Laís Gomes Sartori*
Maria Eduarda Kobayashi Rossi **
No dia 08 de março é celebrado o Dia Internacional da Mulher. A criação desta data foi oficializada em 1975, pela Organização das Nações Unidas (ONU), e as explicações acerca de sua origem comumente afirmam que se trata de uma homenagem às 129 mulheres operárias que, no ano de 1857, foram mortas em um incêndio criminoso em uma fábrica têxtil localizada na cidade de Nova Iorque. Para além desta história, é importante ressaltar a origem desta data em lutas anteriores, notadamente àquelas lideradas por feministas socialistas como a alemã Clara Zetkin (1857-1933) e a russa Alexandra Kollontai (1872-1952), cujas ações contestavam o funcionamento do capitalismo industrial emergente, bem como o preconceito cotidiano enfrentado por mulheres tanto nos locais de trabalho, quanto no ambiente doméstico.
Os corpos queimados em Nova Iorque contam a história de uma enorme quantidade de vidas que trabalhavam de forma precária para sustentar um sistema capitalista que, por sua vez, precisa da destruição da vida humana, bem como da natureza, para sobreviver e se fortalecer (ALLIEZ; LAZZARATO, 2021; FEDERICI, 2019). Em reação, a conscientização das mulheres incita à luta por mudanças não apenas nas suas formas de trabalho, como também na forma de organização social. Surgem os movimentos organizados em prol do sufrágio universal, da igualdade salarial, e de diversas outras pautas, como os direitos sexuais e reprodutivos[1].
Para além de um dia de homenagem às mulheres e de reflexão acerca de suas lutas por direitos e oportunidades sociais, esta data encoraja inúmeras mobilizações feministas. Muitas vezes essas mobilizações estão alinhadas à luta antirracista, à busca pelo fortalecimento democrático com mais representatividade na política, bem como aos esforços para a preservação do meio ambiente e para o desenvolvimento sustentável – como ressaltado pela ONU na campanha do 8M de 2022. Além disso, algumas pautas históricas continuam presentes, como a busca contínua por maior equidade de gênero e pela garantia e proteção de direitos . Este texto traz um panorama do contexto e das lutas recentes na América Latina, ressaltando o tema dos direitos sexuais e reprodutivos.
Direitos reprodutivos como direitos humanos
De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), ocorrem cerca de 73 milhões de abortos induzidos no mundo a cada ano, muitos deles realizados por mulheres e meninas que sofreram violações sexuais. Os procedimentos clandestinos para a realização do aborto podem causar sérios riscos à saúde das gestantes, levando a diversas mortes que, muitas vezes, são subnotificadas e impedem a efetivação de ações pela salvaguarda da saúde e bem-estar de tantas vidas. Um exemplo disso ocorre no Brasil. De acordo com a Pesquisa Nacional de Aborto realizada em 2016, “cerca de metade das mulheres que abortam precisam ser internadas” (DINIZ et al, 2016). Dados mais recentes afirmam que no ano de 2019, o SUS contabilizou aproximadamente 195 mil internações por aborto, sejam eles espontâneos ou consentidos.
Vale mencionar que os temas como aborto e saúde sexual das mulheres são, em muitos países, negligenciados. Violências como o estupro e o feminicídio são apenas a ponta de um iceberg de uma cultura patriarcal que esconde diversas violações estruturais e culturais, como assédios e preconceitos que, consequentemente, privam as mulheres do controle de seus corpos. Para lutar contra isso, as primeiras movimentações para a garantia dos direitos das mulheres ocuparam espaço nos sistemas internacional e nacional, principalmente, a partir da década de 1990.
A associação dos direitos reprodutivos aos direitos humanos é fruto da era contemporânea e das diversas frentes de lutas feministas ao redor do globo, que passaram a discutir a sexualidade e a reprodução humana de maneira ampla, contestando os padrões socioculturais vigentes na época. A Conferência Mundial de Direitos Humanos, de 1993, declarou, pela primeira vez, que os direitos das mulheres e meninas eram inalienáveis e compreendiam parte integral e indivisível dos direitos humanos universais. Essa discussão foi o pontapé inicial para que as reflexões acerca do direito reprodutivo tomassem forma e ganhassem espaço em meio ao discurso internacional. Posteriormente, durante a Conferência Internacional de População e Desenvolvimento (CIPD), em 1994, que se conceituou o termo “direito reprodutivo”[2] como conhecemos hoje.
Em relação ao cenário americano, é possível observar o posicionamento do Sistema Interamericano de Direitos Humanos (SIDH), composto por dois órgãos, a Comissão e a Corte. O primeiro é responsável por assegurar e observar o cumprimento dos direitos humanos no continente americano realizando recomendações aos Estados, por exemplo. Já o segundo é um órgão judicial autônomo que visa salvaguardar as exigências da Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH) e julgar possíveis violações. Em alguns relatórios temáticos[3], a CIDH destacou a importância do direito à saúde reprodutiva às mulheres, principalmente aquelas em situação de vulnerabilidade social, reconhecendo que o aborto inseguro viola esse direito, a integridade e a privacidade femininas. Além disso, a Comissão também ressaltou que a criminalização do aborto afeta negativamente diversas esferas da realidade dos corpos que têm a capacidade de gestar, sendo obrigação dos Estados prezarem por serviços de assistência eficientes em casos de abortos inseguros. A Corte IDH já admitiu casos envolvendo a questão do aborto, o último ficou conhecido como o Caso Manuela e familiares vs. El Salvador. Em dezembro de 2021[4], o Estado salvadorenho foi condenado internacionalmente pela criminalização de uma jovem que buscava assistência de saúde em meio a uma emergência obstétrica – a jovem havia sofrido um aborto espontâneo, porém a médica que atendeu Manuela denunciou-a por ter abortado voluntariamente, o que gerou uma condenação da 30 anos de prisão por homicídio qualificado.
É importante ressaltar, ainda, que o debate e o reconhecimento desses direitos em plataformas e conferências não significa, necessariamente, que eles serão aplicados na prática, em políticas públicas, leis ou ações governamentais. O percurso para a conquista dessas questões é longo e desafiador, e inúmeras mulheres sofrem diariamente devido à negligência de órgãos nacionais e internacionais, principalmente quando o assunto envolve o aborto e a autonomia do corpo feminino.
Certamente, há inúmeros casos como o de Manuela, alguns foram julgados em cortes internacionais, já outros, a maioria, são silenciados e provocam diariamente violações aos direitos reprodutivos femininos, destruindo a realidade de milhares de mulheres ao redor do mundo. Assim, ainda que as comissões internacionais auxiliem na ampliação de um ativismo em prol da garantia dos direitos das mulheres, a América Latina continua sendo uma região com altos índices de abusos e violações (SEGATO, 2016; CEPAL, 2021). Diante deste cenário, os movimentos sociais e feministas continuam vivos e em transformação, (re)inventando-se e fortalecendo-se pela arte[5], e pela (re)ocupação das ruas, pressionando por políticas públicas que promovam justiça social.
Mudanças recentes e mobilizações em 2022
Neste ano, diversas ações pelo Dia Internacional da Mulher (8M) ocorrem na América Latina. No Brasil, muitas ativistas lutam contra a violência sexista, fome, desemprego, fragilidade democrática e insatisfação política, com destaque para os movimentos liderados pela Marcha Mundial das Mulheres. No México, as movimentações coletivas buscam por ações concretas em favor dos direitos das mulheres e o fim da repressão dos movimentos feministas no país. Na Argentina, que alcançou a legalização do aborto no final de 2020, as mobilizações já começaram em 2 de março, em protestos contra o abuso grupal de uma jovem em um carro. As atividades foram lideradas pelo coletivo feminista Ni una a menos.
Em outros países da região, os avanços são mais lentos e custosos como, por exemplo, no Chile, onde o aborto era proibido em qualquer circunstância até meados de 2017. Após essa data, foi permitido apenas em casos de estupro, risco de vida da mulher e má formação do feto. Em 2021 houve iniciativas para a descriminalização do aborto na Câmara dos Deputados chilena, no entanto, o processo foi arquivado no fim do ano. Para o 8 de março de 2022, em meio a um duro processo constitucional, os movimentos feministas chilenos estão nas ruas com o objetivo de conter a ascensão da extrema direita no país.
De modo semelhante, no Equador, a situação enfrentada pelas feministas é desafiadora: apenas em janeiro deste ano a Assembleia Nacional descriminalizou o aborto em casos de estupro. Esse avanço, entretanto, ainda pode ser vetado pelo presidente do país. Assim, as ações das mulheres equatorianas para o 8 de março estão centralizadas, principalmente, na luta por uma lei mais abrangente e justa para a descriminalização do aborto.
É da Colômbia que vem os ventos mais recentes de mudança. No país, o aborto até a 24ª semana de gestação foi descriminalizado em 21 de fevereiro de 2022 e, ademais, foi reafirmada uma lei de 2006 que permitia o aborto legal em casos de estupro, riscos à saúde da gestante ou má formação fetal. O processo analisado na Corte Constitucional Colombiana contou com 5 votos favoráveis e 4 contrários. Além disso, as atividades foram protagonizadas pelos movimentos feministas, que clamaram por políticas públicas capazes de auxiliar a saúde das mulheres, oferecendo métodos contraceptivos, atendimentos médicos, acesso à informação e aos serviços de aborto seguro, bem como à educação sexual. As ações feministas na América Latina pretendem juntar forças para atuar ativamente em tempos tão turbulentos, em que as destruições causadas pela pandemia, bem como ao aumento das violações, instabilidades políticas e a contrarresposta conservadora ameaçam diariamente a vida das meninas e mulheres latino-americanas.
* Laís Gomes Sartori é graduanda em Relações Internacionais pela UNESP, bolsista FAPESP. Pesquisadora do GEDES.
** Maria Eduarda Kobayashi Rossi é graduanda em Relações Internacionais pela UNESP, bolsista FAPESP. Pesquisadora do GEDES.
Imagem: Ativistas participam de marcha contra a violência de gênero no Equador. UN Women/Johis Alarcon.
Notas:
[1]De acordo com o Instituto Nacional da Saúde da Mulher, o direito reprodutivo faz referência ao direito das pessoas escolherem livremente “se querem ou não ter filhos, quantos filhos vão ter e em que momento da vida”. As políticas para a promoção deste direito também devem garantir informações sobre os métodos contraceptivos, educação sexual e planejamento familiar. Já os direitos sexuais, referem-se ao “Direito de viver e expressar livremente a sexualidade sem violência, discriminações e imposições e com respeito pleno pelo corpo do(a) parceiro(a)” bem como “direito ao sexo seguro para prevenção da gravidez indesejada e de DST/HIV/AIDS. Direito a serviços de saúde que garantam privacidade, sigilo e atendimento de qualidade e sem discriminação”. Para mais informações, acesse: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/direitos_sexuais_reprodutivos_metodos_anticoncepcionais.pdf.
[2]Os direitos reprodutivos “baseiam-se no reconhecimento do direito básico de todos os casais e indivíduos decidirem livre e responsavelmente sobre o número, espaçamento e quando devem ter os seus filhos e de terem acesso à informação sobre a forma como fazê-lo, bem como o direito de beneficiarem de saúde sexual e reprodutiva do mais alto nível. Também incluem o direito de todos tomarem decisões sobre a reprodução sem discriminação, coerção nem violência.” (CIPD, 1995)
[3]https://www.acnur.org/fileadmin/Documentos/BDL/2015/10240.pdf
https://www.acnur.org/fileadmin/Documentos/BDL/2011/7512.pdf
[4]El Salvador é um dos poucos países americanos que ainda penaliza o aborto em qualquer situação.
[5]É importante salientar, ainda que em nota complementar, que a arte (expressa por meio de cartazes, danças, teatros e muitas outras formas) é um elemento constante nos coletivos e ações feministas. Um exemplo disso é o movimento One Billion Rising, ativo não apenas na América Latina, como também em diversos países do globo.
Referências
ANIS – Instituto de Bioética. Aborto: por que precisamos descriminalizar? Argumentos apresentados ao Supremo Tribunal Federal na Audiência Pública da ADPF 442. Brasília. Letras Livres. 2019. Disponível em: <https://anis.org.br/wp-content/uploads/2020/07/RELATORIO-ABORTO-PT.pdf>. Acesso em 6 de março de 2022.
ALLIEZ, Éric; LAZZARATO, Maurizio. Guerras e Capital. Editora Ubu. 2021.
DINIZ, Débora; MEDEIROS, Marcelo; MADEIRO, Alberto. Pesquisa Nacional de Aborto 2016. Ciência & Saúde Coletiva [online]. 2017, v. 22, n. 2, pp. 653-660. Disponível em: <https://doi.org/10.1590/1413-81232017222.23812016>. ISSN 1678-4561. Acessado 5 Março 2022.
FEDERICI, Silvia. Calibã e a bruxa. Editora Elefante. São Paulo. 2019.
SEGATO, Rita Laura. La guerra contra las mujeres. Traficantes de sueños, 2016.