Ligia Maria Caldeira Leite de Campos
Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP, PUC-SP) e bolsista CAPES.
E-mail: ligia.campos4@hotmail.com
Atualmente, há distintos focos de violência armada e instabilidade política no Sudão. Um desses casos é a fronteira com o Sudão do Sul, nos estados de Blue Nile e South Kordofan. Esta região lidou com muitos embates nas guerras civis que levaram à Independência do Sudão do Sul e, em 2011, sua população foi alvo de ações do governo por ser considerada apoiadora do grupo Sudan People Liberation Movement/Army North (SPLM/A-N), dissidência do Sudan’s People Liberation Movement/Army (SPLM/A), antigo grupo rebelde que governa o Sudão do Sul hoje em dia (BRAGA, 2012).
Hostilidades também ocorrem em outra região fronteiriça entre o Sudão e o Sudão do Sul, conhecida como Abyei. Esta é uma área rica em recursos, disputada por ambos países e que lida com conflitos étnicos. No local, há uma missão de paz da ONU nomeada United Nations Interim Security Force for Abyei (UNISFA) desde 2011. A região ainda vive um impasse, mas a situação pode se alterar positivamente devido às aproximações mais recentes entre esses Estados (OCHA, 2019; UNISFA, 2019; RELIEFWEB, 2019).
Outra importante área a ser apresentada mais detalhadamente a seguir é a de Darfur. Na história do país, foram várias as dificuldades enfrentadas, o que se evidenciou principalmente em constante instabilidade política, com uma série de regimes militares que impulsionavam governos pró-Islâmicos. Em 1989, o presidente Omar Hassan Ahmad Al-Bashir assumiu este posto via golpe e era membro da Frente Nacional Islâmica. Em seu governo, criou-se a Força de Defesa Popular (People’s Defense Force, PDF, em inglês), iniciando o processo de militarização da população sudanesa. Esta força funciona como um exército paralelo às Forças Armadas, servindo também como instrumento para a islamização do país (PERES, 2016).
No que diz respeito a Darfur, esta é uma região situada no oeste do território sudanês, composta majoritariamente por muçulmanos das tribos Fur, Zaghawa e Massalit. Da mesma maneira que a PDF, um grupo chamado Baqqara se militarizou e sua parcela que se localizava a oeste utilizou armamentos para investir contra essas tribos, com quem disputava território e água em Darfur. São esses baqqara, armados pelo próprio governo sudanês, os quais compõem as janjaweed, milícia utilizada para conter a revolta darfuri (residentes de Darfur) no começo de 2003 (PERES, 2016).
Essa revolta eclodiu após a assinatura do acordo de paz do governo com a região Sul, ainda não independente, o qual ignorou os interesses de outras partes do país. Portanto, buscava-se chamar a atenção internacional para demonstrar que o acordo estabelecido não bastava para solucionar as demais crises. A ação visava alcançar um Sudão mais igualitário e democrático, em que a região deixasse de ser marginalizada. Vários postos policiais na região de Darfur foram alvos do grupo Darfur Liberation Front (DLF), que passaria a ser o Sudan Liberation Movement/Army (SLM/A), comandado por Abdel Al-Wahid. Para realizar essas ações, esteve também presente o grupo Justice and Equality Movement (JEM), apesar de algumas diferenças entre eles (BADMUS, 2008; PERES, 2016).
O governo sudanês oficialmente negava a rebelião, mas organizava as janjaweed. As janjaweed são consideradas milícias criadas pelo governo central para atuar em Darfur como parte da PDF, no sentido de operar como o Estado em momentos em que as Forças Armadas não podem fazê-lo. Consequentemente, houve uma série de atos violentos como retaliação às vitórias iniciais do JEM e do SLM/A. Outros grupos surgiram nesse contexto, com os mesmos objetivos do SLM/A e do JEM (PERES, 2016).
Nos anos decorrentes, o governo sudanês realizou a política da terra arrasada contra os darfuri não árabes, a qual consiste em ataques recorrentes a aldeias de negros africanos, com a justificativa de que estes estariam acolhendo rebeldes. Casas foram queimadas, assim como aldeias por completo. Houve massacres, estupros, mutilações, saqueamentos e ações por via terrestre e aérea. Logo, essas atitudes passaram a ser entendidas como configuradoras de genocídio. O governo refuta a afirmação de que tenha envolvimento nessas ações, mas evidências apontam o contrário (PERES, 2016; BRAGA, 2012).
As razões mais profundas do conflito são variadas. Dentre elas, está a dinâmica social de Darfur que constantemente foi constituída por conflitos étnicos entre pastores árabes nômades e seminômades e agricultores não árabes sedentários. A situação se agravou com a seca durante os anos 1980, em que houve uma intensificação da desertificação resultando em fome e disputa por terreno fértil. Outra motivação é a negligência do governo em relação a Darfur, região que permaneceu subdesenvolvida, sem acesso a serviços, sendo que os principais investimentos foram direcionados à área de Cartum, capital do país. A isso se soma o autoritarismo de Al-Bashir, que buscava controlar todos os fatores da vida dos sudaneses, resultando numa supremacia árabe, com a tentativa de impor a ideologia islamista, compreendendo os demais cidadãos como inferiores. Desde a Independência do Sudão, em 1956, o poder político pende ao monopólio por parte dos árabes. O Islã chegou a ser estabelecido como religião do Estado, assim como a Sharia (lei islâmica). Como consequência, passou-se a justificar as mortes, escravização e estupro conforme o pertencimento a determinados grupos. A utilização do conflito como tática de contrainsurgência é também uma questão, uma vez que o país lida com outras áreas instáveis e a violenta retaliação à rebelião serve como exemplo, não abrindo espaço a novos levantes. Outro importante aspecto é o influxo de armas e a belicosidade na África Oriental para a solução de disputas, especialmente após a modificação dos mecanismos de solução de controvérsias tradicionais. Todo esse cenário se agrava com o histórico do país composto por autoritarismo, políticas públicas desiguais, corrupção, infraestrutura insuficiente, entre outros problemas de governança, e violações de direitos humanos e de liberdades fundamentais (PERES, 2016; BADMUS, 2008; BRAGA, 2012).
Em maio de 2006, estabeleceu-se o Acordo de Paz de Darfur (Darfur Peace Agreement, DPA, em inglês) entre o governo e uma das facções do SLA, comandada por Minni Minawi (SLA-MM). A outra facção do SLA liderada por Abdel Wahid (SLM-AW) e o JEM não o assinaram. Por conseguinte, os embates prosseguiram, havendo vários empreendimentos contra os locais ocupados pelos rebeldes não signatários, e o governo agiu de forma a diminuir o acesso da assistência humanitária. Nesse contexto, houve a fragmentação dos movimentos rebeldes, gerando violência entre eles. Os grupos também se juntaram a outros advindos do Chade que, assim como a Eritreia, forneceu apoio a organizações armadas. A insegurança se manteve, o acordo foi visto com desconfiança e houve aumento do banditismo local (PERES, 2016; BRAGA, 2012).
Em 2008, o governo de al-Bashir criou a Iniciativa do Povo do Sudão, visando uma solução política para o conflito, o que não funcionou. Em março de 2009, o Tribunal Penal Internacional (TPI) lançou uma ordem de prisão contra al-Bashir, sendo este o primeiro caso contra um presidente em exercício. A decisão foi rejeitada pelo governo e este declarou a intenção de expulsar organizações humanitárias e encerrar as atividades de duas Organizações Não-Governamentais (ONGs) sudanesas em Darfur. Em 2011, com as novas hostilidades em South Kordofan e em Blue Nile, o SPLM-N tornou-se aliado aos movimentos de Darfur, resultando na Frente Revolucionária do Sudão (Sudan Revolutionary Front, SRF, em inglês), a qual buscava a derrocada do governo de al-Bashir (BRAGA, 2016).
Também em 2011, foi realizado um novo acordo conhecido como Doha Document for Peace in Darfur (DDPD). Todavia, os resultados não foram muito além do acordo anterior. Mais ainda, o governo criou as Forças Rápidas de Apoio (FRA), conhecidas como “novas janjaweed”, mais treinadas e armadas (PERES, 2016).
Entre 2013 e 2014, a violência nas regiões de South Kordofan, Blue Nile e Darfur alcançou um alto nível, aproximando-se daquele verificado em 2007. Em 2014, al-Bashir lançou um “Diálogo Nacional”, porém não estava disposto a fazer as concessões necessárias ao diálogo. Seus opositores (grupos armados, partidos políticos e sociedade civil) assinaram, então, a Declaração Política sobre o Estabelecimento de um Estado Cidadão e Democrático, conhecida como “Chamada ao Sudão”, objetivando a retirada do modelo de um partido único e a transição democrática do governo. Em 2016, as conversações foram suspensas (BRAGA, 2016).
Atualmente, o país vive um momento de transição após protestos iniciados em dezembro de 2018, os quais levaram à retirada de al-Bashir do poder em abril de 2019. O Sudão está sendo governado por uma administração civil-militar conjunta até a realização de eleições democráticas, previstas daqui a três anos. Al-Bashir permanece preso em Cartum, da mesma maneira que outros oficiais de seu governo (THOUSANDS…, 2019; SUDAN…, 2019; PSC REPORT, 2019).
O acordo feito para colocar o governo de transição no poder previu que este teria seis meses para realizar acordos de paz com todos os grupos armados do Sudão. Em setembro, negociações de paz foram retomadas entre o governo e rebeldes atuantes em Darfur, Blue Nile e South Kordofan, incluindo o SPLM/A-N, JEM, SLM-MM, entre outros. Como resultado, foi feita a Declaração de Juba, visando construir confiança entre as partes. Foi anunciado um cessar-fogo permanente, trocas de prisioneiros e um “corredor humanitário” para a entrega de ajuda humanitária. Os pontos abertos para discussão incluem a falha em gerenciar a diversidade étnica e religiosa, falta de liberdade e justiça, marginalização socioeconômica e hegemonia do centro em relação à periferia do país, além de um possível compartilhamento de poder no governo e o desarmamento, desmobilização e reintegração das forças paramilitares, incluindo as janjaweed e as FRA, junto à reforma do setor de segurança. A divisão equitativa de receitas advindas de recursos naturais também está em pauta. Contudo, muitos são ainda os desafios que o processo de paz tem que lidar, como a falta de confiança entre as partes e da própria população em relação a alguns grupos armados. A oposição armada nesses estados continua. Ainda são relatados embates e hostilidades entre as comunidades em Darfur (THOUSANDS…, 2019; SUDAN…, 2019; PSC REPORT, 2019; OCHA, 2020a).
Até o momento, o número de deslocados internos da região de Darfur é de 1,86 milhão (do total 2,1 milhões do país) (OCHA, 2020a; THE HUMANITARIAN DATA EXCHANGE, 2020). A respeito do fluxo de refugiados e requerentes de asilo sudaneses no Sudão do Sul, Chade, Etiópia, Egito, Quênia e Jordânia, estes somam cerca de 745 mil (OCHA, 2020b). A situação do país se configura como uma das maiores crises humanitárias do mundo, em que cerca de 3,9 milhões de pessoas precisam de assistência somente em Darfur (do total 9,3 milhões no Sudão) (OCHA, 2020a). Segundo o Uppsala Conflict Data Program (2020), foram mortas por volta de 37 mil pessoas no país entre 2003 e 2018. Ao se considerar a violência junto à fome e doenças em decorrência das hostilidades, Braga (2012) aponta 350 mil mortos apenas no período até 2006. Tratam-se de estimativas, pois a quantidade exata é difícil de calcular, devido ao complicado acesso a locais mais remotos e à atualidade do conflito.
No que tange à participação internacional durante o conflito de Darfur, as potências ocidentais foram chamadas a intervir para encerrá-lo. Todavia, antes de 2004, um dos períodos mais violentos, sua ação foi restrita quase que exclusivamente à assistência humanitária. Nesse sentido, destaca-se a atuação da Organização das Nações Unidas (ONU) e a União Africana (UA) que estiveram presentes nesse contexto, mas de forma limitada. A partir de acordos realizados, a UA originou a African Mission in Sudan (AMIS) para monitorá-los, criar confiança entre as partes e ampliar a segurança na região. Em 2007, com o aumento da insegurança regional, a African Union/United Nations Hybrid operation in Darfur (UNAMID) foi estabelecida para substituir a AMIS e está vigente até hoje. Sendo uma missão de paz conjunta entre a UA e a ONU, seu mandato tem como base proteger civis, facilitar a entrega de ajuda humanitária, verificar a implementação dos acordos, promover os direitos humanos e o Estado de Direito e propiciar um ambiente adequado para o estabelecimento da paz. Há também a participação de Estados africanos individualmente para tentarem solucionar o conflito. Muitos países definiram sanções contra o Sudão, como os europeus e os Estados Unidos. É importante considerar a presença da China, país ao qual o Sudão exporta mais de 50% de seu petróleo, resultando numa relação que envolve também as questões políticas locais. Ademais, a China aumentou o fornecimento de armas ao governo sudanês e teve participação na revitalização da indústria bélica no país, ao mesmo tempo em que o pressionou para que se moderassem as ações contra os rebeldes (BRAGA, 2012; BADMUS, 2008; UNAMID, 2019; UNITED NATIONS, 2019).
Por conseguinte, são diversas as fontes e áreas de instabilidade no país, no que se destaca a região de Darfur. Ao pensar um futuro cenário para o Sudão, é necessário analisar como todos os atores envolvidos se comportarão em face às mudanças políticas que vêm se desenvolvendo. Também é preciso lembrar que, mesmo com o cessar-fogo estabelecido, os embates não foram completamente interrompidos. Portanto, embora um acordo de paz esteja sendo arquitetado, para que haja uma resolução real, definitiva e sustentável para as hostilidades, é preciso que as raízes mais profundas dos conflitos sejam abordadas e solucionadas.
REFERÊNCIAS
BADMUS, Isiaka Alani. “Nosso Darfur, Darfur Deles”: A Política Desviante do Sudão e a Nascente “Limpeza Étnica” em uma Emergente Anarquia Africana. Contexto Internacional, Rio de Janeiro, v. 30, n. 2, p.309-360, maio 2008.
BRAGA, Camila de Macedo. As Estratégias Internacionais de Prevenção à Violência em Massa e a “Nova Guerra” no Darfur. 2012. 178 f. Dissertação (Mestrado) – Curso de Relações Internacionais, Programa de Pós-graduação em Relações Internacionais “San Tiago Dantas” (Unesp/Unicamp/Puc-sp), São Paulo, 2012.
BRAGA, Camila. O Conflito Armado em Darfur- Sudão. Série Conflitos Internacionais, Marília, v. 3, n. 5, p.1-8, out. 2016.
OCHA. Humanitarian Needs Overview 2020: Sudan. 2020a. Disponível em: https://reliefweb.int/sites/reliefweb.int/files/resources/Sudan_2020_HNO.pdf . Acesso em: 22 abr. 2020.
OCHA. Humanitarian Response Plan January-December 2019: Sudan. 2019. Disponível em: <https://reliefweb.int/sites/reliefweb.int/files/resources/Sudan_2019_Humanitarian_Response_Plan.pdf>. Acesso em: 20 nov. 2019.
OCHA. Key Figures. Disponível em: www.unocha.org/sudan. Acesso em: 23 abr. 2020b.
PERES, Leonardo Augusto. O Genocídio como Problema Internacional Contemporâneo: Um Estudo do Caso Sudanês. 2016. 127 f. Dissertação (Mestrado) – Curso de Relações Internacionais, Universidade de Brasília, Brasília, 2016.
PSC REPORT. Negotiations to end all wars in Sudan: The African Union has a key role to play in the ongoing negotiations to end the civil war in Sudan. 2019. Disponível em: <https://issafrica.org/pscreport/psc-insights/negotiations-to-end-all-wars-in-sudan>. Acesso em: 20 nov. 2019.
RELIEFWEB. The situation in Abyei – Report of the Secretary-General (S/2019/817) [EN/AR]. 2019. Disponível em: <https://reliefweb.int/report/sudan/situation-abyei-report-secretary-general-s2019817-enar>. Acesso em: 20 nov. 2019.
SUDAN peace talks resume after deadlock: Officials say Khartoum and rebels have managed to pin down a partial agenda for discussions. Al Jazeera. Doha, p. 1-1. 18 out. 2019. Disponível em: <www.aljazeera.com/news/2019/10/sudan-peace-talks-resume-deadlock-191018192037100.html>. Acesso em: 20 nov. 2019.
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THOUSANDS rally in Sudan, call for Bashir party to be disbanded: Rallies held in several cities with demonstrators calling for the former leader’s party to be dissolved. Al Jazeera. Doha, p. 1-1. 21 out. 2019. Disponível em: <https://www.aljazeera.com/news/2019/10/thousands-rally-sudan-call-bashir-party-disbanded-191021170631583.html>. Acesso em: 20 nov. 2019.
UNAMID. About UNAMID. Disponível em: <https://unamid.unmissions.org/about-unamid-0>. Acesso em: 20 nov. 2019.
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UNITED NATIONS. UNAMID Fact Sheet. Disponível em: <https://peacekeeping.un.org/en/mission/unamid>. Acesso em: 20 nov. 2019.
UPPSALA CONFLICT DATA PROGRAM. Sudan. Disponível em: https://ucdp.uu.se/country/625. Acesso em: 23 abr. 2020.
Créditos da imagem: Amin Ismail, UNAMID. Disponível em: <www.flickr.com/photos/unamid-photo/42509873780/in/photostream/>