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Todo mundo quer um cisne negro

                                                                                   Getúlio Alves de Almeida Neto*

 

No último 23 de junho fomos pegos de surpresa por uma rebelião do Grupo Wagner, um corpo paramilitar liderado por Yevegny Prigozhin, parte importante das forças russas na Guerra na Ucrânia e também atuante em conflitos na África. O motim de aproximadamente 24 horas transcorreu a partir do avanço dos soldados do grupo Wagner ao interior do território russo, levando à tomada da cidade de Rostov-on-Don e à marcha que aproximou as tropas lideradas por Prigozhin do sul de Moscou com o intuito – até onde se sabe – de depor Sergei Shoigu, Ministro da Defesa, e Valery Gerasimov, Chefe do Estado-Maior e Comandante das forças russas na Guerra da Ucrânia. O vislumbre de que um golpe de Estado contra Vladimir Putin estaria em curso ocasionou um enorme espanto devido ao seu caráter totalmente imprevisível e até mesmo impensável. As análises que sucederam ao evento, encerrado após um acordo com o intermédio do Presidente de Belarus, Alexander Lukashenko, e cujos detalhes ainda são desconhecidos, apontam com frequência que o motim é um sinal do enfraquecimento de Putin e de que seu governo estaria próximo do fim. O texto a seguir discute as análises que repercutiram os eventos e os potenciais desdobramentos envolvendo o Grupo Wagner. Devido à imprevisibilidade do que aconteceu – ou teria acontecido – o conceito de Cisne Negro, criado por Nassim Taleb, em 2007, parece interessante para análise crítica quanto a nossa percepção do evento.

Em 2007, o escritor libanês Nassim Taleb publicou o livro “A lógica do Cisne Negro: o impacto do altamente improvável”, que teve grande repercussão entre economistas. Na obra, Taleb define o conceito de Cisne Negro como um evento que possui três características: é imprevisível, ocasiona resultados impactantes e, após sua ocorrência, são geradas explicações que buscam dotá-lo de sentido e possibilitar sua compreensão, como se tivesse sido possível que já prevíssemos sua ocorrência. Acima de tudo, o livro é uma crítica à forma como nós, enquanto humanos, temos a tendência de não estarmos preparados para eventos que parecem à primeira vista impossíveis. Dessa maneira, buscamos nos aprofundar em uma área do conhecimento e traçar generalizações e padrões que nos fecham para o mundo do improvável em favor da racionalidade e da lógica que impomos ao nosso objeto de estudo, e que nos faça capazes de prever acontecimentos futuros e controlarmos os riscos. Como resultado, impomos ao mundo uma ordem organizadora maior do que ele realmente possui.

Dois anos após o lançamento do livro, o cientista político Robert Jervis (2009) publicou um artigo sobre as possibilidades e limitações do uso do conceito de Cisne Negro para o campo da política, sobretudo da política internacional. Jervis considera que o conceito parece ter sido bem aceito – pelo menos à época de seu texto – já que a história do século XX gira em torno de duas grandes guerras mundiais e da Guerra Fria, cujas características de imprevisibilidade e impactos que causaram, sendo caracterizados por historiadores como “pontos de virada”, se assemelhariam ao conceito de Cisne Negro de Taleb. Ainda que o autor conceda a Taleb uma razoabilidade em sua linha argumentativa quanto a estes eventos, afirma que não é fácil de determinar se um evento no passado foi ou não antecipado. Para Jervis, ainda que surpreendentes, não foram inteiramente imprevisíveis.

A partir da definição de Taleb sobre Cisne Negros, Jervis argumenta que esta seria parcialmente vaga. Um evento em particular pode ser analisado como um Cisne Negro para um observador, enquanto para um outro faz sentido em alguma medida. Por meio de exemplos, a contra-argumentação de Jervis é afirmar que, enquanto alguns eventos históricos da política internacional podem ser considerados claramente pontos de virada, não constituem um Cisne Negro. No campo da ciência política, em específico, Jervis (1997) cita a existência de um sistema – a tese de sua obra principal – cujas interconexões são tão numerosas e diversas que traçar um caminho entre causa e efeito se torna uma tarefa extremamente complicada mesmo após a ocorrência do evento, tornando-se ainda mais complexa de fazê-lo a priori do evento. Isso decorre do fato e que o impacto causado entre as variáveis que compõe o sistema e suas respostas geram importantes não-linearidades.

A partir de sua perspectiva da psicologia política, Jervis (2009) considera que o comportamento humano é influenciado por expectativas que podem produzir profecias autorrealizáveis ou negá-las por antecipação. Assim, afirma que a ocorrência ou não de um Cisne Negro pode depender da forma como as pessoas reagem ao sinal do que é possível. Em alguns casos, o fato de que algo não aconteceu é utilizado para indicar que sua ocorrência é impossível e que, portanto, os cálculos prévios de risco estavam corretos e não precisam ser alterados. Nessa lógica, a ocorrência de um Cisne Negro só se dá se for inesperada. Se for antecipada, os atores irão se comportar de forma diferente e o evento não ocorrerá.  Por fim, a principal dúvida de Jervis quanto à possibilidade de aplicarmos o conceito de Cisne Negro para a política internacional é em razão da sugestão de Taleb de evitarmos projeções de longo prazo. Nesse caso, o autor se questiona, por exemplo, como seria possível a gestão de uma política estadunidense em relação à China que não se baseie em teorias – ainda que advirta para os riscos de sermos excessivamente orientados pela teoria – para prover expectativas quanto ao comportamento chinês ao longo dos anos. Assim, saber que em algum momento um Cisne Negro ocorrerá, não nos diz nada sobre como agir frente a ele ou simplesmente pensar sobre ele.

Na conclusão de Jervis está o cerne do meu argumento sobre os acontecimentos do último final de semana na Rússia e em relação às inúmeras análises feitas desde então. Citando o autor: “Enquanto devemos explicar o máximo que pudermos, não devemos forçar o nosso conhecimento para além do que ele pode ir. […] a melhor resposta para muitas perguntas é ‘eu não sei’. […] saber de algo que já aconteceu não nos informa sobre o que acontecerá no futuro” (JERVIS, 2009, p. 488, tradução nossa).

Nesse sentido, meu ponto central é que a maioria das análises que se avolumaram a partir do grande espanto causado pelo motim do Grupo Wagner tendem a observar o fenômeno como um claro indício de que Vladimir Putin está enfraquecido e que o fim de seu governo está próximo. Não obstante, uma outra leitura sobre os fatos de que a aparente rebelião foi desmantelada num espaço de 24 horas; seu líder, Yevgeny Prigozhin, está em aparente exílio em Belarus; o general russo Sergey Surovikin teve sua participação descoberta e está preso; e há a previsão de incorporação dos combatentes do Grupo Wagner ao Ministério da Defesa Russo como soldados voluntários poderia indicar que Putin, a depender da forma como reagir aos acontecimentos, pode sair politicamente menos enfraquecido do que se imagina, ou ao menos buscar uma demonstração de força na repressão contra aqueles que desafiam seu poder.

Aventarmos a possibilidade de queda de seu governo, após 23 anos como presidente ou primeiro-ministro, a partir de uma rebelião causada um grupo militar privado sem – pelo menos a princípio – apoio da maioria da sociedade civil e dos militares russos pouco nos diz sobre a real probabilidade que algo tão surpreendente possa ocorrer. Ademais, as repercussões negativas que a guerra na Ucrânia pode causar na sociedade russa e os impactos disso na popularidade de Putin já são discutidos muito antes da rebelião do Grupo Wagner. De fato, a acusação de que há forças externas e internas que buscam desestabilizar seu governo faz parte do discurso de Putin e do pensamento militar russo há, pelo menos, uma década. Na ocasião de uma improvável derrubada do Presidente russo, considero a marcha do Grupo Wagner apenas um elemento entre outros que poderiam auxiliar na explicação dos fatos. Mas, correndo o risco de ser enganado pelos desenvolvimentos a seguir, não consideraria a causa, nem um ponto de virada, muito menos um evento Cisne Negro que colocou fim ao governo de Vladimir Putin.

Por fim, a enorme expectativa gerada foi bem descrita por Chen Qingqing como um “wishful thinking” do Ocidente de que uma imprevisível queda de Putin poderia levar a um fim mais rápido da Guerra da Ucrânia com resultados favoráveis aos defensores, um conflito que não dá sinais de um fim próximo em meio a um impasse militar em solo ucraniano. Em suma, e compartilhando da perspectiva de Jervis, esperar por um Cisne Negro não nos diz nada sobre como agir no momento ou como compreendermos a complexidade dos fatos. Uma análise baseada no histórico de repressões a opositores de Putin me faz acreditar que temos mais motivos para acreditar que ele não cairá tão cedo do que o contrário. O que ocorrerá, no entanto, ninguém pode saber.

 

* Getúlio Alves de Almeida Neto é doutorando e mestre em Relações Internacionais pelo PPGRI “San Tiago Dantas” (Unesp, UNICAMP, PUC-SP). Defendeu a Dissertação de Mestrado sobre a reforma militar russa e a projeção de poder do país. Membro do Observatório de Conflitos do GEDES. Contato: getulio.neto@unesp.br

Imagem: Tanque com flores durante o motim de 24 de junho de 2023. Por: Fargoh/ Wikkimedia Commons.

 

REFERÊNCIAS

CHERNOVA, Anna. Kremlin diz que combatentes do Grupo Wagner retornarão à base e assinarão contratos com militares. CNN Brasil. 24 jun. 2023. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/internacional/kremlin-diz-que-combatentes-do-grupo-wagner-retornarao-a-base-e-assinarao-contratos-com-militares/. Acesso em: 30 jun. 2023

FIX, Liana; KIMMAGE, Michael. The Beginning of the End for Putin? Foreign Affairs, 27 June 2023. Disponível em: https://www.foreignaffairs.com/russian-federation/beginning-end-putin-prigozhin-rebellion. Acesso em: 30 jun. 2023.

JERVIS, Robert. Black Swan in Politics. Critical Review, v. 21, n. 4, pp. 475-489, 2007. DOI: 10.1080/08913810903441419

JERVIS, Robert. System Effects: Complexity in Political and Social Life. Princeton: Princeton University Press. 1997.

QINGQING, Chen. Wagner’s revolt weakening Putin’s authority ‘wishful thinking’ of the West: experts. Global Times. 25 June 2023. Disponível: https://www.globaltimes.cn/page/202306/1293134.shtml. Acesso em: 30 jun. 2023.

TALEB, Nassim N. A lógica do Cisne Negro: o impacto do altamente improvável. 2ª Edição. Editora Objetiva. 2021.

 

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