Gabriela Aparecida de Oliveira *
Maria Eduarda Kobayashi Rossi **
No artigo “Dia Internacional para a Eliminação da Violência contra a Mulher: avanços e retrocessos na América Latina e no Brasil sob a pandemia” oferecemos um panorama sobre os efeitos da criação do Dia Internacional para a Eliminação da Violência contra a Mulher sobre as vidas de mulheres latino-americanas e brasileiras. Embora haja avanços significativos, principalmente no que se refere a uma maior visibilidade das desigualdades de gênero e ao estímulo a ações de prevenção e combate às violências contra mulheres e meninas, não podemos perder de vista o fato de que a América Latina continua a ser a região mais perigosa para elas fora de uma zona de guerra. E por que isso ocorre?
De acordo com autoras feministas como Rita Segato (2014, 2016), os corpos das mulheres são espaços onde as múltiplas violências foram naturalizadas desde a colonização. A cultura patriarcal tem disseminado ações de enorme crueldade, que se fazem presentes até hoje. Nas palavras de Segato: “O acesso sexual está contaminado pelo universo do dano e da crueldade — não apenas apropriação dos corpos, sua anexação enquanto territórios, mas sua destruição. Como os danos, conquista, roubo e estupro estão associados, eles permanecem, portanto, como ideias correlatas ao longo do período de instalação das repúblicas e até a atualidade[1]” (SEGATO, 2016, p. 21, tradução nossa).
No atual contexto de pandemia e ascensão de governos mais autoritários na região, a violência contra mulheres ganha requintes de crueldade. Desamparadas pelo Estado, elas sofrem uma sobrecarga com os serviços domésticos e de cuidado ⎼ aderindo a jornadas duplas ou triplas de trabalho, e ficando mais expostas à violência doméstica por passarem mais tempo em casa. Observa-se, portanto, uma forte relação entre a perpetuação da violência e exploração dos corpos feminilizados ⎼ principalmente de mulheres não brancas e periféricas, como ressaltado por Françoise Versés (2021) e, na realidade brasileira, por autoras como Sueli Carneiro (2011), Lélia Gonzalez (2020) ⎼ e a lógica capitalista de histórica acumulação de capital.
Como ressaltado por Silvia Federici (2019), o trabalho não-remunerado ou “trabalho reprodutivo” refere-se a uma série de atividades relacionadas à educação, ao cuidado e à reprodução biológica, os quais são imprescindíveis para a reprodução da força de trabalho que mantém as engrenagens do capitalismo funcionando.
A lógica neoliberal também cria seu próprio discurso acerca do trabalho feminino, salientando que a solução para libertar-se da opressão está no abandono das tediosas tarefas domésticas e na inserção das mulheres no mercado de trabalho. Entretanto, estes discursos conhecidos como “feminismo liberal” escondem o fato de que a sua “libertação” só pode acontecer mediante a exploração da mão-de-obra feminina não-branca, e muitas vezes migrante, que passa a desempenhar essas tarefas indesejadas (HOOKS, 2020). Em contextos de crise socioeconômica e desamparo do Estado, as mulheres não-brancas são as mais afetadas, pois devem ocupar-se de atividades reprodutivas e de cuidado que, em outros momentos, poderiam ser desempenhadas pelo próprio Estado por meio de políticas públicas. Como exemplo, podemos citar as políticas públicas para a concessão de apoios financeiros, além do oferecimento e melhoria de serviços públicos de cuidado, como asilos para idosos, creches e escolas integrais para crianças (ILO, 2018). No que se refere às questões reprodutivas, as políticas oferecidas pelo Estado contam com a oferta de anticoncepcionais, capacitação dos profissionais de saúde para assistência em planejamento familiar, programas de saúde e prevenção nas escolas, bem como a garantia de uma boa saúde e atendimento (BRASIL, 2005).
Segundo a Oxfam Brasil (2020), durante a pandemia, o desemprego atingiu principalmente mulheres negras (babás, empregadas domésticas, motoristas, profissionais da saúde) que não tiveram a opção de ficar em casa e seguiram trabalhando sob condições insalubres e com alto risco de contaminação. Não à toa, a primeira vítima do coronavírus detectada no Brasil foi uma mulher negra de 57 anos e empregada doméstica. A ONU Mulheres (2021) observa que, na região Norte do Brasil, as mulheres indígenas foram as mais impactadas, pois “são elas que acessam políticas públicas, vão à cidade e se expõem ao cuidar de vários assuntos da família, tendo que sair das aldeias”.
No que se refere à maior exposição à violência durante a pandemia, os índices de agressões, estupros e feminicídios aumentaram no Brasil e ao redor do mundo. Em 2019, três em cada dez mulheres foram violentadas e 1.326 feminicídios foram registrados no país (um aumento de 7,1% em comparação aos índices de 2018), além de um estupro a cada oito minutos. Em 2020, o número de feminicídios teve um pequeno acréscimo, o que não significa que seja um cenário menos alarmante: foram 1.350 casos que correspondem a uma mulher morta a cada seis horas.
Além de o fator étnico-racial ter uma importante influência sobre esses índices (as mulheres negras e indígenas são as mais expostas à violência), destacamos também a questão das mulheres transexuais e travestis. De acordo com a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), aproximadamente 70% da população trans do país não conseguiu acesso às políticas emergenciais do Estado, por conta da sua situação de vulnerabilidade social que inclui a falta de documentos e acesso à moradia e serviços básicos de saúde e educação. Muitas mulheres trans continuaram se prostituindo para manter sua renda, ficando mais expostas ao vírus. O isolamento social tampouco evitou violências, pois é dentro de suas casas – que deveriam ser, a princípio, o lugar mais seguro – que muitas mulheres são agredidas e mortas. No caso das mulheres trans, houve um acréscimo de 43% de assassinatos no ano de início da pandemia. Essa situação evidencia como a vulnerabilidade socioeconômica de mulheres está profundamente relacionada à violência sofrida por elas.
Realidades latino-americanas e perspectivas futuras
Perante a ineficiência dos Estados latino-americanos em promover boas condições de vida para a sua população (sobretudo feminina, negra, indígena e LGBTQIA+) em um contexto de crise econômica e pandemia, movimentos feministas da Argentina, Brasil, Chile, Uruguai, Venezuela, Colômbia, Equador, Bolívia e México têm resistido e se organizado para cobrar ações dos governos, além de recorrer a redes de apoio comunitário. Na realidade, tratam-se de demandas históricas que se tornaram ainda mais urgentes, senão, inadiáveis.
Nas manifestações do Dia Internacional da Mulher (8 de Março de 2021), as argentinas pediam a visibilização e a elaboração de políticas públicas para diminuir a superexploração das mulheres; o direito a uma lei trabalhista para travestis e transexuais e uma reforma judicial feminista contra a violência. Em complemento, sob o lema “A pandemia não é desculpa”, as uruguaias tomaram as ruas, mostrando o protagonismo das mulheres na mitigação da pobreza na pandemia. As chamadas “ollas populares” (“panelas populares”), refeitórios populares coletivos, atenderam milhares de pessoas em situação de vulnerabilidade no país.
Também se destacam movimentações no Chile, onde mulheres percorreram as ruas de Santiago em um movimento pela construção coletiva de uma nova constituinte, buscando enterrar a constituição neoliberal, autoritária e excludente da ditadura de Augusto Pinochet. Uma das características da nova constituição seria a “criação de um governo feminista que combata a violência de gênero e garanta o direito de cada mulher decidir sobre o seu corpo”. Nos dias atuais, as perspectivas são positivas para o Chile, onde o segundo turno das eleições presidenciais, realizado no dia 19 de dezembro, foi disputado por José Antonio Kast, um candidato pinochetista e ultraliberal (o conhecido “Bolsonaro chileno”), e Gabriel Boric, representante da esquerda política nacional, terminando com a vitória desse último. A presença da extrema direita no país aparenta ser uma reação conservadora (ou “backlash”) a uma constituição que, dentre outras coisas, pretende incorporar uma perspectiva de gênero e objetivos feministas que podem abalar as estruturas vigentes. A conquista da esquerda, porém, traz esperança para outras eleições presidenciais, como a que ocorrerá no Brasil em 2022.
Tanto no Chile, quanto no Brasil e outros lugares do mundo, presenciamos a precarização das vidas de milhões de mulheres que continuam resistindo dentro de um sistema patriarcal, machista, misógino, racista e que ainda cultiva uma série de preconceitos contra a população LGBTQIA. Portanto, o Dia Internacional para a Eliminação da Violência Contra a Mulher nos suscita reflexões que vão além da conscientização da sociedade e operacionalização de medidas a curto prazo: nos faz questionar toda a dinâmica capitalista que tem o poder de decidir quais corpos são dignos de viver e quais são matáveis (MBEMBE, 2016; BUTLER, 2020), e vislumbrar alternativas dentro e fora do Estado.
* Mestranda em Paz, Defesa e Segurança Internacional pelo Programa de Pós-Graduação San Tiago Dantas (UNESP/UNICAMP/PUC-SP) e pesquisadora do IARAS – Núcleo de Estudos de Gênero do GEDES.
** Graduanda em Relações Internacionais pela UNESP, bolsista FAPESP (processo 2021/04480-3).
Imagem por: UN WOMEN.
[1] No original “El acceso sexual se ve contaminado por el universo del daño y la crueldad —no solo apropiación de los cuerpos, su anexión a territorios, sino su damnación —. Conquista, rapiña y violación como damnificación se asocian y así permanecen como ideas correlativas atra- vesando el periodo de la instalación de las repúblicas y hasta el presente” (SEGATO, 2016, p. 21).
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