Jonas de Paula Vieira, graduando em Relações Internacionais pela Universidade Estadal Paulista (UNESP), campus de Franca
Historicamente, as grandes potências têm investido no desenvolvimento de novas tecnologias militares para obter vantagens estratégicas em relação aos seus rivais. Assim, por exemplo, foram criados contemporaneamente os armamentos nucleares, as armas ultrassônicas (AUS), as bombas EMPs (Electronic Magnetic Pulse) os caças de quinta geração, os drones, além dos modernos sistemas de monitoramento e localização (GPS, Strelets), entre uma diversidade de tecnologias mais ou menos significativas militarmente. Na ordem global atual, essas inovações têm sido lideradas, principalmente, pelos Estados Unidos e pela Rússia que apresentam níveis semelhantes de poderio militar, tal qual a China, que tem se destacado nos últimos anos nos setores espacial e aeroespacial. Todavia, o Estado russo está desenvolvendo uma tecnologia que poderia lhe dar uma relativa vantagem em relação ao seu principal rival, os Estados Unidos, pelo menos no que condiz à infantaria, já que por meio de seu projeto Rátnik (“Guerreiro” em português) está conseguindo transformar o seu soldado em um verdadeiro ciborgue, como se tivesse saído de um filme de ficção científica.
Para seu criador, Manfred Clynes, o termo ciborgue foi cunhado em 1960 e é uma contração de organismo cibernético – pois em inglês cyborg consiste da junção das palavras cybernetic organism – que significa a incorporação de estruturas robóticas em um organismo biológico, sem que ele sofra modificações da sua hereditariedade. Clynes era engenheiro biomédico e levantou a hipótese de desenvolver um organismo modificado, parte máquina e parte humana, que potencializasse as chances de exploração do espaço sideral. O ciborgue seria a solução das limitações humanas, já que sofreria melhorias bioquímicas, psicológicas e físicas, proporcionadas por suas partes eletrônicas e assim, o homem estaria “livre” de suas limitações e uma nova era evolucionista começaria.
Por outro lado, Donna Haraway, filósofa e teórica do “ciberfeminisno”, discorda do conceito defendido por Clynes , porém dá uma definição crucial do termo ciborgue em seu ensaio “Manifesto Ciborgue”: “um ciborgue é um organismo cibernético, um híbrido de máquina e organismo, uma criatura de realidade social e também uma criatura de ficção” (Haraway, 1991, p. 36). Para ela, a ideia de ciborgue alude a um corpo-máquina de alta performance, no qual habita um humano, sendo toda a sociedade ciborgue, pois a vida atual provoca uma tênue relação entre tecnologia e pessoas, tornando-se impossível diferenciar onde termina o humano e começa o artificial. Já as definições mais modernas de Chris Gray e Figueroa-Sarriera de 1995, incluem todo o tipo de intervenção tecnológica no corpo humano, seja o uso de medicamentos ou psicotrópicos, seja a interconectividade do homem com instrumentos de mecânica, informática ou eletrônica.
As definições dos autores apresentam oscilações quanto ao conceito do que é ciborgue, porém, concordam que o amálgama entre corpo biológico e máquina potencializa as capacidades sensoriais e cognitivas, além da resistência e da durabilidade da espécie humana. O homem se torna capaz de dar grandes saltos evolutivos em um curto prazo de tempo e de romper barreiras biológicas intransponíveis, como deter uma superforça proveniente de exoesqueletos ou usar um simples marca-passo que regula os batimentos cardíacos de seu usuário, postergando sua vida.
O Estado russo se inspirou na terminologia da palavra ciborgue e procurou criar um exército de “humanos-máquina”. Assim, impulsou a concepção do projeto Rátnik em meados de 2011. O audacioso projeto é dividido em três etapas: Rátnik-1, Ratnik-2 e Rátnik-3. Os dois primeiros apresentam armadura corporal modernizada, visão noturna/térmica, um moderno sistema de comunicação via voz e vídeo (Strelets), muito inspirado no sistema de combate francês FELIN, dentre outros equipamentos. Vale destacar que o Rátnik-2 apresenta um sistema de camuflagem inteligente, que muda conforme o ambiente de combate do soldado, além do traje que suporta temperaturas entre -30ºC e 50ºC. Os trajes Rátnik começaram a ser entregues às Forças Armadas Russas ainda em 2015, e vestem as tropas das forças especiais (Spetsnaz), os fuzileiros da Frota do Pacífico e os snipers da base militar russa na Armênia, e posteriormente, os soldados russos que combatiam na guerra civil da Síria. Segundo o governo, até 2020 todos os combatentes estarão equipados com o traje. O Tenente General Andrey Grigoriev, chefe da Advanced Research Foundation (ARF) responsável pelo projeto Rátnik, disse em uma entrevista em 2018 à rede de televisão estatal russa, RIA Novosti, como seria o campo de batalha do futuro: “Eu vejo uma grande robotização, de fato, a guerra do futuro envolverá operadores e máquinas, e não soldados atirando uns nos outros no campo de batalha”.
O principal avanço que a Rússia vem dando para a concretização de seu exército ciborgue, se dá pela terceira etapa do projeto Rátnik, no qual o traje será composto por dois exoesqueletos: um exoesqueleto ativo, cujas dobradiças são equipadas com movimentações hidráulicas e elétricas e um exoesqueleto passivo, servindo unicamente para reduzir a carga sobre as articulações e proteger os usuários de choques balísticos. Somado a isso, o traje apresentaria um tecido invisível à imagem infravermelha com camuflagem inteligente e um capacete com HUD (head up display) exibindo informações sobre o traje, o ambiente, as horas e o tipo de armamento e vestimenta do inimigo. O exoesqueleto daria características sobre-humanas para os soldados que o usarem, pois também terá um sistema com a função de estancar o sangramento de seus combatentes feridos, munindo-os de uma vantagem substancial no campo de batalha, além de potencializar o tempo de marcha dos soldados em campo de batalha.
Enquanto os russos pretendem equipar suas Forças Armadas até 2027 com a etapa mais avançada do traje, os Estados Unidos vêm acumulando alguns fracassos na criação de trajes similares, como é o caso do projeto TALOS (Tactical Assault Light Opeartor Suit) ou “iron man”, que tinha a mesma proposta do Rátnik -3, porém foi descartado pela dificuldade em adequá-lo a um ambiente de combate real. Além do projeto TALOS, os Estados Unidos junto com a empresa estadunidense Lockheed Martin vêm desenvolvendo em estágio embrionário um novo exoesqueleto para os soldados, chamado de ONYX. Porém, segundo o próprio Pentágono, ainda está muito longe de ser empregado em campo de batalha.
Tais situações sinalizam, por enquanto, vantagem estratégica para a Rússia em combate de solo perante os Estados Unidos. A competição estratégica entre os Estados russo e estadunidense remonta à Guerra Fria, seja no âmbito espacial, cultural, tecnológico ou armamentista, com destaque para as ogivas nucleares de ambos os lados. Os dois países tiveram um acirramento militar muito forte, quase equiparáveis, todavia, a introdução dos ciborgues nas forças armadas russas demonstra uma clara vantagem russa sobre o seu rival estratégico, o que se torna benéfico para o país, pois apesar de ter uma defasagem marítima em comparação aos Estados Unidos consegue se lançar como propulsor de uma tecnologia quase que ficcional e assim, coloca em xeque o domínio estadunidense em guerra terrestre.
A primazia de desenvolvimento do Estado russo sobre essa nova tecnologia também é capaz de beneficiá-lo do ponto de vista econômico, já que ele pode vender os trajes ciborgues para parceiros estratégicos, tornando-os dependentes de sua tecnologia e assim maximizar seu poder em suas zonas de influência, procurando mitigar a influência estadunidense, ou despertar o interesse de seus parceiros para investirem no desenvolvimento do traje, logo, diminuindo os custos de sua produção. Ademais, a Rússia é uma grande especialista em guerra híbrida, assim como os Estados Unidos, porém com a concretização da última etapa de seu projeto, ela poderia obter vantagens substanciais no combate a grupos terroristas, contra insurgentes e guerrilheiros, ou seja, combates irregulares, já que poderá aplicar todo o seu conhecimento adquirido em táticas de guerra híbrida com a nova tecnologia desenvolvida.
Desse modo, o Estado russo encontrou o armamento amalgamador da guerra híbrida, o soldado híbrido, metade máquina e metade humano, adequado ao novo ambiente de combate que caracteriza o século XXI. No qual, vem como uma resposta ao árduo processo de revitalização das forças armadas russas, que passaram por um momento de encolhimento e defasagem no pós-Guerra Fria. Assim, o ciborgue pode ser uma das tecnologias bélicas responsáveis por recuperar o status e prestígio que a Rússia apresentava no sistema internacional antes do esfacelamento da União Soviética.
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