 bilhões). Esse fato tem gerado preocupações entre analistas da área, como enfatizado na nota assinada pela Associação Brasileira de Estudos de Defesa (ABED).

Pela primeira vez o PAC tem uma de suas frentes voltada à Defesa, atendendo especialmente às Forças Armadas e à indústria de defesa nacional. Algo que pode explicar essa presença em um programa com as propostas do PAC, é a ideia de que tal emprego trará retornos em termos de crescimento econômico. A lógica do investimento na indústria de defesa como gerador de desenvolvimento nacional não é uma novidade. Historicamente, a proposta é referenciada como keynesianismo bélico, o qual perpassa necessariamente a formação de um complexo militar industrial, e que pressupõe uma dinâmica em que o gasto militar gera ganhos para a economia de maneira mais ampla.

Exemplos comuns de benefícios esperados são acordos de transferência tecnológica, construção de infraestrutura industrial de ponta, envolvimento de empresas e institutos de ciência e tecnologia (ICTs), geração de mão de obra qualificada, dinamização da cadeia produtiva nacional e fortalecimento da capacidade produtiva nacional. Tais ganhos são pilares da justificativa para os investimentos em defesa, sem deixar de mencionar a superação de dependência tecnológica-econômica e a consequente capacidade de exercício da soberania, ao passo em que se corrigem defasagens críticas do aparato bélico frente ao atual cenário de defesa.

Essa decisão do governo Lula não pode ser recebida com grande surpresa. Não se deve deixar de mencionar o que foram os governos do PT para a indústria de defesa brasileira. O período de 2003 a 2016 contou com importantes esforços de modernização. Grandes projetos estratégicos das Forças Armadas concebidos em meados da década de 1990, saíram do papel sob o governo Lula, como o Projeto Gripen da Força Aérea, o projeto dos blindados Guarani do Exército e o Programa de Desenvolvimento de Submarinos (PROSUB) da Marinha. Mas não foram apenas esses projetos que demarcaram as iniciativas de modernização da indústria de defesa brasileira.

Marcos institucionais como a renovação da proposta da Política Nacional de Defesa (PND), que estabelece os principais objetivos e marcos conceituais para o planejamento da defesa nacional, a articulação do Plano de Articulação e Equipamentos de Defesa (PAED), com a ideia de otimizar a coordenação de esforços de modernização das Forças e de fortalecimento dessa base industrial, a Lei de fomento à Base Industrial de Defesa (Lei nº 12.598/2012) que instituiu regimes especiais de tributação e incentivos fiscais, a Política Nacional da Indústria de Defesa (PNID) e em especial a elaboração da Estratégia Nacional de Defesa (END), classificada pela Associação Brasileira das Indústrias de Materiais de Defesa e Segurança (ABIMDE) como “um dos momentos mais importantes” da indústria de defesa nacional, concedendo uma “nova perspectiva ao setor e definindo as políticas e orçamentos de médio e longo prazos, consolidando, assim, uma política nacional de valorização da indústria de defesa e que vislumbra, em última instância, a soberania nacional”.

Em boa medida, isso significa dizer que, colocadas as demandas militares, imperativas e urgentes pois são de matéria de segurança nacional, na formulação de políticas econômicas e tecnológicas, os principais entraves para que o Brasil tenha forças de segurança de ponta, atuais e responsivas a ameaças contemporâneas e futuras, sejam superados. Sob essa perspectiva, esse processo ocorre, inevitavelmente, de maneira a induzir desenvolvimento econômico para o país, traduzindo-se em uma situação generalizada de ganha-ganha.

Essa dinâmica não se impõe automaticamente nem mesmo em países desenvolvidos, cujos sistemas nacionais de inovação foram construídos sob demanda militar durante a Guerra Fria, vide o exemplo da tentativa de keynesianismo bélico durante o governo Reagan nos EUA, que não resultou no mesmo sucesso econômico de décadas anteriores. Isso porque há outros elementos macroeconômicos para além do mero gasto militar que determinam os resultados (FORDHAM, 2007). Assim, embora a formação do complexo militar industrial tenha sido uma experiência de sucesso no imediato pós-Segunda Guerra, sua dinâmica encontra limitações históricas e regionais, que não são adereçadas na proposição do complexo brasileiro pautada pelo setor político.

Para que um complexo militar tenha sucesso em gerar ganhos para a economia civil, é preciso que se estabeleçam mecanismos institucionais e políticas públicas ativas que garantam o aproveitamento das externalidades que tal complexo pode gerar. A estratégia de endogeneização tecnológica por meio da indústria de defesa demanda uma abordagem proativa do governo, por meio de políticas industriais que estabeleçam diretrizes, instituições e mecanismos para promover o avanço desse setor (AMBROS, 2022).

Espelhar padrões produtivos não garante que entraves para economias dependentes sejam suplantados, em especial quando se trata do setor de defesa, uma indústria intensiva em capital cujo impacto para a macroeconomia nacional não tem capacidade de transformar, por si só, características estruturais do subdesenvolvimento. Pode, ainda, reverberar em efeitos contrários ao que pretende um programa econômico voltado para a melhoria das condições de vida e redução de distorções socioeconômicas. A mimetização de padrões produtivos e de consumo estrangeiros implica na capacidade econômica para sustentá-los, a depender de capacidades produtivas ociosas e recursos disponíveis. Assim, quando os esforços produtivos não estão alinhados às reais demandas sociais e ao atendimento às necessidades básicas da população, resulta disso um desequilíbrio entre a priorização do governo e os interesses sociais (FURTADO, 2008, 2013).

O que não significa dizer das possibilidades de desenvolvimento tecnológico autônomo via indústria de defesa, tendo em vista que esta opera sempre nas fronteiras do conhecimento tecnocientífico, e demandas militares foram preponderantes na geração das principais tecnologias utilizadas atualmente no cotidiano civil. Menos ainda significa dizer que um país não deve buscar superar sua condição periférica.

Devido à relação crítica entre o desenvolvimento tecnológico e condições de dependência, dir-se-ia que o Estado tem a autoridade e o dever de impulsionar a indústria tecnológica. Muitas tecnologias digitais têm aplicações tanto civis quanto militares. Assim, a prevalência dessas chamadas tecnologias duais enfatiza sua importância, pois a capacidade de as produzir afeta a economia e a segurança nacional de um país.

Uma vez que o acesso a diversas dessas tecnologias é restrito por seus detentores (os países desenvolvidos), fica mais explícito o papel fundamental do Estado no investimento em pesquisa, no incentivo a inovação e na busca por parcerias para reduzir a dependência tecnológica, garantindo o desenvolvimento econômico e a soberania nacional (AMBROS, 2022).

Não se trata de questionar esses pontos. O objetivo aqui é salientar que a redução de dependência tecnológica, em especial movida por demandas militares, implica em um debate mais amplo sobre um projeto sociopolítico. Ademais, em um cenário em que expectativas de mercado constrangem o investimento público, o conflito distributivo orçamentário deve ser foco de atenção do governo federal. O Ministério da Defesa é uma das principais fatias do orçamento da União, mas cerca de 80% do montante é voltado ao pagamento de encargos sociais (salários, pensões, etc) – segundo dados do SIGA Brasil. É passível de questionamento a razão pela qual investimentos em modernização devem advir de um programa como o PAC – cujos objetivos não dizem respeito ao setor militar.

A questão central aqui abordada é se esses investimentos no setor de Defesa realmente contribuirão para alcançar os objetivos do PAC, que geralmente envolvem o crescimento econômico, a redução da desigualdade, a melhoria da infraestrutura básica, a educação e a saúde pública. A utilidade desses gastos em termos de retorno econômico e social pode ser questionada, especialmente se não houver uma justificativa nítida de como os investimentos no setor de Defesa se alinham com os objetivos gerais do programa e uma proposta ativa de como serão atingidos esses fins. Caso contrário, as externalidades do complexo militar não são apenas indiretas, como também apenas potenciais, repousando mais em pressupostos do que em mecanismos institucionais e sistemas de aprendizado na estrutura industrial.

Tais investimentos já se manifestam no aumento do orçamento destinado ao Ministério da Defesa, mas não de maneira significativa. O Projeto da Lei Orçamentária Anual (PLOA) de 2024 enviado ao Congresso pela presidência, prevê um aumento ao ministério de aproximadamente R$5 bilhões em comparação com o PLOA do ano anterior, passando de R$121bi para R$126bi. No que se refere aos projetos contemplados pelo PAC, o aumento foi de apenas R$368 milhões.

Tabela 1: Projetos das Forças Armadas contemplados pelo novo PAC

Na proposta para 2024, as despesas com todos os investimentos são de R$8 bilhões, contra os R$7 bi proposto no PLOA de 2023, enquanto os gastos com pessoal e encargos sociais passariam de R$94 bilhões para R$98 bilhões em 2024. O projeto ainda será votado pelo Congresso e os valores podem passar por alterações.

Iniciativas vistas durante os governos do PT e essa nova leva de investimentos via PAC, que correlaciona diretamente demandas militares como eixo central de difusão tecnológica, são determinantes para que as Forças Armadas brasileiras e a indústria de defesa do país possam integrar seus próprios objetivos e interesses em diretrizes políticas nacionais mais gerais, voltadas a iniciativas de ordem econômica.

Equilibrar agendas de segurança com os interesses sociais é um desafio para qualquer governo democrático. A própria nota assinada pela ABED aponta que o governo de transição não criou um grupo de trabalho para lidar com as questões de Defesa. Questões de segurança nacional não são de acesso público, essa falta de transparência pode vulnerabilizar direitos cívicos e sociais, o que torna a questão de interesse público. A demanda por novos equipamentos e tecnologias não se justifica em si mesma; isto é, finalidades e diretrizes para seu uso devem ser pautados, em especial se tais demandas estão sendo colocadas em agendas econômicas que pretendem a prosperidade de uma nação.

 

* Marianna Braghini Deus Deu é mestra em Desenvolvimento Econômico pelo Instituto de Economia da Unicamp e doutoranda em Relações Internacionais pelo PPG San Tiago Dantas (Unicamp/Unesp/PUC-SP). Pesquisadora integrante do Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional (GEDES) e da Rede de Pesquisa em Autonomia Estratégica, Tecnologia e Defesa (PAET&D).

Imagem: Presidente Luiz Inácio Lula da Silva no lançamento do novo Programa de Aceleração Econômica em agosto de 2023. Por: Tomaz Silva/Agência Brasil.

Referências:

ABIMDE. ABIMDE comemora 34 anos de história. Disponível em: <https://abimde.org.br/pt-br/noticias/abimde-comemora-34-anos-de-historia>. Acesso em: 15 ago. 2023.

Associação Brasileira de Estudos de Defesa (ABED); Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (ANPOCS); Associação Brasileira de Ciência Política (ABCP). Nota conjunta sobre o Novo PAC (2023). Disponível em: <https://www.abedef.org/informativo/view?ID_INFORMATIVO=215> . Acesso em: 15 ago. 2023.

AMBROS, C. C. (2022). Indústria de Defesa e Desenvolvimento: controvérsias teóricas e implicações em política industrial. Austral: Revista Brasileira de Estratégia e Relações Internacionais, 6(11). https://doi.org/10.22456/2238-6912.74955

BRASIL. Poder Executivo. Projeto de Lei Orçamentária 2024. Brasília, DF: Presidência da República, 2023. Disponível em: <https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=9445685&ts=1693936714647&disposition=inline>. Acesso em 12 set. 2023.

FORDHAM, B. Paying for global power: costs and Benefits of Postwar U.S. Military Spending. In: The Long War. BACEVICH, A (org.). Columbia University Press: Nova York, 2007.

FURTADO, C. O mito do desenvolvimento econômico. Companhia Penguin. Celso Furtado. Essencial. Organização Rosa Freire d’Aguiar. 1a. Ed. São Paulo: Penguin Classics Cia das Letras, 2013.

FURTADO, C. Da ideologia do progresso ao desenvolvimento. In: Criatividade e dependência da civilização industrial. São Paulo: Cia das Letras, 2008, pp.99-110.

MINISTÉRIO DA CASA CIVIL. Portal do Novo Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). Disponível em: <https://www.gov.br/casacivil/novopac/>. Acesso em: 12 set. 2023.

Todo mundo quer um cisne negro

                                                                                   Getúlio Alves de Almeida Neto*

 

No último 23 de junho fomos pegos de surpresa por uma rebelião do Grupo Wagner, um corpo paramilitar liderado por Yevegny Prigozhin, parte importante das forças russas na Guerra na Ucrânia e também atuante em conflitos na África. O motim de aproximadamente 24 horas transcorreu a partir do avanço dos soldados do grupo Wagner ao interior do território russo, levando à tomada da cidade de Rostov-on-Don e à marcha que aproximou as tropas lideradas por Prigozhin do sul de Moscou com o intuito – até onde se sabe – de depor Sergei Shoigu, Ministro da Defesa, e Valery Gerasimov, Chefe do Estado-Maior e Comandante das forças russas na Guerra da Ucrânia. O vislumbre de que um golpe de Estado contra Vladimir Putin estaria em curso ocasionou um enorme espanto devido ao seu caráter totalmente imprevisível e até mesmo impensável. As análises que sucederam ao evento, encerrado após um acordo com o intermédio do Presidente de Belarus, Alexander Lukashenko, e cujos detalhes ainda são desconhecidos, apontam com frequência que o motim é um sinal do enfraquecimento de Putin e de que seu governo estaria próximo do fim. O texto a seguir discute as análises que repercutiram os eventos e os potenciais desdobramentos envolvendo o Grupo Wagner. Devido à imprevisibilidade do que aconteceu – ou teria acontecido – o conceito de Cisne Negro, criado por Nassim Taleb, em 2007, parece interessante para análise crítica quanto a nossa percepção do evento.

Em 2007, o escritor libanês Nassim Taleb publicou o livro “A lógica do Cisne Negro: o impacto do altamente improvável”, que teve grande repercussão entre economistas. Na obra, Taleb define o conceito de Cisne Negro como um evento que possui três características: é imprevisível, ocasiona resultados impactantes e, após sua ocorrência, são geradas explicações que buscam dotá-lo de sentido e possibilitar sua compreensão, como se tivesse sido possível que já prevíssemos sua ocorrência. Acima de tudo, o livro é uma crítica à forma como nós, enquanto humanos, temos a tendência de não estarmos preparados para eventos que parecem à primeira vista impossíveis. Dessa maneira, buscamos nos aprofundar em uma área do conhecimento e traçar generalizações e padrões que nos fecham para o mundo do improvável em favor da racionalidade e da lógica que impomos ao nosso objeto de estudo, e que nos faça capazes de prever acontecimentos futuros e controlarmos os riscos. Como resultado, impomos ao mundo uma ordem organizadora maior do que ele realmente possui.

Dois anos após o lançamento do livro, o cientista político Robert Jervis (2009) publicou um artigo sobre as possibilidades e limitações do uso do conceito de Cisne Negro para o campo da política, sobretudo da política internacional. Jervis considera que o conceito parece ter sido bem aceito – pelo menos à época de seu texto – já que a história do século XX gira em torno de duas grandes guerras mundiais e da Guerra Fria, cujas características de imprevisibilidade e impactos que causaram, sendo caracterizados por historiadores como “pontos de virada”, se assemelhariam ao conceito de Cisne Negro de Taleb. Ainda que o autor conceda a Taleb uma razoabilidade em sua linha argumentativa quanto a estes eventos, afirma que não é fácil de determinar se um evento no passado foi ou não antecipado. Para Jervis, ainda que surpreendentes, não foram inteiramente imprevisíveis.

A partir da definição de Taleb sobre Cisne Negros, Jervis argumenta que esta seria parcialmente vaga. Um evento em particular pode ser analisado como um Cisne Negro para um observador, enquanto para um outro faz sentido em alguma medida. Por meio de exemplos, a contra-argumentação de Jervis é afirmar que, enquanto alguns eventos históricos da política internacional podem ser considerados claramente pontos de virada, não constituem um Cisne Negro. No campo da ciência política, em específico, Jervis (1997) cita a existência de um sistema – a tese de sua obra principal – cujas interconexões são tão numerosas e diversas que traçar um caminho entre causa e efeito se torna uma tarefa extremamente complicada mesmo após a ocorrência do evento, tornando-se ainda mais complexa de fazê-lo a priori do evento. Isso decorre do fato e que o impacto causado entre as variáveis que compõe o sistema e suas respostas geram importantes não-linearidades.

A partir de sua perspectiva da psicologia política, Jervis (2009) considera que o comportamento humano é influenciado por expectativas que podem produzir profecias autorrealizáveis ou negá-las por antecipação. Assim, afirma que a ocorrência ou não de um Cisne Negro pode depender da forma como as pessoas reagem ao sinal do que é possível. Em alguns casos, o fato de que algo não aconteceu é utilizado para indicar que sua ocorrência é impossível e que, portanto, os cálculos prévios de risco estavam corretos e não precisam ser alterados. Nessa lógica, a ocorrência de um Cisne Negro só se dá se for inesperada. Se for antecipada, os atores irão se comportar de forma diferente e o evento não ocorrerá.  Por fim, a principal dúvida de Jervis quanto à possibilidade de aplicarmos o conceito de Cisne Negro para a política internacional é em razão da sugestão de Taleb de evitarmos projeções de longo prazo. Nesse caso, o autor se questiona, por exemplo, como seria possível a gestão de uma política estadunidense em relação à China que não se baseie em teorias – ainda que advirta para os riscos de sermos excessivamente orientados pela teoria – para prover expectativas quanto ao comportamento chinês ao longo dos anos. Assim, saber que em algum momento um Cisne Negro ocorrerá, não nos diz nada sobre como agir frente a ele ou simplesmente pensar sobre ele.

Na conclusão de Jervis está o cerne do meu argumento sobre os acontecimentos do último final de semana na Rússia e em relação às inúmeras análises feitas desde então. Citando o autor: “Enquanto devemos explicar o máximo que pudermos, não devemos forçar o nosso conhecimento para além do que ele pode ir. […] a melhor resposta para muitas perguntas é ‘eu não sei’. […] saber de algo que já aconteceu não nos informa sobre o que acontecerá no futuro” (JERVIS, 2009, p. 488, tradução nossa).

Nesse sentido, meu ponto central é que a maioria das análises que se avolumaram a partir do grande espanto causado pelo motim do Grupo Wagner tendem a observar o fenômeno como um claro indício de que Vladimir Putin está enfraquecido e que o fim de seu governo está próximo. Não obstante, uma outra leitura sobre os fatos de que a aparente rebelião foi desmantelada num espaço de 24 horas; seu líder, Yevgeny Prigozhin, está em aparente exílio em Belarus; o general russo Sergey Surovikin teve sua participação descoberta e está preso; e há a previsão de incorporação dos combatentes do Grupo Wagner ao Ministério da Defesa Russo como soldados voluntários poderia indicar que Putin, a depender da forma como reagir aos acontecimentos, pode sair politicamente menos enfraquecido do que se imagina, ou ao menos buscar uma demonstração de força na repressão contra aqueles que desafiam seu poder.

Aventarmos a possibilidade de queda de seu governo, após 23 anos como presidente ou primeiro-ministro, a partir de uma rebelião causada um grupo militar privado sem – pelo menos a princípio – apoio da maioria da sociedade civil e dos militares russos pouco nos diz sobre a real probabilidade que algo tão surpreendente possa ocorrer. Ademais, as repercussões negativas que a guerra na Ucrânia pode causar na sociedade russa e os impactos disso na popularidade de Putin já são discutidos muito antes da rebelião do Grupo Wagner. De fato, a acusação de que há forças externas e internas que buscam desestabilizar seu governo faz parte do discurso de Putin e do pensamento militar russo há, pelo menos, uma década. Na ocasião de uma improvável derrubada do Presidente russo, considero a marcha do Grupo Wagner apenas um elemento entre outros que poderiam auxiliar na explicação dos fatos. Mas, correndo o risco de ser enganado pelos desenvolvimentos a seguir, não consideraria a causa, nem um ponto de virada, muito menos um evento Cisne Negro que colocou fim ao governo de Vladimir Putin.

Por fim, a enorme expectativa gerada foi bem descrita por Chen Qingqing como um “wishful thinking” do Ocidente de que uma imprevisível queda de Putin poderia levar a um fim mais rápido da Guerra da Ucrânia com resultados favoráveis aos defensores, um conflito que não dá sinais de um fim próximo em meio a um impasse militar em solo ucraniano. Em suma, e compartilhando da perspectiva de Jervis, esperar por um Cisne Negro não nos diz nada sobre como agir no momento ou como compreendermos a complexidade dos fatos. Uma análise baseada no histórico de repressões a opositores de Putin me faz acreditar que temos mais motivos para acreditar que ele não cairá tão cedo do que o contrário. O que ocorrerá, no entanto, ninguém pode saber.

 

* Getúlio Alves de Almeida Neto é doutorando e mestre em Relações Internacionais pelo PPGRI “San Tiago Dantas” (Unesp, UNICAMP, PUC-SP). Defendeu a Dissertação de Mestrado sobre a reforma militar russa e a projeção de poder do país. Membro do Observatório de Conflitos do GEDES. Contato: getulio.neto@unesp.br

Imagem: Tanque com flores durante o motim de 24 de junho de 2023. Por: Fargoh/ Wikkimedia Commons.

 

REFERÊNCIAS

CHERNOVA, Anna. Kremlin diz que combatentes do Grupo Wagner retornarão à base e assinarão contratos com militares. CNN Brasil. 24 jun. 2023. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/internacional/kremlin-diz-que-combatentes-do-grupo-wagner-retornarao-a-base-e-assinarao-contratos-com-militares/. Acesso em: 30 jun. 2023

FIX, Liana; KIMMAGE, Michael. The Beginning of the End for Putin? Foreign Affairs, 27 June 2023. Disponível em: https://www.foreignaffairs.com/russian-federation/beginning-end-putin-prigozhin-rebellion. Acesso em: 30 jun. 2023.

JERVIS, Robert. Black Swan in Politics. Critical Review, v. 21, n. 4, pp. 475-489, 2007. DOI: 10.1080/08913810903441419

JERVIS, Robert. System Effects: Complexity in Political and Social Life. Princeton: Princeton University Press. 1997.

QINGQING, Chen. Wagner’s revolt weakening Putin’s authority ‘wishful thinking’ of the West: experts. Global Times. 25 June 2023. Disponível: https://www.globaltimes.cn/page/202306/1293134.shtml. Acesso em: 30 jun. 2023.

TALEB, Nassim N. A lógica do Cisne Negro: o impacto do altamente improvável. 2ª Edição. Editora Objetiva. 2021.

 

Boletim PAET&D 01.2023 – Rede de Pesquisa em Autonomia Estratégica, Tecnologia e Defesa

Patrícia Matos, José Augusto Zague, Ana Penido,

David Succi Junior e Samuel Soares*

Acesse a versão original em pdf.

 

A Rede de Pesquisa em Autonomia Estratégica, Tecnologia e Defesa – Rede PAET&D – constitui-se em torno da pesquisa “Incorporação de tecnologia aeroespacial para a Defesa: impactos organizacionais, doutrinários e na autonomia estratégica”, um projeto PROCAD-DEFESA, financiado pela CAPES. Compõem a Rede pesquisadores do ensino médio a docentes vinculados a três Programas de Pós- Graduação: em Relações Internacionais, San Tiago Dantas – UNESP-UNICAMP-PUC-SP; em Ciências Aeroespaciais, Universidade da Força Aérea – UNIFA –; e em Desenvolvimento Econômico, da Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP.

A abordagem geral reside nas vinculações entre desenvolvimento tecnológico, doutrina de emprego, organização militar, impacto social e as políticas públicas de Defesa e de Segurança Internacional, à luz de um quadro mais geral de mudanças substantivas no cenário internacional, com o recrudescimento de antagonismos entre grandes potências e a multiplicação de conflitos de caraterísticas que dificultam seu enquadre taxonômico. Neste cenário, o posicionamento de países mais distantes do centro de poder mundial torna-se mais complexo diante da turbulência de influxos que buscam atrair países periféricos e semiperiféricos para os polos em disputa. O resultado deste reordenamento polar é a drástica redução da liberdade de ação dos países do Sul Global com impactos na autonomia estratégica destes países.

A Rede analisa os impactos da dependência epistêmica em relação aos países do centro nas definições do emprego dos meios de força, no quadro de dependência tecnológica e nos desdobramentos para o futuro.

Diferentes questões marcam os primeiros meses de 2023, e tomamos duas delas como estruturantes. Internacionalmente, segue se estendendo a guerra na Ucrânia, ampliando os impactos na indústria de defesa em específico e na economia global em geral. No plano doméstico, a posse do presidente Luiz Inácio Lula da Silva promete mudanças para a indústria de defesa doméstica e maiores investimentos para o desenvolvimento de ciência e tecnologia nacional.

Buscando contribuir para a redução das dependências e descolonização das práticas, a Rede PAET&D consolidará periodicamente as principais notícias que merecem uma análise crítica sobre o tema em quatro grandes eixos: o que adquirir ou produzir; de quem adquirir ou com quem produzir; processos de aquisição e produção; e quanto gastar. Os links para as notícias utilizadas como matéria prima estão inseridos no próprio corpo do texto. Boa leitura!

O QUE ADQUIRIR OU PRODUZIR

A decisão sobre o que produzir (ou mesmo adquirir) na área de defesa precisa partir das definições estratégicas nacionais. No caso brasileiro, os documentos oficiais (Livro Branco da Defesa Nacional e a Estratégia Nacional de Defesa), não apresentam uma articulação clara entre a produção endógena de armamentos e as ameaças que justifiquem os gastos para produzi-los. Por sua vez, definições estratégicas se subordinam à política externa e doméstica em geral. A discussão sobre autonomia costuma se relacionar com um terceiro grupo de questões sobre como produzir. Na prática, o Brasil tem poucas empresas com capacidade para participar das cadeias produtivas globais do setor, pela baixa incorporação de tecnologia dos bens e serviços produzidos internamente, notadamente na produção de componentes e partes utilizadas na montagem dos armamentos.

A Avibras, uma das principais empresas estratégicas de defesa do Brasil, após anunciar problemas financeiros, poderá ser adquirida por grupo alemão. Outro grupo estrangeiro interessado em adquirir a Avibras é o Edge Group, dos Emirados Árabes. A venda da empresa é prejudicial à autonomia nacional no campo de mísseis e foguetes. Grupos estrangeiros adquiriram importantes empresas estratégicas que antes eram controladas por capital nacional, com destaque para a AEL (antiga Aeroeletrônica), controlada pela israelense ELBIT, que também produz componentes para o GRIPEN-NG; e para a subsidiária brasileira da empresa italiana Iveco (que produz o blindado Guarani).

A venda do blindado Guarani para as Filipinas foi vetada pelo governo alemão, algo possível pois o veículo blindado possui entre seus componentes a transmissão automática, que é produzida pela empresa alemã ZF. Segundo a Alemanha, o veto ocorreu porque as Filipinas são um país que desrespeita os direitos humanos. Entretanto, analistas apontam o veto como uma retaliação pela recusa brasileira em fornecer munições para a Ucrânia. O ocorrido pode impulsionar o Brasil a contornar o problema encontrando fabricantes nacionais para as peças alemãs. De maneira geral, o veto alemão é uma demonstração da grande dependência da indústria de defesa brasileira dos fornecedores externos, e da ausência de fornecedores nacionais para produção de componentes e sistemas de maior sofisticação tecnológica.

DE QUEM ADQUIRIR OU COM QUEM PRODUZIR

Acordos nessa área precisam levar em conta as disputas geopolíticas globais, identificando, se possível, parcerias que possam também cooperar no nível estratégico e político, além de se tornarem compradores de outros produtos brasileiros, e não competidores no mercado internacional.

Após a Boeing desistir de comprar a Embraer, a empresa estadunidense tem contratado engenheiros da empresa brasileira que podem deter segredos industriais, prática que vem sendo contestada na justiça como uma forma indireta de absorção da capacitação da engenharia aeronáutica nacional. A iniciativa pode indicar uma mudança na estratégia da Boeing, na busca por enfraquecer a Embraer e preparar o ambiente para uma nova tentativa de aquisição.

Outro projeto estratégico brasileiro, o submarino nuclear, também apresenta motivos para preocupação. A empresa estadunidense Flowserve adquiriu a empresa estratégica francesa Velan, detentora da Segault, que equipa os submarinos nucleares franceses, e é também fornecedora da Naval Group (que tem parceria com o Brasil no projeto do submarino nuclear). A França desenvolveu durante a presidência de Charles De Gaulle, na década de 1960, uma política de autonomia estratégica na produção de armamentos. No modelo de difusão da tecnologia militar globalizada, a produção de armamentos é concentrada em grandes conglomerados. Os projetos autônomos de alta tecnologia na área militar têm enfrentado dificuldades com a escala produtiva (quantidade reduzida) e menor possibilidade de ganhos em aprendizagem, que poderiam contribuir para a redução dos custos. O avanço de empresas estrangeiras na produção de partes e componentes também dentro do Brasil, amplia a dependência externa da indústria de defesa nacional.

PROCESSOS DE AQUISIÇÃO E PRODUÇÃO

A UOL produziu matéria descritiva sobre as capacidades da Força Aérea Brasileira. Quando comparada a outras forças aéreas da região, o Brasil tem a segunda maior frota das Américas, ficando atrás apenas dos Estados Unidos da América. A reportagem, entretanto, discute apenas o quantitativo de equipamentos, sem colocar em pauta as diferentes estratégias e os consequentes instrumentos de força necessários para atendê-las pelos países comparados.

A Embraer anunciou que iniciará a montagem final de quinze caças Gripen como parte da transferência de tecnologia contratada com a SAAB para o fornecimento de 36 caças para a FAB, dentro do Programa F-X2. A empresa brasileira absorverá tecnologias na área da engenharia de sistemas, hardware, software e integração de sistemas, o que permitirá a produção de aeronaves de combate de 4ªgeração. A produção da aeronave exigiu a regionalização da montagem, com a consequente construção de uma fábrica da SAAB em São Bernardo (SP). A estrutura financeira da fábrica é composta por um sócio majoritário, a Saab (90%) e um parceiro minoritário, a brasileira Akaer (10%), empresa de engenharia especializada no desenvolvimento de aeroestruturas, parceira da Saab desde 2009, quando foi contratada para desenvolver o projeto de segmentos da fuselagem do Gripen. Não há previsão de que outras empresas brasileiras forneçam componentes (recheio) de tecnologia avançada para a aeronave.

Por fim, cumpre lembrar que os processos de aquisição de armas leves por particulares estiveram aquecidos nos últimos anos. Entre 2018 e 2021, enquanto o mercado mundial que comercializa armamentos retraiu-se (tendência que se modifica com a erupção da guerra na Ucrânia), aumentou a importação de armas no Brasil, notadamente devido à política de facilitação para a aquisição de armas por grupos de Colecionadores, Atiradores e Caçadores adotada por Jair Bolsonaro. A empresa Taurus, importante fabricante, importadora e exportadora de armas leves para o mercado mundial, tem sede no Brasil.

QUANTO GASTAR

Quando se trata de gastos para a indústria de defesa bélica no âmbito global, o céu não tem limites. A Guerra entre a Rússia e a OTAN na Ucrânia tem impulsionado o complexo industrial militar dos EUA. As projeções do Pentágono para investimento no desenvolvimento de caças de sexta geração alcançam a marca de 34 bilhões de dólares. A tecnologia hipersônica para aeronaves pode ser disruptiva, e seu desenvolvimento, inclusive para uso militar, tem sido levado a cabo pelos EUA e China.

No Brasil, a demanda pela ampliação dos gastos em defesa é recorrente, e consta na atual minuta da Estratégia Nacional de Defesa em análise no Congresso Nacional, com a proposta de destinar 2% do PIB nacional para gastos da pasta (parâmetro de gasto inspirado nas recomendações da OTAN). São frequentes também as análises críticas do orçamento de defesa nacional, que direciona a maioria dos recursos para o pagamento de despesas correntes e de pessoal, em detrimento dos gastos com aquisições e investimentos.

Por fim, para além da discussão sobre quanto gastar, é pertinente refletir sobre a origem dos recursos. Uma empresa sul-coreana lançou foguete utilizando a Base de Alcântara, ainda sem finalidade comercial. De toda maneira, os recursos com o aluguel do Centro de Lançamentos não podem ser utilizados para o desenvolvimento de lançadores pelo programa espacial brasileiro, devido ao acordo de salvaguardas assinado com os EUA. Recorda-se que o acordo não prevê nenhuma transferência de tecnologia.

 

PARA SE APROFUNDAR: ARTIGOS ACADÊMICOS SOBRE O TEMA PUBLICADOS RECENTEMENTE

“The technopolitics of security: Agency, temporality, sovereignty”. Artigo de Frank Müller and Matthew Aaron Richmond na revista Security Dialogue, 2023 (v.54:1, pg. 3-20). Disponível em: https://journals.sagepub.com/doi/epub/10.117 7/09670106221141373.

“Developments in Military Expenditure and the Effects of the War in Ukraine”. Artigo de Nan Tian, Diego Lopes, da Silva, Lucie Béraud- Sudreau, Xiao Liang, Lorenzo Scarazzato e Ana Assis na revista Defence and Peace Economics, 2023. Disponível em: https://www.tandfonline.com/doi/full/10.1080/ 10242694.2023.2221877.

 

* Patrícia Matos é professora do Programa de Pós-graduação em Ciências Aeroespaciais da Universidade da Força Aérea (UNIFA), Doutora em Ciências Aeroespaciais pela UNIFA e Doutoranda em Economia Política Internacional pela UFRJ. José Augusto Zague é membro do Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional (GEDES- Unesp), e-mail: j.zague@unesp.br.; Ana Penido é pesquisadora de pós-doutorado do programa de Ciência Política da Unicamp, David Succi Junior é pesquisador de pós-doutorado do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP, PUC-SP) e Samuel Soares é professor da UNESP, campus de Franca, e do PPGRI San Tiago Dantas. Todas as autoras e autores participam do Programa de Pesquisa Acadêmica em Defesa Nacional (Procad-Defesa) no Projeto “Incorporação de Tecnologia Aeroespacial para a Defesa” da Rede PAET&D.

Imagem: Logo da Rede PAE&D.

Manifesto Moscou: o Conceito de Política Externa russa de 2023 urge um mundo multipolar

Getúlio Alves de Almeida Neto*

Em 31 de março, foi publicado pelo Ministério das Relações Exteriores da Rússia a nova edição do documento intitulado “Conceito de Política Externa da Federação Russa”.[1] Trata-se da quinta versão do documento, após as publicações em 2000, 2008, 2013 e 2016. Em conjunto com outros documentos como a Doutrina Militar e o Conceito de Segurança Nacional da Federação Russa, o Conceito de Política Externa visa a comunicação com o público doméstico e, sobretudo, externo. Em relação ao segundo, o conjunto de documentos expõe a visão da Rússia sobre o sistema internacional, as principais ameaças e riscos definidos pelo governo para a segurança nacional do país, bem como delimita a forma de reação a estas ameaças. Ao publicar tais documentos, o Kremlin busca dotar de previsibilidade seus princípios de política externa e política de defesa. Em última análise, pode-se compreendê-los como um elemento de dissuasão da política externa russa. Nesta pequena análise, o objetivo é destacar alguns pontos de mudanças nas publicações do Conceito de Política Externa ao longo dos anos e tendo em vista o cenário atual marcado pela Guerra da Ucrânia e por perspectivas de transição hegemônica em curso no sistema internacional.

Em primeiro lugar, é importante ressaltar que, desde a primeira versão do Conceito de Política Externa (RUSSIA, 2000) algumas linhas centrais permanecem constantes, auxiliando na compreensão da visão russa sobre o sistema internacional. Entre estas, destacam-se cinco elementos fundamentais: 1) a defesa pelo respeito ao Direito Internacional e às normas internacionais; 2) a supremacia do Conselho de Segurança da ONU (CSNU) como órgão de resolução de conflitos; 3) a busca em evitar a escalada armamentista convencional e nuclear; 4) o respeito entre os interesses das potências e a não interferência em questões domésticas; 5) a crítica à expansão da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) para regiões próximas à fronteira russa.

Destarte, o que se evidencia nas diferentes versões do Conceito de Política Externa é, em maior medida, uma mudança no tom adotado em suas disposições, ora mais otimista, ora mais pessimista e reativa; a forma como interesses e ameaças são definidos de maneira mais ou menos implícita; e o modo como o governo enxerga o papel de grande potência a ser exercido pela Rússia. Nessa perspectiva, observam-se algumas alterações ao longo de suas quatro primeiras edições.

No documento de 2000, destacam-se sobretudo o caráter mais pragmático quanto à possibilidade de cooperação no âmbito do Conselho Rússia-OTAN, criado em 1997, apesar da ressalva quanto à incongruência entre as diretrizes políticas e militares da aliança militar ocidental com os interesses securitários russos (RÚSSIA, 2000). Em específico, o documento apresentava o posicionamento russo contrário ao uso da força sem autorização do Conselho de Segurança da ONU em nome do uso de conceitos como “intervenção humanitária” e “soberania limitada”, em uma clara alusão ao bombardeio da OTAN na Guerra do Kosovo, em 1999. Por fim, cabe destaque ao fato de que, já em 2000, o Conceito de Política Externa ressaltava a autopercepção russa quanto ao seu status de grande potência e definia como objetivo o estabelecimento de uma ordem multipolar que levasse em conta a variedade de interesses dos Estados nas relações internacionais.

Em sua segunda edição, publicada em julho de 2008 – portanto um mês antes da Guerra da Geórgia – o documento não apenas explicitava o desejo russo por uma nova ordem internacional multipolar, mas já afirmava o início da derrocada do modelo internacional dominado pelo Ocidente desde o fim da Guerra Fria (RÚSSIA, 2008). Nesse sentido, destacava-se a crítica ao modelo de alianças políticas e militares – novamente em referência à OTAN – quanto a sua capacidade de lidar com os desafios securitários contemporâneos, além de uma nova crítica ao projeto de expansão da aliança militar ocidental e as negociações para adesão de Geórgia e Ucrânia. Não obstante, a Rússia ainda se mostrava disposta a cooperar no contexto do Conselho Rússia-OTAN, desde que com base no reconhecimento dos interesses das potências.

A versão de 2013 aprofundava o posicionamento russo quanto a sua percepção do fim da hegemonia estadunidense no sistema internacional, que passava a dar lugar para o surgimento de novos polos de poder, sobretudo na região Ásia-Pacífico. Em razão do declínio de seu poder relativo, o Ocidente – segundo a perspectiva russa – iria usar de medidas para manter seu poder, que por consequência tornaria o sistema internacional mais instável (RÚSSIA, 2013).

Entre a publicação do documento em 2013 e a sua quarta edição, em 2016, houve a anexação da Crimeia, em 2014, um movimento crucial da política externa russa para os desdobramentos que levaram ao atual estado das relações entre Rússia e o Ocidente. Dois anos após o ocorrido, o Conceito de Política Externa da Federação Russa pela primeira vez apontava explicitamente para a emergência de um sistema multipolar e novos modelos de desenvolvimento. Nesse sentido, além de uma disputa entre Estados no campo político, militar e econômico, o posicionamento do governo russo identificava a concorrência entre diferentes modelos na dimensão civilizacional, criticando a tentativa de imposição de valores entre as partes. Dessa forma, a busca do Ocidente de impor seu modelo ao redor do globo e impedir a ascensão de novos polos de poder seria o principal motivo para a instabilidade internacional.

A principal diferença entre o documento de 2016 e as versões anteriores, no entanto, foi a menção explícita aos Estados Unidos, no trecho que se segue:

[…] a Rússia não reconhece a política dos Estados Unidos de jurisdição extraterritorial para além dos limites da lei internacional e considera inaceitável tentativas de exercer pressões militares, políticas, econômicas, ou de qualquer outra natureza, e se reserva o direito de responder firmemente a ações hostis, incluindo o reforço de sua defesa nacional e tomando medidas retaliatórias ou assimétricas. (RÚSSIA, 2016, quarta seção, artigo 72, tradução nossa).

Nesse contexto, o Conceito de Política Externa de 2023 tem como principal diferença em relação às versões anteriores o seu caráter de manifesto que, pela primeira vez, assinala de maneira desvelada o projeto russo de estabelecimento de uma nova ordem mundial. Ainda que nas duas últimas versões já fosse possível identificar claramente a insatisfação russa com o modelo atual de configuração de forças, a versão de 2023 torna-se claramente mais propositiva e otimista em relação à capacidade russa de se estabelecer como polo de poder e à possibilidade e vontade de outros Estados do sistema internacional de se unirem em um projeto que busque repensar a estrutura política, econômica e securitária global. Destaco, a seguir, quatro pontos principais de análise que se relacionam com este objetivo.

Em primeiro lugar, há a defesa do fim da hegemonia do dólar como meio de pagamento internacional e moeda de reserva, ainda que o documento não cite de maneira explícita o nome da moeda estadunidense, como se vê nas passagens abaixo:

“[…] O facto de alguns países abusarem da sua posição dominante nalgumas áreas fomenta os processos de fragmentação da economia global e as desigualdades no desenvolvimento dos países. Novos sistemas de pagamento nacionais e transfronteiras estão a ganhar forma, há um interesse crescente em novas moedas de reserva internacionais e estão a surgir motivos para a diversificação dos mecanismos de cooperação económica internacional” (RÚSSIA, 2013, artigo 10, p. 4).

“[…] adaptar o comércio e os sistemas monetários globais às realidades de um mundo multipolar e às consequências da crise da globalização económica para, antes de mais nada, reduzir a capacidade dos países hostis de abusar do seu monopólio ou da sua posição dominante nalguns sectores da economia mundial e aumentar a participação dos países em desenvolvimento na gestão econômica global” (RÚSSIA, 2013, artigo 39, p. 17).

O segundo ponto de destaque é a menção a uma série de iniciativas multilaterais, fóruns e organizações que engloba o relacionamento com Estados em todos os continentes, dando ênfase sobretudo à África e Ásia, regiões nas quais a influência relativa dos Estados Unidos tem diminuído, tais como o Fórum de Parceria Rússia-África e a Grande Parceria Eurasiática. Além disso, o Conceito de Política Externa define como uma área prioritária o fortalecimento do papel internacional de instituições e organizações nas quais a Rússia possui participação significativa, como os BRICS, Organização de Cooperação de Xangai (OCX), Comunidade de Estados Independentes (CEI), União Econômica Eurasiática (UEE), Organização do Tratado de Segurança Coletiva (OTSC), e RIC (Rússia, Índia, China). Por fim, destaca-se a menção à iniciativa do “Conceito russo de segurança coletiva no Golfo Pérsico”, proposta na qual a Rússia se vê como ator facilitador da retomada de normalidade das relações entre os países do Oriente Médio. Ao longo do texto há, de maneira velada, o principal argumento utilizado pelo governo russo no que tange à diferença entre o relacionamento dos países com Moscou e Washington: a não interferência em assuntos domésticos e relativos à estabilidade dos regimes políticos.

O terceiro tema cuja importância é ressaltada nesta análise se refere à menção explícita dos Estados Unidos como principal fonte de ameaça à segurança da Rússia, citando de maneira aberta a OTAN apenas uma única vez. Nesse sentido, a Rússia passa a definir o Ocidente não como um bloco monolítico que busca estabelecer um projeto hegemônico, mas como uma constelação dos Estados Unidos e “seus satélites”, os quais podemos inferir, principalmente, a Europa. Nesse sentido, o espaço no texto dedicado à Europa é breve e direto. No artigo 49, o documento afirma que as complicações nas relações entre Rússia e Europa se devem às concepções estratégicas e ao fomento de uma política antirrussa por parte dos Estados Unidos, que acaba por limitar a soberania dos países europeus em nome de seu projeto hegemônico. No artigo 61, o governo russo faz um convite à cooperação com países europeus ao colocar sobre eles a responsabilidade de:

     […] perceberem que não existe alternativa à coexistência pacífica e cooperação mutuamente vantajosa em pé de igualdade com a Rússia […] isso terá um impacto benéfico na segurança e bem-estar da região europeia e ajudará os países europeus a ocupar um lugar condigno na Grande Parceria Eurasiática e no mundo multipolar. (RÚSSIA, 2023, p. 30-31)

Por fim, o principal destaque em relação ao Conceito de Política Externa de 2023 está em relação ao foco dado ao processo em curso de transição do sistema internacional, que, na perspectiva russa, abandona o modelo de projeto hegemônico estadunidense em favor de um mundo multipolar. No artigo 12, o documento aponta para a crise na ordem mundial vigente e afirma que a resposta lógica a este cenário é reforçar a “cooperação entre países que estão sujeitos a pressões externas” a partir de mecanismos de integração regionais e transregionais. Pode-se sugerir que se trata de uma referência à cooperação da Rússia com Irã, China e Índia. Ademais, o documento transparece seu caráter de manifesto que busca apoio global ao projeto de transição da polaridade internacional ao afirmar, no artigo 18, que a Rússia busca um sistema de relações internacionais que “preserve a identidade cultural e civilizacional e garanta igualdade de oportunidades de desenvolvimento para todos os países, independentemente da sua posição geográfica, da dimensão do seu território, do seu potencial demográfico, de recursos e militar, e do sistema político, económico e social.”.

Por fim, cabe destacar o uso do argumento de respeito às leis internacionais e à reiterada menção ao CSNU como principal órgão responsável pela manutenção da segurança internacional, a crítica às intervenções militares unilaterais e ao processo decisório de aplicação de sanções sem a anuência do órgão. Ao analisarmos tais afirmações a partir do contexto da Guerra da Ucrânia – assim como fora o caso das versões anteriores sob a luz da Guerra da Geórgia e da anexação da Crimeia – é claro que o leitor estranhe a contradição do governo russo. Nesse sentido, o Conceito de Política Externa de 2023 novamente se diferencia dos outros ao fazer menção ao Artigo 51 da Carta da ONU , sobre o direito inerente de legítima defesa individual ou coletiva, como uma prerrogativa legal que justificaria a invasão russa à Ucrânia para se defender das ameaças tais como percebidas por Moscou. Além desta, o documento busca resguardar o direito russo não cumprir com tratados internacionais que não estejam de acordo com a Constituição da Federação Russa, como disposto no artigo 21.

Em suma, pode-se afirmar que o novo Conceito de Política Externa da Federação Russa continua com as linhas gerais da política externa russa do século XXI. Nesse sentido, permanece como objetivo principal a transformação da arquitetura de segurança do pós-Guerra Fria e o fim da hegemonia estadunidense em prol da formação de um sistema de relações internacionais multipolar, no qual a Rússia deverá exercer um papel principal como um dos principais centros de poder em base de igualdade e reconhecimento dos interesses entre as potências. No entanto, a publicação do documento em 2023 representa o mais elevado nível de confiança – e, também, cinismo em relação ao respeito às disposições da Carta da ONU – da política externa russa em relação a este processo de transformação do sistema internacional. Enquanto as quatro primeiras versões foram gradativamente aumentando a ênfase na defesa por um mundo multipolar e possuíam um tom de prenúncio da derrocada estadunidense, o documento de março de 2023 já reconhece o cenário pós pax-americana e faz um convite aos demais Estados para participarem da construção de um sistema internacional que leve em conta os interesses dos diferentes atores que queiram se desvencilhar do modelo político-econômico estabelecido por Washington.

Por fim, o posicionamento russo não descarta a possibilidade de cooperação com os países europeus. Não obstante, Moscou busca mostrar como é cada vez menos dependente do relacionamento com seus vizinhos ocidentais, que teriam muito mais a perder com a má relação com a Rússia, em detrimento de um aprofundamento das relações com os países euroasiáticos e, principalmente, com potências como China e Índia. Em 2023 Moscou afirma abertamente que a hegemonia dos Estados Unidos deve ser encerrada em prol de um sistema multipolar com a participação russa como um dos polos de poder; coloca a responsabilidade da instabilidade internacional na recusa de Washington em aceitar o fim de sua hegemonia; e convoca outros atores a participarem da construção de um novo sistema internacional.

 

* Getúlio Alves de Almeida Neto é doutorando e mestre em Relações Internacionais pelo PPGRI “San Tiago Dantas” (Unesp, UNICAMP, PUC-SP). Defendeu a Dissertação de Mestrado sobre a reforma militar russa e a projeção de poder do país. Membro do Observatório de Conflitos do GEDES. Contato: getulio.neto@unesp.br

[1] A versão em português está com a grafia de Portugal, que será mantida nos trechos citados ao longo do texto.

Referências

NAÇÕES UNIDAS. Carta das Nações Unidas. 1945. Disponível em: https://brasil.un.org/sites/default/files/2022-05/Carta-ONU.pdf. Acesso em: 2 maio 2023.

RÚSSIA. Ministério de Negócios Estrangeiros.  2023. Conceito de Política Externa da Federação da Rússia. Disponível em: https://mid.ru/en/foreign_policy/fundamental_documents/1860586/?lang=pt. Acesso em: 2 maio 2023.

RÚSSIA. President of Rússia. Concept of the Foreign Policy of the Russian Federation. 2008. Disponível em: http://en.kremlin.ru/supplement/4116. Acesso em: 18 abr. 2023

RÚSSIA. The Foreign Concept of the Russian Federation. 2000. Federation of American Scientists. Disponível em: https://fas.org/nuke/guide/russia/doctrine/econcept.htm. Acesso em: 2 maio 2023.

RÚSSIA. The Foreign Concept of the Russian Federation, 2013. Voltaire Network. Disponível em: https://www.voltairenet.org/article202037.html. Acesso em: 2 maio 2023

RÚSSIA. The Ministry of Foreign Affairs of the Russian Federation. Concept of the Foreign Policy of the Russian Federation. 2016.  Disponível em: https://archive.mid.ru/en/foreign_policy/news/-/asset_publisher/cKNonkJE02Bw/content/id/2542248. Acesso em: 2 maio 2013