Nas últimas semanas surpreendeu-nos o desaparecimento do submarino argentino ARA San Juan. A suspensão nas comunicações entre a Marinha argentina e a tripulação do submarino levou a uma incessante busca, animada inicialmente pela esperança de resgate das 44 pessoas que se encontravam a bordo. A comoção foi geral. O assombro, talvez, não tanto. Hoje sabe-se que um dos comunicados enviados à Marinha argentina pelo submarino dizia respeito a uma situação de avaria no casco e consequente entrada de água, o que levou a um curto-circuito e, posteriormente, a um incêndio. Terminadas as buscas pelos tripulantes do submarino, segundo informe da Armada argentina, fica a questão: em que medida tal tragédia poderia ter sido evitada pela manutenção apropriada dos equipamentos militares argentinos?
Em entrevista ao podcast UNESP, o professor Héctor Luis Saint-Pierre ressaltava o caráter de obsolescência das Forças Armadas argentinas, apontando para o estado defasado dos equipamentos argentinos. Tal situação não é exclusividade da Armada argentina. São diversas as reclamações também no Brasil sobre a situação de desgaste das forças militares do País. O caso FX-2 é, nesse sentido, simbólico pois trata-se de reaparelhamento da Força Aérea Brasileira (FAB) num cenário de deterioração dos caças da FAB. Talvez à exceção das forças chilenas, que contam com a Lei do Cobre como fonte orçamentária relativamente fixa, as Forças Armadas sul-americanas tendem a se deparar com o problema financeiro e com questionamentos sobre a legitimidade dos gastos militares – “canhões ou manteiga” tende a ser pelos anos que se seguem um dilema imposto aos países da região.
Nesse cenário, é interessante notar que movimentos individuais voltados ao rearmamento dos países tendem a ser compreendidos – ou, melhor dito, taxados – como indícios de uma corrida armamentista supostamente em voga na região. Assim, a compra de caças russos pelo governo venezuelano é visto como uma ameaça por Bogotá, assim como o investimento no setor militar por parte de Brasília é discutido em termos de ameaça a Buenos Aires, Assunção e Montevidéu. Tais dinâmicas, entretanto, são anacrônicas.
Quando, em 2008, foram iniciados os diálogos para a conformação de um fórum sul-americano de Defesa, os países da região entravam num processo que envolvia, sobretudo, a construção de relações baseadas na confiança em detrimento de percepções mútuas de ameaça. Os processos de fomento à confiança mútua, simbolizado dentre outros por iniciativas de transparência em gastos militares, são fundamentais para a compreensão da anacronismo inerente ao argumento de que haveria uma corrida armamentista na região. Evidentemente, não se trata aqui de supervalorizar o órgão em si, uma vez que são inúmeras as dificuldades pelas quais vêm passando em termos de concertação regional, principalmente após a conformação do novo quadro político regional – uma guinada à direita, em relação ao cenário anteriormente vigente. Vale, entretanto, ressaltar que a criação de uma instituição, um fórum de concertação política se se prefere, voltada para a temática da Defesa exclusivo aos países da região é indicador de que, apesar de insistentes desconfianças, é remoto um cenário de conflito armado entre os Estados sul-americanos. Assim, a iniciativa de conformação do Conselho de Defesa Sul-Americano pode ser considerada como marco no aprofundamento dos laços regionais e um avanço no que diz respeito à superação das desconfianças e percepções de ameaça. Não se dissuade aquele com quem se coopera.
Com isso podemos agora retomar ao caso nefasto do ARA San Juan.
É fundamental que se considere a necessidade básica de manutenção dos equipamentos das forças armadas regionais. Se se comprovar que o que houve, de fato, deveu-se a uma avaria no casco do submarino levanta-se novamente o questionamento sobre o descaso dos governos para com a manutenção das forças. Na já mencionada entrevista, Saint-Pierre destaca muito apropriadamente que “não é bom ter esse tipo de acidente para que se dê esse tipo de discussão. Quem tem forças armadas deve prestar atenção na manutenção dessas forças armadas”. Uma suposta corrida armamentista não pode ser considerada justificativa plausível para a desatenção ao estado deteriorado das forças.
Apenas para citar uma alternativa, vale retomar a discussão sobre a integração da Base Industrial de Defesa da região. O debate em questão gira em torno da necessidade de que a região garanta a manutenção de suas forças, bem como adquira certo grau de autonomia frente a atores exógenos. Nesse cenário, no marco da cooperação regional em defesa, a integração da base industrial sul-americana é, não raro, apresentada como meio para que se alcance os objetivos supracitados. Dentre os argumentos a favor podemos citar: ganho de escala, redução de custos, maior nível de coordenação e de articulação entre as diferentes forças armadas regionais, fomento à ciência e à tecnologia de desenvolvimento autóctone. Em suma, são diversos os ganhos apontados. Como símbolo de iniciativa nesse sentido vale destacar o projeto para o desenvolvimento de um veículo aéreo não tripulado, o VANT UNASUL. Embora sejam ainda remotos os ganhos em termos de recursos materiais advindos desse projeto, considera-se que em 2014 os atores envolvidos no mesmo já avançavam para a definição dos requisitos operacionais do equipamento, o que denota que num cenário de efetiva vontade política há potencial a ser aproveitado na concertação regional que viabilizaria a discussão que se faz necessária sobre reaparelhamento e manutenção de capacidades combativas das forças.
Reiteramos que o desenvolvimento de projetos como o citado demanda alto comprometimento político e relativo grau de harmonização de interesses – fatores que fazem com que empreendimentos para produção conjunta de armamentos muitas vezes não se desenvolvam em sua plenitude. Entretanto, entendemos que as dificuldades inerentes a iniciativas desta magnitude não devem servir de justificativa para o atual grau de negligência ao qual são, muitas vezes, submetidas as forças sul-americanas. Falar em corrida armamentista ofusca uma discussão mais importante, a saber: como garantir a capacidade dissuasória da região num cenário de constrangimentos econômicos internos aos países e de maneira a não reavivar antigas desconfianças? A busca pela resposta a tal pergunta é basilar para a discussão sobre a viabilidade não apenas de uma base industrial de defesa integrada, mas do próprio projeto de integração regional.
Jorge Matheus Oliveira Rodrigues é mestrando em Relações Internacionais pelo Programa de Pós-Graduação San Tiago Dantas (Unesp, Unicamp, PUC/SP) e membro do Grupo de Estudos de Defesa e Segurança (GEDES) e do Grupo de Estudos Comparados em Política Externa e Defesa (COPEDE).
Imagem: Mapa da Argentina. Por: NordNordWest.