Dez anos após assumir a presidência da Nicarágua pela segunda vez, Daniel Ortega se mantém não só como chefe de Estado, mas como principal força política e econômica do referido país centro-americano. A primeira vez a ocupar o cargo foi após as eleições de 1984, em meio ao regime iniciado com a Revolução Sandinista de 1979. As derrotas eleitorais da Frente Sandinista de Liberación Nacional (FSLN) em 1990 e nos pleitos seguintes foram interrompidas em meados da primeira década do século XXI. Se em 2007 Ortega assumia em uma perspectiva considerada até certo ponto otimista e com significativas expectativas populares depois de três governos liberais, em 2017 o cenário é completamente distinto. Seu terceiro mandato consecutivo (2007-2011, 2012-2016, 2017-) se inicia com um crescente descontentamento de inúmeros setores, mobilizações sociais e um panorama exterior não tão favorável como em anos anteriores.
Desde os últimos anos, têm crescido as preocupações acerca da corrupção e da condução de processos políticos, com denúncias contra medidas autoritáriase violações de direitos e normas, especialmente com a deposição de deputados opositores e partidos não aliados colocados na ilegalidade. Envolto nesse panorama, o setor de Defesa e Segurança revela-se outro tema delicado e inquietante em âmbito nacional e regional. As recentes relações e cooperações militares com a Rússia e a desnaturalização de referido setor a favor de interesses políticos particulares tornaram-se epicentros das incertezas em relação aos caminhos tomados pelo governo nicaraguense.
Tais dúvidas se sobressaem a partir da percepção, por exemplo, das mudanças no conceito de Segurança a partir da década de 1990, não apenas na Nicarágua, mas no istmo centro-americano. No plano regional, o Tratado Marco de Seguridad Democrática en Centroamérica firmado em 1995 estabeleceu um novo padrão ao realçar a necessidade de medidas de confiança mútua, com um equilíbrio de forças e a preocupação com a segurança das pessoas em um contexto de paz. Estava estabelecido, então, o conceito de Segurança envolto nas condições que propiciem o bem-estar dos cidadãos, buscando a ausência de riscos e ameaças, bem como o desenvolvimento de formas representativas da vida política.
O retorno de Daniel Ortega à presidência e sua consolidação como figura central em praticamente todas as esferas de influência do país tiveram reflexo na noção de “segurança democrática” e em sua consequente alteração. Reformas constitucionais realizadas em 2014 efetivaram um vínculo direto de instituições associadas ao setor de Defesa e Segurança com a Presidência da República. Com isso, no campo que aqui nos interessa, o Ministério da Defesa teve suas competências reduzidas e passou-se para uma relação de subordinação individual em detrimento de elos institucionais.
Se o controle civil foi prejudicado com essas reformas, o mesmo podemos considerar em relação à agenda de Defesa e Segurança nicaraguense e à aplicação de um novo conceito, o de “segurança soberana” (Ley de Seguridad Soberana, aprovada em 2015). Inexistente nas principais referências de estudo da área, tal conceito envolve uma ampla variedade de concepções e níveis de atuação, como as seguranças humana, cidadã, interna e externa, alimentícia e agropecuária. Essa elasticidade e mescla de assuntos parece firmar certa função onipresente à ideia de Segurança, dominando o espaço político e suas ações.
Posto isso, a ambiguidade das ideias aplicadas e a não delimitação do funcionamento das mesmas, além da indefinição de possíveis ameaças e/ou da regulação e supervisão das instâncias cabíveis, permite que Daniel Ortega estabeleça mais um amparo político, reforçando uma histórica cultura política local de uso da força e da violência como suporte às instâncias políticas.
Nesse sentido, o processo de remilitarização promovido na Nicarágua, principalmente com a aquisição de cinquenta tanques russos (avaliados em U$ 80 milhões) e com a confirmação de uma cooperação com a mesma Rússia que ultrapassa U$ 26,5 milhões desde 2009 (apoio, armas, uniformes, veículos), suscita uma tensa dinâmica entre os países da região. Honduras iniciou cooperações com Israel, o governo da Costa Rica recebeu doações de veículos e armamentos estadunidenses como salvaguarda às aquisições nicaraguenses e El Salvador incrementou os investimentos nas Forças Armadas. Todas essas medidas dão mostras e reafirmam como a militarização é uma resposta ainda recorrente na América Central, mesmo que dita alternativa não corresponda às necessidades regionais ou às razões dos problemas estruturais na área de Defesa e Segurança.
Em um cenário de deterioração de uma já frágil democracia, o regime de Ortega consegue reforçar ainda mais os traços autoritários e centralizadores na figura de seu líder máximo, subordinando quase completamente todos os aparatos estatais, inclusive as Forças Armadas. A relevante modificação aplicada em sua última reeleição foi a ascensão da primeira-dama Rosario Murillo ao posto de vice-presidente, sublinhando a marca familiar e personalista do poder em vigor na Nicarágua. Assim, numa lógica de interesses e negócios particulares se sobrepondo a questões nacionais e com a incerta noção de “segurança soberana”, é compreensível (por mais equivocado que seja) o crescente uso castrense em atividades de segurança interna ou cidadã, resultando em controle social sustentado na repressão e em uma abrangente instabilidade em meio à sociedade nicaraguense.
De modo concreto, a principal ameaça identificável à segurança regional recai no crime organizado, notadamente o narcotráfico. Contudo, a mencionada militarização da segurança e a progressiva participação das Forças Armadas em questões internas não demonstram atender às causas estruturais de tais ameaças e tampouco são respostas eficazes aos problemas sociais. Em uma análise mais ampla, podemos considerar que as noções de Defesa e Segurança (na Nicarágua e na América Central) estão intimamente relacionadas aos processos de consolidação dos Estados, satisfazendo carências e se adequando às realidades. Um dos grandes desafios atuais é conseguir pôr em prática a formulação da política de Defesa amparada em um consenso nacional, assim como descreve sua legislação vigente. Ademais, a confusão entre os conceitos de Defesa e Segurança, associada a outras adversidades como as debilidades institucionais e de coesão social, a busca pela recuperação econômica e a considerável presença da corrupção fazem com que existam apenas planos conjunturais, respostas imediatistas que estão longe de uma política estatal de longo prazo.
Portanto, parece evidente que a região centro-americana segue com desafios pendentes nos âmbitos da Defesa e Segurança. Na Nicarágua, o histórico de acordos e pactos entre elites também demonstra manter sua força; uma frágil democracia pactada que se transveste de tempos em tempos somente para tentar esconder erros e incongruências. O istmo conseguiu se assentar como uma região sem conflitos armados, porém, as dificuldades em torno de uma governabilidade democrática ainda revelam as complexidades de um caminho até legítimos períodos de paz.
Fred Maciel é doutorando em História pela Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (FCHS – UNESP/campus Franca).
Imagem: Bandeira da Nicarágua.