Kremlin_Moscow

Manifesto Moscou: o Conceito de Política Externa russa de 2023 urge um mundo multipolar

Getúlio Alves de Almeida Neto*

Em 31 de março, foi publicado pelo Ministério das Relações Exteriores da Rússia a nova edição do documento intitulado “Conceito de Política Externa da Federação Russa”.[1] Trata-se da quinta versão do documento, após as publicações em 2000, 2008, 2013 e 2016. Em conjunto com outros documentos como a Doutrina Militar e o Conceito de Segurança Nacional da Federação Russa, o Conceito de Política Externa visa a comunicação com o público doméstico e, sobretudo, externo. Em relação ao segundo, o conjunto de documentos expõe a visão da Rússia sobre o sistema internacional, as principais ameaças e riscos definidos pelo governo para a segurança nacional do país, bem como delimita a forma de reação a estas ameaças. Ao publicar tais documentos, o Kremlin busca dotar de previsibilidade seus princípios de política externa e política de defesa. Em última análise, pode-se compreendê-los como um elemento de dissuasão da política externa russa. Nesta pequena análise, o objetivo é destacar alguns pontos de mudanças nas publicações do Conceito de Política Externa ao longo dos anos e tendo em vista o cenário atual marcado pela Guerra da Ucrânia e por perspectivas de transição hegemônica em curso no sistema internacional.

Em primeiro lugar, é importante ressaltar que, desde a primeira versão do Conceito de Política Externa (RUSSIA, 2000) algumas linhas centrais permanecem constantes, auxiliando na compreensão da visão russa sobre o sistema internacional. Entre estas, destacam-se cinco elementos fundamentais: 1) a defesa pelo respeito ao Direito Internacional e às normas internacionais; 2) a supremacia do Conselho de Segurança da ONU (CSNU) como órgão de resolução de conflitos; 3) a busca em evitar a escalada armamentista convencional e nuclear; 4) o respeito entre os interesses das potências e a não interferência em questões domésticas; 5) a crítica à expansão da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) para regiões próximas à fronteira russa.

Destarte, o que se evidencia nas diferentes versões do Conceito de Política Externa é, em maior medida, uma mudança no tom adotado em suas disposições, ora mais otimista, ora mais pessimista e reativa; a forma como interesses e ameaças são definidos de maneira mais ou menos implícita; e o modo como o governo enxerga o papel de grande potência a ser exercido pela Rússia. Nessa perspectiva, observam-se algumas alterações ao longo de suas quatro primeiras edições.

No documento de 2000, destacam-se sobretudo o caráter mais pragmático quanto à possibilidade de cooperação no âmbito do Conselho Rússia-OTAN, criado em 1997, apesar da ressalva quanto à incongruência entre as diretrizes políticas e militares da aliança militar ocidental com os interesses securitários russos (RÚSSIA, 2000). Em específico, o documento apresentava o posicionamento russo contrário ao uso da força sem autorização do Conselho de Segurança da ONU em nome do uso de conceitos como “intervenção humanitária” e “soberania limitada”, em uma clara alusão ao bombardeio da OTAN na Guerra do Kosovo, em 1999. Por fim, cabe destaque ao fato de que, já em 2000, o Conceito de Política Externa ressaltava a autopercepção russa quanto ao seu status de grande potência e definia como objetivo o estabelecimento de uma ordem multipolar que levasse em conta a variedade de interesses dos Estados nas relações internacionais.

Em sua segunda edição, publicada em julho de 2008 – portanto um mês antes da Guerra da Geórgia – o documento não apenas explicitava o desejo russo por uma nova ordem internacional multipolar, mas já afirmava o início da derrocada do modelo internacional dominado pelo Ocidente desde o fim da Guerra Fria (RÚSSIA, 2008). Nesse sentido, destacava-se a crítica ao modelo de alianças políticas e militares – novamente em referência à OTAN – quanto a sua capacidade de lidar com os desafios securitários contemporâneos, além de uma nova crítica ao projeto de expansão da aliança militar ocidental e as negociações para adesão de Geórgia e Ucrânia. Não obstante, a Rússia ainda se mostrava disposta a cooperar no contexto do Conselho Rússia-OTAN, desde que com base no reconhecimento dos interesses das potências.

A versão de 2013 aprofundava o posicionamento russo quanto a sua percepção do fim da hegemonia estadunidense no sistema internacional, que passava a dar lugar para o surgimento de novos polos de poder, sobretudo na região Ásia-Pacífico. Em razão do declínio de seu poder relativo, o Ocidente – segundo a perspectiva russa – iria usar de medidas para manter seu poder, que por consequência tornaria o sistema internacional mais instável (RÚSSIA, 2013).

Entre a publicação do documento em 2013 e a sua quarta edição, em 2016, houve a anexação da Crimeia, em 2014, um movimento crucial da política externa russa para os desdobramentos que levaram ao atual estado das relações entre Rússia e o Ocidente. Dois anos após o ocorrido, o Conceito de Política Externa da Federação Russa pela primeira vez apontava explicitamente para a emergência de um sistema multipolar e novos modelos de desenvolvimento. Nesse sentido, além de uma disputa entre Estados no campo político, militar e econômico, o posicionamento do governo russo identificava a concorrência entre diferentes modelos na dimensão civilizacional, criticando a tentativa de imposição de valores entre as partes. Dessa forma, a busca do Ocidente de impor seu modelo ao redor do globo e impedir a ascensão de novos polos de poder seria o principal motivo para a instabilidade internacional.

A principal diferença entre o documento de 2016 e as versões anteriores, no entanto, foi a menção explícita aos Estados Unidos, no trecho que se segue:

[…] a Rússia não reconhece a política dos Estados Unidos de jurisdição extraterritorial para além dos limites da lei internacional e considera inaceitável tentativas de exercer pressões militares, políticas, econômicas, ou de qualquer outra natureza, e se reserva o direito de responder firmemente a ações hostis, incluindo o reforço de sua defesa nacional e tomando medidas retaliatórias ou assimétricas. (RÚSSIA, 2016, quarta seção, artigo 72, tradução nossa).

Nesse contexto, o Conceito de Política Externa de 2023 tem como principal diferença em relação às versões anteriores o seu caráter de manifesto que, pela primeira vez, assinala de maneira desvelada o projeto russo de estabelecimento de uma nova ordem mundial. Ainda que nas duas últimas versões já fosse possível identificar claramente a insatisfação russa com o modelo atual de configuração de forças, a versão de 2023 torna-se claramente mais propositiva e otimista em relação à capacidade russa de se estabelecer como polo de poder e à possibilidade e vontade de outros Estados do sistema internacional de se unirem em um projeto que busque repensar a estrutura política, econômica e securitária global. Destaco, a seguir, quatro pontos principais de análise que se relacionam com este objetivo.

Em primeiro lugar, há a defesa do fim da hegemonia do dólar como meio de pagamento internacional e moeda de reserva, ainda que o documento não cite de maneira explícita o nome da moeda estadunidense, como se vê nas passagens abaixo:

“[…] O facto de alguns países abusarem da sua posição dominante nalgumas áreas fomenta os processos de fragmentação da economia global e as desigualdades no desenvolvimento dos países. Novos sistemas de pagamento nacionais e transfronteiras estão a ganhar forma, há um interesse crescente em novas moedas de reserva internacionais e estão a surgir motivos para a diversificação dos mecanismos de cooperação económica internacional” (RÚSSIA, 2013, artigo 10, p. 4).

“[…] adaptar o comércio e os sistemas monetários globais às realidades de um mundo multipolar e às consequências da crise da globalização económica para, antes de mais nada, reduzir a capacidade dos países hostis de abusar do seu monopólio ou da sua posição dominante nalguns sectores da economia mundial e aumentar a participação dos países em desenvolvimento na gestão econômica global” (RÚSSIA, 2013, artigo 39, p. 17).

O segundo ponto de destaque é a menção a uma série de iniciativas multilaterais, fóruns e organizações que engloba o relacionamento com Estados em todos os continentes, dando ênfase sobretudo à África e Ásia, regiões nas quais a influência relativa dos Estados Unidos tem diminuído, tais como o Fórum de Parceria Rússia-África e a Grande Parceria Eurasiática. Além disso, o Conceito de Política Externa define como uma área prioritária o fortalecimento do papel internacional de instituições e organizações nas quais a Rússia possui participação significativa, como os BRICS, Organização de Cooperação de Xangai (OCX), Comunidade de Estados Independentes (CEI), União Econômica Eurasiática (UEE), Organização do Tratado de Segurança Coletiva (OTSC), e RIC (Rússia, Índia, China). Por fim, destaca-se a menção à iniciativa do “Conceito russo de segurança coletiva no Golfo Pérsico”, proposta na qual a Rússia se vê como ator facilitador da retomada de normalidade das relações entre os países do Oriente Médio. Ao longo do texto há, de maneira velada, o principal argumento utilizado pelo governo russo no que tange à diferença entre o relacionamento dos países com Moscou e Washington: a não interferência em assuntos domésticos e relativos à estabilidade dos regimes políticos.

O terceiro tema cuja importância é ressaltada nesta análise se refere à menção explícita dos Estados Unidos como principal fonte de ameaça à segurança da Rússia, citando de maneira aberta a OTAN apenas uma única vez. Nesse sentido, a Rússia passa a definir o Ocidente não como um bloco monolítico que busca estabelecer um projeto hegemônico, mas como uma constelação dos Estados Unidos e “seus satélites”, os quais podemos inferir, principalmente, a Europa. Nesse sentido, o espaço no texto dedicado à Europa é breve e direto. No artigo 49, o documento afirma que as complicações nas relações entre Rússia e Europa se devem às concepções estratégicas e ao fomento de uma política antirrussa por parte dos Estados Unidos, que acaba por limitar a soberania dos países europeus em nome de seu projeto hegemônico. No artigo 61, o governo russo faz um convite à cooperação com países europeus ao colocar sobre eles a responsabilidade de:

     […] perceberem que não existe alternativa à coexistência pacífica e cooperação mutuamente vantajosa em pé de igualdade com a Rússia […] isso terá um impacto benéfico na segurança e bem-estar da região europeia e ajudará os países europeus a ocupar um lugar condigno na Grande Parceria Eurasiática e no mundo multipolar. (RÚSSIA, 2023, p. 30-31)

Por fim, o principal destaque em relação ao Conceito de Política Externa de 2023 está em relação ao foco dado ao processo em curso de transição do sistema internacional, que, na perspectiva russa, abandona o modelo de projeto hegemônico estadunidense em favor de um mundo multipolar. No artigo 12, o documento aponta para a crise na ordem mundial vigente e afirma que a resposta lógica a este cenário é reforçar a “cooperação entre países que estão sujeitos a pressões externas” a partir de mecanismos de integração regionais e transregionais. Pode-se sugerir que se trata de uma referência à cooperação da Rússia com Irã, China e Índia. Ademais, o documento transparece seu caráter de manifesto que busca apoio global ao projeto de transição da polaridade internacional ao afirmar, no artigo 18, que a Rússia busca um sistema de relações internacionais que “preserve a identidade cultural e civilizacional e garanta igualdade de oportunidades de desenvolvimento para todos os países, independentemente da sua posição geográfica, da dimensão do seu território, do seu potencial demográfico, de recursos e militar, e do sistema político, económico e social.”.

Por fim, cabe destacar o uso do argumento de respeito às leis internacionais e à reiterada menção ao CSNU como principal órgão responsável pela manutenção da segurança internacional, a crítica às intervenções militares unilaterais e ao processo decisório de aplicação de sanções sem a anuência do órgão. Ao analisarmos tais afirmações a partir do contexto da Guerra da Ucrânia – assim como fora o caso das versões anteriores sob a luz da Guerra da Geórgia e da anexação da Crimeia – é claro que o leitor estranhe a contradição do governo russo. Nesse sentido, o Conceito de Política Externa de 2023 novamente se diferencia dos outros ao fazer menção ao Artigo 51 da Carta da ONU , sobre o direito inerente de legítima defesa individual ou coletiva, como uma prerrogativa legal que justificaria a invasão russa à Ucrânia para se defender das ameaças tais como percebidas por Moscou. Além desta, o documento busca resguardar o direito russo não cumprir com tratados internacionais que não estejam de acordo com a Constituição da Federação Russa, como disposto no artigo 21.

Em suma, pode-se afirmar que o novo Conceito de Política Externa da Federação Russa continua com as linhas gerais da política externa russa do século XXI. Nesse sentido, permanece como objetivo principal a transformação da arquitetura de segurança do pós-Guerra Fria e o fim da hegemonia estadunidense em prol da formação de um sistema de relações internacionais multipolar, no qual a Rússia deverá exercer um papel principal como um dos principais centros de poder em base de igualdade e reconhecimento dos interesses entre as potências. No entanto, a publicação do documento em 2023 representa o mais elevado nível de confiança – e, também, cinismo em relação ao respeito às disposições da Carta da ONU – da política externa russa em relação a este processo de transformação do sistema internacional. Enquanto as quatro primeiras versões foram gradativamente aumentando a ênfase na defesa por um mundo multipolar e possuíam um tom de prenúncio da derrocada estadunidense, o documento de março de 2023 já reconhece o cenário pós pax-americana e faz um convite aos demais Estados para participarem da construção de um sistema internacional que leve em conta os interesses dos diferentes atores que queiram se desvencilhar do modelo político-econômico estabelecido por Washington.

Por fim, o posicionamento russo não descarta a possibilidade de cooperação com os países europeus. Não obstante, Moscou busca mostrar como é cada vez menos dependente do relacionamento com seus vizinhos ocidentais, que teriam muito mais a perder com a má relação com a Rússia, em detrimento de um aprofundamento das relações com os países euroasiáticos e, principalmente, com potências como China e Índia. Em 2023 Moscou afirma abertamente que a hegemonia dos Estados Unidos deve ser encerrada em prol de um sistema multipolar com a participação russa como um dos polos de poder; coloca a responsabilidade da instabilidade internacional na recusa de Washington em aceitar o fim de sua hegemonia; e convoca outros atores a participarem da construção de um novo sistema internacional.

 

* Getúlio Alves de Almeida Neto é doutorando e mestre em Relações Internacionais pelo PPGRI “San Tiago Dantas” (Unesp, UNICAMP, PUC-SP). Defendeu a Dissertação de Mestrado sobre a reforma militar russa e a projeção de poder do país. Membro do Observatório de Conflitos do GEDES. Contato: getulio.neto@unesp.br

[1] A versão em português está com a grafia de Portugal, que será mantida nos trechos citados ao longo do texto.

Referências

NAÇÕES UNIDAS. Carta das Nações Unidas. 1945. Disponível em: https://brasil.un.org/sites/default/files/2022-05/Carta-ONU.pdf. Acesso em: 2 maio 2023.

RÚSSIA. Ministério de Negócios Estrangeiros.  2023. Conceito de Política Externa da Federação da Rússia. Disponível em: https://mid.ru/en/foreign_policy/fundamental_documents/1860586/?lang=pt. Acesso em: 2 maio 2023.

RÚSSIA. President of Rússia. Concept of the Foreign Policy of the Russian Federation. 2008. Disponível em: http://en.kremlin.ru/supplement/4116. Acesso em: 18 abr. 2023

RÚSSIA. The Foreign Concept of the Russian Federation. 2000. Federation of American Scientists. Disponível em: https://fas.org/nuke/guide/russia/doctrine/econcept.htm. Acesso em: 2 maio 2023.

RÚSSIA. The Foreign Concept of the Russian Federation, 2013. Voltaire Network. Disponível em: https://www.voltairenet.org/article202037.html. Acesso em: 2 maio 2023

RÚSSIA. The Ministry of Foreign Affairs of the Russian Federation. Concept of the Foreign Policy of the Russian Federation. 2016.  Disponível em: https://archive.mid.ru/en/foreign_policy/news/-/asset_publisher/cKNonkJE02Bw/content/id/2542248. Acesso em: 2 maio 2013

compartilhe este post