Desde meados de abril, a Nicarágua vive uma delicada e complexa situação, confluindo protestos, repressão e um número considerável de mortos e feridos. A intensidade das ações, bem como o rápido desenvolvimento dos fatos, transformou o cenário da nação centro-americana, de modo que manifestações contra determinadas medidas governamentais passaram a um levante nacional demandando a democratização do país e justiça aos afetados pela onda de violência. As mobilizações tiveram início como uma forma de resistência às pretendidas reformas governamentais no sistema de seguridade social e foram recebidas com duras repressões, o que pareceu servir como estopim a uma acumulação de fatores, de negação de direitos e liberdades a descontentamentos socioeconômicos. Nesse quadro, uma geração de jovens se impulsionou a demandas e lutas, mas até o momento sem uma liderança política específica, o que pode representar uma desaprovação a políticos e partidos tradicionais. Para além do fim da violência e do estabelecimento de diálogo entre as várias partes envolvidas, o principal desafio dessa geração é tentar garantir um novo estilo de fazer política, que supere uma histórica cultura política de uso da força como amparo a governos e práticas.
Em meio a tal quadro, sobressai uma questão crucial: a participação de forças policiais e paramilitares como principais agentes da violência desencadeada na Nicarágua, com reflexos em possíveis posicionamentos do Exército enquanto instituição. De acordo com informes de organizações locais e internacionais (essencialmente realizados pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA e pelo Centro Nicaraguense de Direitos Humanos), unidades policiais e grupos paramilitares estariam envolvidos em mais de 300 mortes e pelos menos 400 detenções, além de deixar cerca de 2000 feridos. A conjuntura vem sendo condenada extrarregionalmente, com denúncias de graves violações aos direitos humanos e pedidos de contenção às ações das forças de segurança do Estado e dissolução dos agrupamentos armados que atuam a favor do mesmo, tal como apelado pela Anistia Internacional.
Para a reflexão em torno do caso, alguns subsídios e marcos legais podem servir como amparo. A Constituição do país certifica o Presidente da República como comandante superior das Forças Armadas e de Segurança (também presente nas leis específicas da Polícia e do Exército: Lei 872 e Lei 181 respectivamente), o que, em última instância, conduziria à indicação de Daniel Ortega como responsável pela atuação de tais instituições. Aprofundando a questão especificamente ao redor da Polícia, e levando em consideração protocolos internacionais de atuação, podemos considerar que as unidades policiais nicaraguenses não demonstram estarem aptas a situações de manifestações, utilizando a força de maneira desproporcional e com medidas notadamente lesivas, opostas a um padrão de prevenção e controle da ordem quando esta é alterada. Ademais, a existência de grupos parapoliciais (paramilitares se ponderarmos seus equipamentos e modos de agir) configura mais um atenuante na fragilidade institucional do atual governo da Nicarágua, contrariando o texto constitucional que não permite a existência de outros corpos armados além do Exército e Polícia (artigo 95).
Por mais que não tenha atuado no presente âmbito, o Exército está em um plano complexo, porém, deveria se posicionar e reprovar o uso da violência e da repressão nas manifestações. A Constituição nicaraguense prevê o uso em âmbito de segurança interna somente em casos excepcionais, sob ordem do Presidente da República. Se os corpos policiais e paramilitares são o alicerce de contenção do regime Ortega, é improvável que o mesmo convoque o desarmamento de seu braço armado. Ao participarem do conflito, se converteriam em uma força política que não corresponde à sua natureza constitucional (caráter profissional, apartidário, apolítico, obediente e não deliberante). Por outro lado, tem-se o desafio de sobreviver institucionalmente nesse cenário polarizado, sem sofrer influências externas. Estariam em jogo interesses corporativos e a legitimidade perante a sociedade.
Ao não se posicionar, o Exército manteria certa cumplicidade com o cenário, zelando por benefícios com o governo, como aqueles vinculados à previdência social e aposentadorias. Ao contrário, caso desaprove publicamente a repressão governista, provavelmente receberia apoio local e da comunidade internacional; todavia, tal desaprovação não significaria uma intervenção direta no contexto de crise.
A complexidade da situação se acentua progressivamente com o igualmente gradual isolamento do governo de Ortega. A aprovação por parte da OEA da criação de uma comissão especial para integrar as tentativas de diálogo e buscar soluções pacíficas coloca mais um dilema a Ortega. A recusa à ajuda (que parece ser a tendência, uma vez que representantes do governo seguem acusando medidas internacionais como “ingerência” e “intervencionismo”) arriscaria a ampliação do distanciamento nicaraguense, além de fomentar inúmeras sanções de caráter bilateral e de organismos multilaterais (econômicas, diplomáticas e de assistência militar, por exemplo).
Por fim, uma última questão deve ser ponderada: os possíveis “legados” de tal período de crise. Um hipotético fim dos conflitos faria com que o país defrontasse uma instituição policial desprestigiada (e também o Exército, a depender de suas posturas) e a incerteza quanto ao destino dos grupos armados atuantes, que podem direcionar suas ações à delinquência e crimes comuns. Como julgar os crimes cometidos durante as manifestações e como realizar as reconversões necessárias na condução da agenda de Segurança serão desafios inevitáveis à Nicarágua.
O início do recente mandato de Daniel Ortega em 2017, em seus mais de dez anos consecutivos no poder, já trazia objeções pendentes aos setores de Defesa e Segurança, especialmente com o crescente processo de militarização regional. Hoje, os obstáculos são ainda maiores, com o temor e insegurança por parte da população, imagináveis questões migratórias (com fluxos existentes principalmente para a Costa Rica e majoritariamente de maneira ilegal, acentuando problemas nas fronteiras) e complicadas decisões a serem tomadas nos âmbitos policial e castrense. A mencionada histórica cultura política de uso da força e violência como amparo às demandas governamentais e como mediação é instrumento recorrente para a compreensão da realidade nicaraguense, porém, cada vez mais, a superação de tal traço e o desenvolvimento de um novo modo de ação política revela-se uma necessidade premente.
Fred Maciel é doutor em História pela Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (FCHS – UNESP/campus Franca). Atualmente desenvolve pesquisa de pós-doutorado junto ao Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar Sociedade e Desenvolvimento, Universidade Estadual do Paraná (UNESPAR/campus Campo Mourão).
Imagem: Militar dos EUA observa o vulcão San Cristobal, na Nicarágua. Por: Joint Task Force Bravo.