Em visita a Belgrado no final de agosto, o senador dos EUA Ron Johnson apelouao presidente da Sérvia, Aleksandar Vučić, para que o país balcânico não conceda ao Centro Humanitário Russo-Sérvio (CHRS) benefícios diplomáticos solicitados por Moscou à instituição. O político norte-americano associou o CHRS a intenções agressivas da Rússia contrárias à aproximação da Sérvia às democracias ocidentais, afirmação que suscitou rechaço de Vučić.
A saia justa foi o episódio mais recente da longa controvérsia em torno do CHRS, que atua desde 2012 em operações de defesa civil na Sérvia e em países do seu entorno. Operado de forma conjunta pelo Ministério de Situações de Emergência da Rússia (EMERCOM) e pelo Ministério do Interior da Sérvia, o CHRS voltou nos últimos meses a estar na pauta das relações de Belgrado com as duas grandes potências. Na esteira de discussões a respeito da concessão de imunidade diplomática à instituição e seus funcionários, os EUA afirmam temer o uso do CHRS como infraestrutura de espionagem e outras “atividades nefastas” pela Rússia, ao passo que o Kremlin enfatiza o papel estritamente humanitário e civil da instalação. Frente a essas contraditórias versões, qual seria, de fato, o caráter do CHRS?
Especulações nesse sentido existem desde as negociações entre Rússia e Sérvia sobre seu estabelecimento, acordado em outubro de 2009. Elas foram alimentadas pelo desenvolvimento das relações bilaterais, que passavam naquela época por um ponto de inflexão. A convergência de posições entre Moscou e Belgrado a respeito da independência do Kosovo (declarada em fevereiro de 2008) consolidava, então, o papel da Rússia como principal defensora da integridade territorial sérvia a nível internacional, o que se dava de forma simultânea à penetração econômica russa nos Bálcãs a partir do setor energético. Datam daquele período o anúncio dos grandes investimentos russosna infraestrutura energética sérvia e a aquisição, pela Gazprom russa, de maioria acionária na companhia estatal de petróleo e gás do país balcânico, eventos vistos como contrapartida da Sérvia ao apoio diplomático do Kremlin quanto ao Kosovo. A Sérvia também foi incluída no ambicioso projeto energético russo envolvendo os Bálcãs, o gasoduto South Stream, abortado no final de 2014 em virtude da oposição da União Europeia e dos EUA.
Nesse contexto, a aproximação entre Rússia e Sérvia passou a ser enxergada como plataforma para um resgate do histórico protagonismo geopolítico de Moscou nos Bálcãs. Essa tendência possivelmente envolveria um componente militar, e é exatamente nesse sentido que surgiram as polêmicas em torno do CHRS. Um dia após a celebração do acordo entre os dois países, a famosa consultoria de inteligência norte-americana Stratfor repercutiu o evento em artigono qual discutia as implicações do estabelecimento do centro para a região. O texto, mencionando hipotéticas atribuições militares das atividades do EMERCOM, assim como seus laços com o establishment securitário da Rússia, aponta que o CHRS poderia cumprir finalidades estratégicas mais amplas do que o simples envolvimento em questões de defesa civil. A isso se somariam outras “provas” das reais intenções russas, como a localização na cidade de Niš, descrita como importante centro militar sérvio, e o envolvimento pessoal nas negociações do então chefe do EMERCOM, Sergey Shoygu, um dos mais próximos aliados de Vladimir Putin e atual Ministro de Defesa da Rússia.
Informações nesse sentido rapidamente ecoaram nos meios de comunicação regionais. Falava-se, por exemplo, na “transformação de Niš em uma base secreta russa”, voltada para contrabalançar a presença da OTAN nos Bálcãs e proteger os investimentos energéticos de Moscou na área, ou, de forma mais modesta, no simples estacionamento permanente de contingentes das forças armadas russas na operação do CHRS. A imagem conspiratória construída então permanece até hoje, rendendo cíclicas trocas de farpas diplomáticas, numerosas reportagens e discussões entre especialistas na mídia local e até mesmo boatos sobre a construção de uma outra “base militar" russa no norte da Sérvia, veiculados em 2016.
Na prática, contudo, há pouca substância que justifique tamanha inquietação. Em primeiro lugar, embora o EMERCOM de fato conte parcialmente com quadros militares e unidades armadas, estas não dispõem de armamentos pesados, nem possuem atribuições de combate. O ministério, em suas operações na Rússia e fora de suas fronteiras (estas reguladas por tratados internacionais e bilaterais), se concentra na provisão de ajuda humanitária e na proteção da população e da infraestrutura civis em casos de desastres naturais ou situações emergenciais ocasionadas por atividade humana, incluído aí as consequências de conflitos armados (em um caso particularmente controverso, nesse sentido, a Ucrânia acusa a Rússia de violar normas internacionais de auxílio humanitário e de utilizá-lo como cortina de fumaça para viabilizar logisticamente o esforço de guerra das repúblicas secessionistas do leste do país). A larga frota de aviões, helicópteros e outros tipos de veículos do ministério também é adaptada para tais fins, o que dificultaria seu emprego em operações bélicas.
Em segundo lugar, no caso específico da Sérvia, a atuação do CHRS tem se dado em conformidade com o acordo bilateral que regula seu funcionamento. Ela tem se restringido, portanto, à prevenção e provisão de socorro em situações de emergência como incêndios e enchentes, à remoção de minas terrestres e ao treinamento de pessoal para a execução de tais atividades. O centro foi instrumental, por exemplo, durante as pesadas enchentes que atingiram a Sérvia e a Bósnia-Herzegovina em 2014, e tem se envolvido também em outros episódios de menor repercussão midiática, como o combate a incêndios florestais na Sérvia e em seu entorno. Por fim, não há indícios da conversão para atividades militares, de inteligência ou de espionagem no local, cujo acesso, inclusive, é aberto ao público.
O “modesto” caráter do CHRS, em comparação com as sedimentadas visões descritas acima, é consonante com o quadro estratégico desfavorável para o Kremlin nos Bálcãs. A região está incorporada praticamente por completo à OTAN desde a época das negociações de estabelecimento do CHRS, e a Rússia deixou de ter contingentes militares na península desde sua retirada das missões de paz no Kosovo e na Bósnia-Herzegovina, em 2003. O avanço da aliança atlântica para as imediatas fronteiras russas no Pós-Guerra Fria tornou os Bálcãs estrategicamente supérfluos para o país, separado territorialmente da Sérvia por um enorme cordão de membros da aliança atlântica que se estende do Báltico ao Mar Negro. A própria Sérvia, não obstante sua autoproclamada neutralidade militar, possui elevado nível de cooperação com a OTAN, que, por meio de uma série de acordos, possui significativa influência sobre os assuntos de segurança e defesa do país balcânico. Ademais, se se aceita o ponto de vista de Belgrado sobre sua soberania sobre o Kosovo, a Sérvia sedia em seu território tropas da OTAN e a base norte-americana Camp Bondsteel, uma das maiores dos EUA na Europa. Em conjunto, esses fatores inviabilizam seriamente a penetração militar russa nos Bálcãs como parte de uma hipotética aliança com a Sérvia.
Levando em conta esses fatores, é razoável concordar com as opiniões do ministro de relações exteriores sérvio, Ivica Dačić, e da primeira-ministra, Ana Brnаbić, para quem o assunto do CHRS é excessivamente politizado. Na corrente rivalidade geopolítica entre os EUA e a Rússia, Washington e Moscou parecem utilizar o tema para testar até que ponto a Sérvia está disposta a acomodar seus interesses dentro da complexa tentativa que o país balcânico tem feito nos últimos anos de manter boas relações com ambas as potências.
Gustavo Oliveira é mestrando em Relações Internacionais pelo Programa de Pós-Graduação "San Tiago Dantas" (Unesp, Unicamp, PUC-SP).
Imagem: Bandeira da Sérvia.