Matheus de O. Pereira*
À medida que as apurações sobre o 08 de janeiro avançam fica cada vez mais claro que as Forças Armadas tiveram uma atuação negligente – para dizer o mínimo – no episódio. A gravidade dos eventos tem servido para finalmente colocar em evidência a relação entre as Forças Armadas e a política, um dos mais adiados, e necessários, debates sobre a democracia brasileira. Longe de qualquer pretensão de exaurir o assunto, gostaria de chamar a atenção neste texto para a necessidade urgente de desconstrução do que chamarei aqui de mitologia da excepcionalidade, que envolve as narrativas e percepções sobre a Forças Armadas desde a sua gênese.
Esta mitologia corresponde, de modo sucinto, à caracterização das Forças Armadas como uma organização excepcional, uma ilha de modernidade em meio ao mar de atraso e primitivismo da sociedade brasileira. Formadas a partir da mimetização de elementos importados, as Forças Armadas seriam a representação de uma forma superior de organização e os valores típicos da caserna – hierarquia, disciplina, ordem – funcionam como contraponto ao que seriam características “inatas” dos povos locais, sobretudo os indígenas e os pretos: a lasciva, preguiça, falta de disciplina etc.
Embora seja uma caricatura sem qualquer fundamento, esta caracterização permite formar imagens poderosas que forjam uma identidade que é tanto autorreferida pelos militares como reproduzidas por atores externos. Uma declaração do Ministro Chefe da Casa Civil, Rui Costa, dada em recente entrevista ao jornal O Globo, ilustra com perfeição como esta visão circula inclusive entre a esquerda. Segundo Rui Costa, “Na minha opinião, isso [os acampamentos na frente dos quarteis] não contribuía e não contribuiu para a imagem das nossas Forças Armadas, que sempre foram o símbolo do que está escrito na bandeira do Brasil: ‘Ordem e Progresso’”.
Outro aspecto relevante desta mitologia é a representação das Forças Armadas como probas, imaculadas, justamente porque se diferenciam dos vícios e mazelas imperantes na sociedade. Por outro lado, ao serem definidas como instituições de Estado e destinadas à defesa da pátria, elas se tornam uma espécie de repositório da nacionalidade. Os militares seriam, assim, a representação “verdadeira” do que é a Nação, estando, portanto, aptos a identificar quando os interesses nacionais estão em jogo, e sua suposta lisura os tornam apropriados para executar movimentos de saneamento da política, de afastamento da corrupção, de contenção da desordem.
Essa narrativa, que pode ser detectada em todos os episódios de golpismo dos militares, desempenhou papel fundamental na construção da candidatura de Jair Bolsonaro à presidência em um contexto no qual a corrupção ocupava o posto de principal problema brasileiro. Ora, se o país se encontra engolfado no “mar de lama” da esquerda corrupta, quem melhor que um militar para pôr ordem na casa? O fato de Bolsonaro ser um troglodita até mesmo para os padrões dos militares brasileiros pouco importa – o fato é que ele habilmente manejou este elemento em seu favor. Uma vez no poder, Bolsonaro não apenas seguiu se apropriando exaustivamente da retórica militarista como promoveu uma verdadeira colonização da administração pública com militares que, por sua vez, fizeram o que sabem de melhor: expandir seu quinhão de privilégios às custas do erário.
Isto nos remete a um tópico que será central nos debates sobre o período recente: a narrativa segundo a qual a vinculação entre militares e bolsonarismo se dá no plano individual, e não institucional, isto é, a ideia de que o que ocorreu foi uma adesão de indivíduos militares, e não um endosso institucional das Forças, ao bolsonarismo. Esta é uma falácia que precisa ser urgentemente desconstruída.
Do infame tuíte do gen. Villas Bôas chantageando o STF até aos afagos aos golpistas acampados, as Forças Armadas são siamesas do bolsonarismo. Não duvido que as imagens de depredação do patrimônio artístico e cultural do país e de um sujeito defecando sobre a mesa de um ministro do STF arrepiem oficiais que se julgam membros de uma casta superior, mas não há ginástica retórica que desvincule as turbas bolsonaristas dos militares. É simplesmente impossível que mais de 6.000 oficiais da ativa ocupem postos na administração pública sem respaldo do Alto Comando, ou que as infundadas suspeitas sobre o sistema eleitoral sejam endossadas sem a anuência dos estrelados generais sem batalhas.
Esta narrativa, contudo, serve a vários propósitos fundamentais dos militares neste momento. O primeiro deles é evitar que os militares envolvidos no governo Bolsonaro sejam objeto de qualquer tipo de responsabilização pela coleção de absurdos formada nos últimos quatro anos, em particular no Ministério da Saúde. Um segundo interesse fundamental é assegurar a manutenção dos privilégios recentemente adquiridos – como o tratamento especial na reforma da previdência. Finalmente, os militares esperam manter-se isentos de qualquer tipo de controle por parte do poder civil, garantindo, assim, sua autonomia administrativa e política, inclusive na definição das prioridades orçamentárias.
Para garantir que sua agenda será exitosa, os militares precisam contar com mais do que sua expertise em relações públicas. Se as narrativas mitológicas sobre os militares persistiram por tanto tempo não foi apenas por ação da caserna, mas também por inação dos civis. É fundamental que os poderes estabelecidos se assenhorem de suas prerrogativas constitucionais e façam aquilo que se espera de qualquer democracia: que os militares sejam plena e irrevogavelmente subordinados ao poder civil – e não conciliados com ele. Evidentemente não se trata de exercício simples, mas a urgência que a questão adquiriu nos últimos anos não comporta mais adiamentos. As falas recentes do Presidente Lula e a demissão do gen. Arruda representam bons sinais, mas é preciso ir além. É preciso que haja um debate amplo e propositivo entre partidos, representantes eleitos e a sociedade civil, que discuta a sério o controle civil. Caso isto ocorra, pelo menos para algo positivo a grotesca fuzarca golpista que tomou Brasília terá servido.
* Matheus de O. Pereira é Doutor em Relações Internacionais e Professor na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
Imagem: Invasão do prédio do Congresso Nacional. Por: Agência Senado/Flickr.