Gabriela Aparecida de Oliveira*
No ano de 2020, a Declaração e Plataforma de Ação de Pequim, apresentadas durante a 4ª Conferência Mundial sobre Mulheres das Nações Unidas, completou 25 anos. Por meio deste instrumento, mais de 180 países, dentre eles o Brasil, decidiram – embora não por unanimidade – promover ações específicas para a garantia dos direitos das mulheres. A Declaração previa mudanças estruturais para a plena participação de mulheres na política e na economia dos países, autonomia feminina sobre decisões sexuais e reprodutivas e eliminação dos estereótipos de gênero na mídia (UN WOMEN, 2020). Assim, trata-se de um marco normativo no que se refere aos direitos das mulheres e, portanto, um balanço sobre seus efeitos é necessário.
Durante reunião virtual para celebrar o aniversário do documento, o secretário-geral Antonio Guterres reconheceu que nesses 25 anos nenhum país conseguiu atingir satisfatoriamente os objetivos apresentados na Declaração, identificando avanços, permanências e retrocessos. Embora existam avanços significativos em áreas como o combate à mortalidade materna, aponta-se para a persistência da sub-representação feminina na política e para as altas taxas de violência de gênero e feminicídios, dentre outras continuidades (UN WOMEN, 2020).
Por outro lado, um legado importante deixado pela Plataforma de Pequim foi a criação de um terreno normativo e político para os movimentos feministas pelo mundo. Sobre as feministas latino-americanas, o Fórum de Huairou foi o espaço dentro da Conferência onde elas elaboraram uma crítica autônoma, focada nas diferenças de raça e classe entre as mulheres. Ao não encontrarem muitas opções de oficinas em que pudessem se expressar em seu idioma e partilhar códigos culturais em comum, elas criaram a “Tenda da América Latina e Caribe” ou “Tenda da Diversidade”. Ela significou uma resistência política e cultural frente à lógica de negociação com o poder oficial internacional levado à cabo pela Conferência (VARGAS & CUEVAS, 2020). Montada na cidade de Huairou, a 60 km de Pequim, a Tenda ofereceu debates diários sobre temas como a diversidade, a pobreza, a juventude, a cidadania, a sexualidade e a violência. Participaram mulheres diversas, organizações e delegações de países: das saarauís à UNICEF, da Anistia Internacional aos grupos indígenas mixes e mapuches, do Instituto da Mulher da Espanha às espanholas que se opunham ao Instituto, etc. (GARRIDO, 2020).
Os avanços do movimento nos anos 2000
Para além de uma conjuntura internacional favorável, a Onda Rosa – período caracterizado pela maior participação do Estado na elaboração de políticas públicas e redução de desigualdades por parte de governos de esquerda e de centro-esquerda – também contribuiu para uma crítica feminista latino-americana própria. Entre o final da década de 1990 e a metade da década de 2010, houve um considerável avanço normativo para a igualdade de gênero na região. Embora leis para a legalização do aborto e do casamento entre pessoas do mesmo sexo e o reconhecimento do direito à identidade de gênero fossem raras, países como o Uruguai e a Argentina conseguiram operar mudanças legislativas; enquanto outros, como o Brasil, Chile, Colômbia e México, alcançaram mudanças através de decisões judiciais (BALLESTRIN, 2020; BIROLI & CAMINOTTI, 2020).
O feminismo autônomo da América Latina de diversos espaços e grupos de mulheres. Dentre eles estão os coletivos de arte com agendas feministas, as mulheres LGBTQ+, os feminismos populares, os feminismos comunitários boliviano e guatemalteco, o feminismo autônomo, o feminismo negro e/ou antirracista, o feminismo de(s)colonial, a teologia da libertação feminista, o ecofeminismo e os movimentos sociais em defesa do território e da Mãe Terra liderados por mulheres negras, indígenas e camponesas (LERMA, 2019). Essas expressões do feminismo têm sido identificados como a principal fonte de renovação teórica, intervenção social, atuação política e resistência democrática tanto na América Latina quanto no mundo (BALLESTRIN, 2020).
De uma maneira geral, o feminismo latino-americano caracteriza-se por uma crítica à modernidade e por uma quebra epistêmica com o conhecimento ocidental. O seu enfoque é questionar a complexa hierarquia de dominação que está entrelaçada à “matriz colonial de poder” e a existência de uma “mulher universal”, tal como postulado pelo feminismo moderno liberal (ocidental, hegemônico, capitalista, burguês e branco), que atuou ativamente para a criação da Plataforma de Pequim. O conceito de “mulher universal” não daria conta de refletir sobre a complexidade das vivências de mulheres sob um sistema colonial, não atendendo as suas demandas específicas (GOETZ, 2020).
Retrocessos e desafios contemporâneos
Atualmente, o movimento feminista, tanto em sua expressão regional quanto global, tem sido ameaçado por uma onda de retrocessos denominada “backlash” ou “backsliding”, que estaria diretamente relacionada ao fenômeno da desdemocratização (UN WOMEN, 2020). Sobre isso, a ONU lançou em junho de 2020 um documento de reflexão em que denunciava o estarrecedor aumento de movimentos contrários ao ativismo pelos direitos das mulheres e o subsequente retrocesso nesses direitos. Grupos religiosos e atores conservadores, populistas de direita e nacionalistas, grupos pelos direitos dos homens e movimentos “anti-ideologia de gênero” têm identificado a pauta feminista como uma ameaça à família tradicional e heterossexual, às crianças, à ordem natural e aos valores nacionais. Tais atores teriam ganhado espaço a partir da crise econômica de 2008 e a chegada de governos e/ou partidos populistas ao poder nos mais diversos países. Explicitamente hostis à agenda de gênero, esses governos têm agido ativamente para o backlash nas políticas de igualdade de gênero, previamente firmadas. Segundo levantamento da Organização, quase um terço da população mundial encontra-se em países com reversões democráticas, particularmente em regiões com altos níveis de democratização: Europa Ocidental, América do Norte, América Latina, Leste Europeu e Ásia Central (ROGGEBAND & KRIZSÁN, 2020).
Na América Latina, protestos na Colômbia, no México e no Peru, ocorridos em 2016, sinalizavam uma dinâmica reacionária na região: organizações conservadoras mobilizaram milhares de pessoas e tomaram as ruas contra o casamento entre pessoas do mesmo sexo e uma educação sexual nas escolas. Eram atores seculares e, em sua maioria, religiosos, que invocavam o perigo da “ideologia de gênero” para a família em sua concepção tradicional e heteronormativa. Mais recentemente, o gênero tem sido central nas disputas políticas. Podemos dizer que a defesa dos direitos de mulheres e de pessoas LGBTQ+ têm representado um ponto de divergência entre partidos e seus candidatos, sendo que a oposição ao gênero é particularmente aflorada em movimentos de extrema-direita. Em 2018, as eleições do Brasil e da Costa Rica mostraram que divergências acerca de pautas de gênero e sexualidade podem acirrar disputas e dividir o eleitorado (BIROLI & CAMINOTTI, 2020).
Embora o feminismo tenha conseguido avançar em suas pautas nas últimas décadas, o backlash não deve ser interpretado como uma resposta à essa dinâmica. Para Diniz e Carino (2019), o termo “backlash” é com frequência usado equivocadamente, enfatizando que a ofensiva contra as mulheres e as feministas no campo da política é uma consequência do que elas fizeram. Portanto, não há backlash provocado pelo feminismo, mas a persistência do uso do poder masculino para sustentar o status quo.
Perante uma expressiva articulação global misógina e antifeminista, nos parece inevitável “retornar” à Pequim. A Conferência foi uma das responsáveis pela popularização do movimento feminista e pela adesão das novas gerações. Para as latino-americanas, Pequim significou a primeira demonstração de força de um movimento feminista regional perante as Nações Unidas. Embora o cumprimento da Plataforma de Ação tenha sido limitado, o processo de sua elaboração fez com que as pessoas envolvidas se sensibilizassem com a realidade de exclusão de mulheres, à nível local, regional e global (VARGAS & CUEVAS, 2020). Frente à diversidade de mulheres e feminismos, simbolizada pelo Fórum de Huairou, um dos desafios do movimento feminista tem sido a questão do pluralismo, decorrente do alargamento de sua luta: como elaborar estratégias feministas coerentes tanto ao contexto global quanto ao regional e, assim, enfrentar a ofensiva antifeminista?
Referências bibliográficas
BALLESTRIN, Luciana. El Feminismo De (s) colonial como Feminismo Subalterno Latinoamericano. Revista Estudos Feministas, v. 28, n. 3, 2020.
BIROLI, Flávia; CAMINOTTI, Mariana. The conservative backlash against gender in Latin America. Politics & Gender, v. 16, n. 1, 2020.
DINIZ, Debora; CARINO, Giselle. Não há ‘backlash’ provocado pelo feminismo. El País, 09 de março de 2019. Opinião. Disponível em: < https://brasil.elpais.com/brasil/2019/03/07/opinion/1551994753_797742.html>. Acesso em: 03 de março de 2021.
GARRIDO, Lucy. A 25 años de Beijing. El hexagrama de la continuidad. Revista Bravas, n. 11, 2020. Disponível em: < https://www.revistabravas.org/beijing-lucy-garrido>. Acesso em: 11 de fevereiro de 2021.
GOETZ, Anne Marie. The new competition in multilateral norm-setting: Transnational feminists & the illiberal backlash. Daedalus, v. 149, n. 1, p. 160-179, 2020.
LERMA, Betty Ruth Lozano. Latin American and Caribbean Feminisms. In: ACOSTA, Alberto et. al. Pluriverse: A Post-Development Dictionary. Nova Déli, Índia: Tulika Books, 2019. P. 228-231.
ROGGEBAND, Conny; KRIZSÁN, Andrea. Democratic backsliding and the Backlash against women’s rights: Understanding the current challenges for feminist politics. UN Women, 2020.
UN WOMEN. On the 25th anniversary of landmark Beijing Declaration on women’s rights, UN Women calls for accelerating its unfinished business. Disponível em: < https://www.unwomen.org/en/news/stories/2020/9/press-release-25th-anniversary-of-the-beijing-declaration-on-womens-rights>. Acesso em: 26 de janeiro de 2021.
VARGAS, Virginia; CUEVAS, Daptnhe. A veinticinco años de la IV Conferencia Mundial sobre la Mujer en Beijing. Montevidéu, Uruguai: Cotidiano Mujer, 2020.
*Gabriela Aparecida de Oliveira é mestranda no PPGRI San Tiago Dantas (Unesp, Unicamp, PUC-SP) e pesquisadora do Gedes.
Imagem: ONU Mujeres – América Latina y el Caribe.