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Guerra na Ucrânia e seu reflexo na política internacional africana

Laurindo Tchinhama*

Como os Estados africanos se posicionaram sobre a guerra na Ucrânia? O posicionamento dos países africanos na votação da resolução da Organização das Nações Unidas (ONU), em 2 de março, para condenar a invasão russa à Ucrânia chamou atenção da comunidade internacional porque juntos representavam 27, 97% dos votos. No campo político, boa parte dos Estados africanos tiveram atitudes convergentes embasadas nas relações históricas com as partes em conflito. No âmbito humanitário, assistiu-se ao nível de racismo e xenofobia contra as pessoas negras, em particular os africanos e oriundos do Oriente Médio – o que influenciou indiretamente o posicionamento dos governos africanos.

No tocante à atitude dos Estados africanos na votação da resolução para condenação da invasão russa, foram um total de 28 votos a favor, na sua maioria países com relações estreitas com o Ocidente no setor militar, envolvendo tanto bases militares como operações conjuntas. Por outro lado, houve 17 abstenções de países como, por exemplo, Argélia, Burundi, República Centro-Africana, Senegal, África do Sul, Sudão, Sudão do Sul, Madagascar, Namíbia, Uganda, Zimbábue, República Centro Africana (RCA), Mali e Angola, na sua maioria regimes considerados autoritários ou híbridos. Enquanto a Guiné, Burquina Faso, Togo, Camarões e Marrocos não participaram da votação; e a Eritreia foi o único país africano que votou contra.

Dois argumentos ajudam a entender o posicionamento dos africanos. O primeiro é que se trata de um comportamento político-diplomático. Dentre as razões deste argumento estão o elevado grau de dependência da Rússia e o medo de abalar as alianças estabelecidas com Moscou. Como exemplos que ilustram tal dependência, temos os casos da RCA, Sudão, Líbia, Guine e o Mali, que enfrentam instabilidade política e necessitam do suporte russo no setor de defesa e segurança. A empresa privada de segurança russa, Wagner, por exemplo, atua na RCA no setor de segurança do Estado e há indícios de abusos cometidos pela empresa contra os Direitos Humanos, sendo alvo de críticas pelos observadores do Alto Comissariado da ONU para os Direitos Humanos. Embora a RCA alegue estar investigando tais crimes, as informações indicam que pode ser infrutífero visto que parte da equipe de segurança pessoal do presidente do país, Faustin-Archange Touadera, é composta por membros da empresa. Na Líbia, a empresa possui cerca de 1.200 mercenários que atuam no suporte ao presidente Khalifa Haftar (LYAMMOURI; EDDAZI, 2020).

Ainda nesta linha, é imperioso salientar que muitos países africanos são compradores de armamentos  tanto da Rússia quanto da Ucrânia, assim como também da Bielorrússia, um dos principais aliados russos no conflito. Ademais, as relações Rússia-África nos últimos anos se intensificaram sobretudo a partir do primeiro Fórum Econômico realizado em Sochi, 2019, do qual 43 estados africanos participaram, quando foi fechado um investimento de cerca de US$ 12,5 bilhões de dólares em negócios no continente (LYAMMOURI; EDDAZI, 2020). No fórum foram estabelecidas parcerias nos setores político, securitário, comercial e econômico, jurídico, científico, técnico, humanitário, informacional e ambiental em todo continente. Além disso, parcerias no setor de infraestrutura energética com o Sudão, Etiópia, República Democrática do Congo (RDC) se destacam na política externa russa para África (INSTITUTE FOR GLOBAL DIALOGUE, 2020).

A neutralidade de alguns países chamou atenção da comunidade internacional, em especial dos Estados Unidos da América (EUA). O país criticou a falta de postura clara dos africanos diante da guerra, o que levou alguns estadistas africanos a se posicionarem criticamente. O presidente da África do Sul, Cyril Ramaphosa, declarou que “os países mais poderosos tendem a usar sua posição como membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU para servir seus interesses nacionais em vez dos interesses da paz e estabilidade globais”. Vale lembrar que a África do Sul é um dos principais parceiros estratégicos russos no continente, além de membro dos BRICS, grupo das economias emergentes, do qual a Rússia é integrante. No entanto, esta declaração reforça a longa discussão acerca da reforma do Conselho de Segurança da ONU como um dos pilares da crise que a segurança internacional vem enfrentando nos últimos anos. Ademais, na mesma linha, o embaixador do Quênia no Conselho de Segurança da ONU, Martin Kimani, observou haver uma tendência dos membros permanentes do Conselho da ONU de violarem o Direito Internacional.

Quando se analisa a posição político-diplomática no âmbito regional, o procedimento dos Estados africanos foi díspar. A Comunidade Econômica dos Estados da África Ocidental (CEDEAO), composta por 15 países, e a União Africana (UA) condenaram a invasão russa. A base argumentativa da UA sobre a violação do Direito Internacional, á integridade territorial e à soberania cometidos pela Rússia, também condenou o racismo escancarado contra os africanos que solicitaram refúgio aos países vizinhos, os quais priorizaram os ucranianos em detrimento dos africanos.

Percebe-se que o argumento político-diplomático, de um lado, está alicerçado nas relações bilaterais dos africanos, na dependência do setor de defesa, inteligência e segurança, especificamente, assim como na reaproximação da Rússia com o continente. É uma forma de preservar o cortejo com os russos além das relações históricas que alguns países estabeleceram durante e no pós-Guerra Fria, dado que o país apoiava os movimentos de libertação na África.

O representante queniano, Martin Kimani, comparou a invasão russa com o colonialismo afirmando que “[…] esta situação ecoa nossa história. O Quênia e quase todos os países africanos nasceram do fim de um império. Nossas fronteiras não foram traçadas por nós mesmos. Foram traçadas nas distantes metrópoles coloniais de Londres, Paris e Lisboa, sem considerar as nações antigas que eles separaram”.

Um segundo argumento que influenciou o posicionamento dos Estados africanos, ainda que indiretamente, está relacionado à questão humanitária. O comportamento das entidades ou agentes fronteiriços diante do fluxo de refugiados foi observado em vários jornais internacionais pelo caráter xenofóbico e racista contra os não ucranianos, que eram rejeitados nos meios de transportes. Nesse sentido, o fluxo migratório de ucranianos para os países vizinhos revisitou a questão racial e xenofóbica contra os refugiados não ucranianos, porém residentes no país. Declarações e comportamentos xenofóbicos das entidades migratórias e da mídia elucidaram a diferença na definição de quem deve ser salvo, protegido ou acolhido e, entre os critérios estava a cor da pele e a origem. Os migrantes da África, Índia, Oriente Médio e demais regiões, residentes na Ucrânia, foram impedidos de entrar nos países acolhedores ou de acessar os meios de transportes para se deslocarem.  De um total de 76.000 estudantes residentes na Ucrânia, 16.000 são africanos, ou seja, três em cada dez estudantes estrangeiros na Ucrânia são africanos e o país é o quinto destino mais procurado depois da França, Estados Unidos, Reino Unido e Malásia.

A ajuda humanitária e a solidariedade são seletivas, ficando evidente que algumas vidas importam mais e outras menos – fato que apenas reforça como a expansão do movimento Black Lives Matter torna-se cada vez mais importante na luta contra o racismo internacional e a xenofobia descarada como a presenciada na guerra. Um exemplo claro foi o argumento do primeiro ministro búlgaro, Kiril Petkov de que “estes não são os refugiados a que estamos acostumados. … Essas pessoas são europeias. … Essas pessoas são inteligentes; são pessoas educadas. … Esta não é a onda de refugiados a que estamos acostumados, pessoas que não tínhamos certeza sobre sua identidade, pessoas com passado obscuro, que poderiam ter sido até terroristas”.

Diante da discriminação e violência desenfreada, países africanos como Zimbábue, Angola, Nigéria já retiraram os seus cidadãos da Ucrânia e os demais Estados, como Gana, África do Sul e Costa do Marfim, têm feito esforços para salvarem seus cidadãos. Em tom crítico, a declaração do presidente nigeriano reforçou que “todos os que fogem da situação de conflito têm o mesmo direito de passagem segura sob a convenção da ONU e a cor de seu passaporte ou de sua pele não deve fazer diferença”. Como resposta, a Nigeria fretou aviões para retirar seus cidadãos que conseguiram chegar nos países vizinhos.

Diante do exposto, compreende-se que os argumentos político-diplomático e o humanitário demonstram os fundamentos da política internacional africana frente ao conflito Rússia-Ucrânia, sob pano de fundo das relações internacionais construída ao longo da Guerra Fria, principalmente. De um lado, afere-se que as relações históricas da África com o Ocidente, marcada pela colonização e luta anticolonial, ainda influenciam diretamente na decisão da política internacional e nas relações bilaterais desses Estados com os russos, visto que estes apoiaram os movimentos de libertação nacional. Assim, as relações estabelecidas nos últimos anos com a Rússia, com destaque ao Fórum econômico em Sochi, 2019, demonstram ruptura dos africanos em relação à dependência do Ocidente, apesar destes ainda exercerem maior influência na região, e influenciaram diretamente na votação na ONU. Por último, os atos xenofóbicos presenciados na guerra ilustram que a luta contra o racismo sempre foi uma luta transnacional que merece olhares críticos.

 

Referências Bibliográficas

INSTITUTE FOR GLOBAL DIALOGUE. PROCEEDINGS REPORT Dialogue Russia-Africa Summit. Sochi: [s. n.], 2020.

LYAMMOURI, R.; EDDAZI, Y. Russian Interference in Africa: Disinformation and Mercenaries. Policy Brief for the new South, Rabat, no. June, p. 6, 2020.

 

* Doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais “San Tiago Dantas” (Unesp, Unicamp, PUC-SP), membro do Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional (GEDES) e pesquisador do Observatório de Conflitos.

Imagem: Sessão emergencial da Assembleia Geral da ONU. Por: UN Photo/Cia Pak.

 

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