Getúlio Alves de Almeida Neto: Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP, PUC-SP) e bolsista CAPES.
E-mail: g.alvesneto3@gmail.com
Danielle Amaral Makio: Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP, PUC-SP).
E-mail: daniellemakio@gmail.com
Desde março de 2014, o Leste Ucraniano é palco de um conflito armado entre movimentos separatistas pró-Rússia que reivindicam a independência da República Popular de Donetsk e da República Popular de Lugansk, e o governo de Kiev. Também conhecido como Guerra em Donbass, região da bacia do rio Donets, o conflito deu-se na esteira das manifestações do Euromaidan em fins de 2013 e concomitante à anexação da Crimeia pela Federação Russa. Em razão de evidências que apontam para o apoio indireto russo aos separatistas, através de suporte logístico e armamentista e do envio de tropas paramilitares à região (SCIUTTO, 2019), Kiev receia que haja uma nova anexação de parte do território ucraniano à Federação Russa, como ocorrera na Crimeia. Fruto desse contexto, o conflito reverbera na imagem russa perante a União Europeia, os Estados Unidos e a outros países do chamado espaço pós-soviético. Sobretudo, a Guerra em Donbass reflete a tensão gerada pela oposição russa ao alargamento do bloco europeu em direção às regiões reivindicas por Moscou como sua zona de influência.
O conflito na Ucrânia é fortemente marcado por questões de cunho étnico, linguístico e cultural que dividem a Ucrânia em dois grandes grupos identitários: enquanto o centro-oeste do país defende a aproximação com Europa, as populações do sul e do leste ucraniano defendem maior influência de Moscou na região, ou até mesmo a futura incorporação à Federação Russa. O caráter identitário e cultural do conflito tem suas raízes no processo de formação das identidades de russos e ucranianos, que remontam ao século IX. A origem comum dos atuais Estados Russo e Ucraniano é tema de controvérsia entre ambos os povos sobre o real nascimento de suas nações. A lacuna criada por esta ausência de consenso, por sua vez, reflete tanto na forma como a Ucrânia é vista pela Rússia quanto na percepção dos nacionais ucranianos sobre a Rússia (ADAM, 2018).
Somente após a dissolução da União Soviética em 1991 houve o surgimento do Estado Ucraniano soberano e independente (a despeito de um breve período após a Revolução de 1917). Como consequência do grande número de russos que permaneceram fora da Rússia após a extinção do bloco soviético, a Ucrânia conta com significativa parcela de russos étnicos na composição de sua população: 17,3% segundo o censo de 2001 (UCRÂNIA, 2001). No entanto, as características demográficas da Ucrânia sofrem de alto grau de regionalização. Nas regiões de Donetsk e Lugansk, a porcentagem de russos étnicos se eleva para 38,2% e 39%, respectivamente. Quanto ao número de russófonos, cerca de 75% da população da região do Donbass são falantes de russo o que contribui para a percepção de pertencimento cultural à Rússia (GIELOW, 2019). À medida em que se observa a demografia ucraniana do Leste em direção a Oeste, menor é a porcentagem da população étnica russa e/ou falante da língua russa (UCRÂNIA, 2001).
Dentro desse contexto de divisão identitária no país, ocorrem as primeiras manifestações políticas em 2004, na chamada Revolução Laranja. Os protestos tiveram início após as alegações de fraude nas eleições a favor de Viktor Yanukovytch, de tendência pró-Rússia. Com o êxito das manifestações, realizaram-se novas eleições sob observação de órgãos nacionais e internacionais, culminando na eleição do governo pró-Ocidente liderado por Viktor Yushchenko (MIELNICZUK, 2014). Yushchenko, no entanto, não conseguiu se reeleger nas eleições de 2010, cujo vencedor foi Yanukovytch.
Apesar de não ser contrário à aproximação com a União Europeia, Yanukovytch era marcadamente mais favorável ao estreitamento das relações com Moscou do que seu antecessor. Nesse contexto, o presidente ucraniano suspendeu, em novembro de 2013, as negociações econômicas com a União Europeia, as quais possibilitariam a possível adesão do país ao bloco europeu no futuro Em resposta à decisão do governo, tiveram início protestos da Praça Maidan, em Kiev, exigindo a renúncia do Presidente Yanukovytch. Os protestos receberam o nome de Euromaidan, em alusão à reivindicação da população local da volta das negociações com Bruxelas, e duraram até fevereiro de 2014, marcados pela repressão policial e escalada da violência, culminando na fuga de Yanukovytch para a Rússia (HENDLER, 2014; SCIUTTO, 2019).
Após a fuga do então governante, instaurou-se um parlamento interino em Kiev. Dentro das medidas apresentadas pelo governo de transição, havia uma proposta de rebaixar o status oficial da língua russa no país. Em resposta a esta perspectiva, uma série de protestos pró-Rússia começaram em cidades do Leste e do Sul da Ucrânia e também na península da Crimeia. No caso da Crimeia, em um referendo realizado em 16 de março de 2014, 90% dos votos expressaram a vontade da população de incorporarem-se à Rússia, processo concluído pelo tratado de adesão da Crimeia à Federação Russa assinado em 18 de março de 2014. Da mesma forma, os protestos nas regiões de Donetsk e Lugansk passaram a ter um caráter separatista e a buscar por maior aproximação e integração com a Rússia.
Ao contrário da Crimeia, no entanto, esses movimentos separatistas evoluíram para um conflito armado com a tomada de prédios públicos em Donetsk e Lugansk e o envio do exército ucraniano e da Guarda Nacional – organização paramilitar que havia sido criada durante os protestos de Maidan para controlar as revoltas no leste do país. A República Popular de Donetsk e a República Popular de Lugansk autodeclararam-se independentes de Kiev em 7 e 14 de abril de 2014, respectivamente. Em 22 de maio do mesmo ano, foi anunciada a criação de uma confederação envolvendo as duas repúblicas, chamada de Nova Rússia (Novorossyia). Um ano depois, os líderes regionais anunciaram o congelamento deste projeto (KOLESNIKOV, 2015).
Apesar de o governo russo negar, constantemente, o envolvimento no conflito, e de não apoiar oficialmente um processo de adesão das repúblicas separatistas à Federação Russa, como foi o caso da Crimeia, há evidência de envolvimento de forças russas na região. Chamados informalmente de “pequenos homens de verde”, soldados que não carregam a insígnia do exército russo, mas que são russófonos e estão armados com arsenal russo ocupam a região do leste da Ucrânia, assim como na Crimeia. Ainda, de acordo com dados da OTAN, do Pentágono e do governo ucraniano à época, estimava-se a presença entre 20 mil e 45 mil soldados russos posicionados na fronteira entre Rússia e Ucrânia. Ademais, a derrubada do voo MH17 da Malaysia Airlines, com origem de Amsterdam e destino a Kuala Lampur, em 17 de julho de 2014, enquanto sobrevoava o território controlado pelos separatistas, é motivo de forte desconfiança quanto à origem do míssil lançado. Segundo relatos, as 283 mortes de passageiros e tripulantes ocasionadas pelo ataque foram causadas pela utilização do sistema de míssil russo BUK-TELAR, corroborando as suspeitas de envolvimento da Rússia na região (SCIUTTO, 2019).
Para além da ingerência militar, um novo decreto assinado por Putin em abril de 2019, que facilita a concessão de cidadania russa a cidadãos das regiões separatistas (GIELOW, 2019), contribui para o receio das autoridades ucranianas de que haja uma nova anexação promovida por Moscou. Tal medida se relaciona, sobretudo, com a nova abordagem de Putin sobre a questão étnico-nacional a partir de seu terceiro mandato em 2012, que inaugura um período conhecido por dar maior ênfase ao estreitamento de laços linguísticos e culturais entre a Rússia e demais países da região. Ao liderar este processo, a Rússia passa, então, a facilitar que populações que vivem fora de seu território possam também ser consideradas russas (BLAKKISRUD, 2016). A medida também pode ser entendida como uma forma de frear os avanços do exército ucraniano contra os separatistas, que poderiam ser reconhecidos pela Rússia como uma agressão aos seus nacionais.
A primeira tentativa de acordo entre as partes foi realizada através do Protocolo de Minsk, concebido na capital da Bielorrússia em setembro de 2014. O acordo, assinado por Ucrânia, Rússia e representantes das repúblicas separatistas da Ucrânia, consistia em doze pontos e previa: 1) um cessar-fogo imediato; 2) a anistia aos rebeldes que se desarmassem; e 3) um corredor para ajuda humanitária e refugiados. No entanto, o acordo fracassou e as hostilidades entre as partes combatentes continuam. Após inúmeras tentativas frustradas de cessar-fogo e de uma série de negociações, em outubro de 2019 estabeleceu-se, sob o âmbito do Fórmula Steinmeier, em alusão ao Presidente Alemão Frank-Walter Steinmeier, uma negociação entre os governos da Ucrânia, Rússia, República Popular de Donetsk, República Popular de Lugansk e da Organização para Segurança e Cooperação na Europa (OSCE). O acordo prevê as eleições livres nos territórios separatistas, observadas pela OSCE, e reincorporação destes ao território ucraniano com status especial. Após o acordo, tropas separatistas começaram a se retirar de algumas cidades ocupadas. Em dezembro do mesmo ano, se reuniram na Normandia, França, o atual presidente ucraniano Volodymyr Zelensk, Vladimir Putin, Emmanuel Macron e Angela Merkel, para que fosse negociada a troca de prisioneiros entre as partes e para que fosse reiterada a necessidade da realização de eleições e negociações futuras.
O conflito no Leste Ucraniano afeta cerca de 5,2 milhões de pessoas. Desse total, estima-se que 3,5 milhões necessitarão de algum tipo de ajuda humanitária para sobreviver (OCHA, 2020a). Em 2015, apenas um ano após o início do conflito em Donbass, 925.500 pessoas haviam fugido para países vizinhos (OCHA, 2015). Já em relação ao número dos deslocados internos, os registros oficiais em 2020 indicam ao menos 1,4 milhão de pessoas. Segundo o último relatório do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH), divulgado em 12 de março de 2020, o conflito já causou a morte de 13 mil a 13,2 mil pessoas. Estima-se que este total seja composto pela morte de ao menos 3,350 mil civis, 4,1 mil soldados ucranianos, e 5,650 mil de outros grupos armados. No entanto, o mesmo relatório aponta para uma forte tendência de queda no número de vítimas. Em 2019, registrou-se a morte de 27 civis, 40,6% a menos que no ano de 2018, sendo então o ano com menor número de baixas desde o início das hostilidades (ACNUDH, 2020b).
Apesar do arrefecimento recente das hostilidades entre separatistas e forças governamentais, o conflito estende-se há seis anos. Como desdobramento dos protestos iniciados em 2013, na Praça Maidan, em Kiev, e da anexação da Crimeia pela Federação Russa, a Guerra em Donbass evidencia a disputa interna entre narrativas pró-União Europeia e pró-Rússia. Nesse sentido, o entendimento das razões que desencadearam o movimento separatista passa pela necessidade de um olhar histórico da construção da identidade ucraniana após a dissolução da União Soviética, bem como do posicionamento russo em relação aos países do chamado espaço pós-soviético. Como demonstrado pelo cessar-fogo negociado em 2019, na Normandia, um acordo de paz entre as partes necessitará da participação em conjunta entre o Kremlin e líderes europeus.
REFERÊNCIAS
ACNUDH. Report on the human rights situation in Ukraine 16 November 2019 to 15 February 2020. 12 mar. 2020. Disponível em: https://www.ohchr.org/Documents/Countries/UA/29thReportUkraine_EN.pdf. Acesso em: 12 maio 2020.
ADAM, Gabriel Pessin. As relações entre Rússia, Ucrânia e Belarus e o papel que nelas exercem os recursos energéticos. 2008. 273 f. Dissertação (Pós-Graduação em Relações Internacionais) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre. 2008.
BABIAK, Mat. Welcome to New Russia. Ukrainian Policy. 23. Maio. 2014. Disponível em: http://ukrainianpolicy.com/welcome-to-new-russia/. Acesso em: 11 maio 2020.
BLAKKISRUD, Helge. Blurring the boundary between civic and ethnic: the Kremlin’s new approach to national identity under Putin’s third term. In: KOLSTO, Pal; BLAKKISRUD, Helge. The new Russian nationalism: imperialism, ethnicity and authoritarianism 2000-2015. Edimburgo: Edinburgh University Press. 2016. pp. 249-274
GIELOW, Igor. Decreto de Putin facilita cidadania russa a separatista da Ucrânia. Folha de S. Paulo. São Paulo. 24 abr. 2019. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2019/04/decreto-de-putin-facilita-cidadania-russa-a-separatista-da-ucrania.shtml. Acesso em: 06 maio 2020.
HENDLER, Bruno. A crise na Ucrânia e os níveis de análise em Segurança Internacional: um exercício analítico a partir da Escola de Copenhagen. Conjuntura Austral. [Porto Alegre]. vol. 5, nº 26, out./nov.2014. pp. 4-14.
KOLESNIKOV, Andrei. Why the Kremlin is Shutting Down the Novorossyia Project. Carnegie Endowment for International Peace. 29 maio 2015. Disponível em: https://carnegieendowment.org/2015/05/29/why-kremlin-is-shutting-down-novorossiya-project/i96u. Acesso em: 06 maio 2020.
MIELNICZUK, Fabiano. A crise ucraniana e suas implicações para as relações internacionais. Revista Conjuntura Austral. [Porto Alegre], vol. 5, nº 23, abr./maio, 2014.
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SCIUTTO, Jim. The Shadow War: Inside Russia’s and China’s Secret Operations to Defeat America. HarperCollins Publisher. 2019.
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Imagem: Guerra no leste da Ucrânia: Getty images