Jorge M. Oliveira Rodrigues*
No dia 13 de Outubro 2018, em reportagem do jornal O Globo, lia-se: “Uruguai manda prender comandante do Exército por dar opinião sobre lei”. Em comunicado à impressa o presidente uruguaio, Tabaré Vázquez, se limitou a afirmar: “o comandante em chefe do Exército atua em boa fé e com a lealdade institucional que devem ter as Forças Armadas, porém se equivocou e, em função disso, está sancionado”. Tabaré Vázquez reforçava os preceitos constitucionais afirmando que não seria da alçada militar comentar sobre política. Reafirmava, assim, a República uruguaia.
Dos lados de cá, em Terra Brasilis, a República ainda é objetivo distante: desejada por todos, ferida por muitos. Nessa corrida em que fôlego e virulência concorrem para definir o ganhador, nosso país se encontra sem ar e sem forças. Desde o processo ilegítimo que destituiu a presidenta Dilma Rousseff do cargo, em 2016, que deparamo-nos com recorrentes manifestações por parte de setores das forças armadas que, no mínimo, fazem questionar se há de fato República no Brasil. Por certo, não se trata de problema datado. Mesmo com a criação do Ministério da Defesa em 1999 nunca chegamos nem perto de consolidar a autoridade civil sobre os militares.
Se por um lado, o duro processo de construção da Democracia supõe que todos tenham garantidos os seus direitos de voz, é fundamental que sejam respeitados os preceitos constitucionais e os regulamentos que pautam a atividade militar no Brasil. Pelo caráter específico de suas funções constitucionais, aos militares da ativa não é facultada a atuação política. Por outro lado, aos civis exige-se assumir a responsabilidade pela construção do controle civil no Brasil, introduzindo, assim, um dos pilares para a constituição de tradições republicanas no país. Ao fim, enquanto o Uruguai se agiganta atestando o primado da Política, no Brasil os poderes se acovardam. À medida que as autoridades civis se recusam a ocupar o espaço que lhes cabe, o vácuo de poder remanescente é ocupado por aqueles cuja função é, essencialmente, instrumental.
No Executivo, é preocupante a ascensão de um general da ativa ao cargo de ministro da Defesa. Na primeira metade de 2018, no marco da transferência de Raul Jungmann ao Ministério da Segurança Pública, assumia a pasta o general Silva e Luna. Sua ascensão ao cargo não representa, em si, quebra do ordenamento constitucional. Possui, entretanto, efeito simbólico considerável, que enfraquece as iniciativas de instituir-se o controle civil das forças armadas. Desde a criação do Ministério da Defesa em 1999, foram civis aqueles que encabeçaram o comando da pasta – afirmação que deve ser acompanhada de uma reflexão profunda quanto à presença massiva de militares na pasta. Fato é que depois de quase 20 anos, num quadro de instabilidade política, a pasta se encontra sob o comando militar.
No Judiciário, a nomeação de um general de quatro estrelas para sua assessoria pelo atual presidente do Supremo Tribunal Federal, Dias Toffoli, chama atenção pelo seu ineditismo e simbolismo. Trata-se do militar da reserva, Fernando de Azevedo e Silva. A justificativa apresentada é que o militar assessoria o agora presidente do STF em assuntos relativos à segurança – o que, por si só, é problemático uma vez que a função militar é a guerra, não a segurança pública.
Ademais, a corrida eleitoral está marcada por um aumento considerável de candidatos ligados às Forças Armadas – movimento que já em Abril deste ano dava sinais de fortalecimento. Em comparação com as eleições de 2014 o número de candidatos militares cresceu em 41%. Os dados dizem respeito à candidaturas no âmbito do Executivo e do Legislativo e contabilizam também a participação de militares da ativa que, não sendo eleitos, retornam às suas respectivas forças. O aumento destas candidaturas é associado, dentre outros fatores, a uma insatisfação da população com a “política tradicional”. Tomados pelo discurso de que “todo político é corrupto”, a sociedade migra àquele que julga ser o último reduto da moral: os militares.
Terminado o primeiro turno, confirma-se o movimento de “politização” dos militares. Na Câmara Federal 6 militares foram eleitos em 2018, todos do PSL. Os futuros deputados são: general Sebastião Roberto Peternelli, por São Paulo; general Elieser Girão Monteiro, pelo Rio Grande do Norte; coronel João Chrisóstomo de Moura, por Roraima; coronel Luiz Armando Schroeder Reis por Santa Catarina; o major Vitor Hugo de Araújo Almeida, por Roraima; e o subtenente Hélio Fernando Barbosa Lopes, pelo Rio de Janeiro. No Senado, o Espírito Santo elegeu o ex-militar e atual instrutor de defesa pessoal, Marcos do Val (PPS). Movimento similar, porém não necessariamente inédito, também é percebido em relação aos agentes de segurança pública. O estado de São Paulo, por exemplo, elegeu para o Senado o major da Política Militar, Sergio Olímpio Gomes, o Major Olímpio (PSL). Na mesma linha, o Rio Grande do Norte elegeu ao cargo o capitão da Polícia Militar, Eann Styvenson (REDE).
Não bastassem os fatos elencados, os últimos anos têm sido marcados pela verborragia das Forças Armadas. No dia 09 de Setembro, em entrevista à Folha de S. Paulo e falando com uma autoridade que não lhe compete, o comandante do Exército, general Eduardo Villas Bôas, afirmava que com o acirramento dos ânimos na sociedade até a legitimidade de um novo governo poderia ser questionada. Chamado a opinar sobre o posicionamento da ONU acerca da participação de Lula nas eleições, Villas Boas taxa o manifesto de “tentativa de invasão da soberania nacional”. Anteriormente, em Abril deste ano, o general suscitou uma onda cibernética de ataques à democracia ao manifestar-se publicamente quanto a julgamento do Supremo Tribunal Federal que decidiria sobre habeas corpus ao ex-presidente Lula da Silva, condenado em segunda instância por corrupção. Ao posicionar-se, o Comandante do Exército vestiu de legitimidade outros generais da ativa que se sentiram no direito de manifestar, na Ágora virtual, quanto aos rumos políticos do país. Com ares conspiratórios, esse foi, senão o primeiro, o mais volumoso gole de cicuta dado à nossa Democracia.
Finalizando a série de ingerências políticas, temos episódio simbólico do escrutínio. Entre Maio e Junho deste ano, o general Villas Bôas manteve uma série de reuniões com os candidatos à Presidência da República. Segundo o general, as reuniões serviram apenas para a apresentação de questões relativas à Defesa Nacional. Mas a imagem que fica é outra. O episódio é símbolo da insistência de setores das Forças Armadas em se colocar como uma espécie de quarto poder, de cuja tutela dependeria, conforme supõem, a própria existência do Estado brasileiro.
E assim, entre entrevistas e pronunciamentos no Twitter, construiu-se o caminho das pedras que resultou no aumento das desconfianças quanto a uma possível intervenção militar e, por fim, no enfraquecimento da República. Em todos os casos, o problema é a insistência de setores militares em agir enquanto atores políticos. Ao contrário do que faz parecer o questionamento cínico de determinados setores da sociedade, não se trata de advogar por uma suposta “sub-cidadania” aos militares, como se fossem menos brasileiros ou menos humanos. É discussão que extrapola, necessariamente, aspectos jurídicos e constitucionais. É uma discussão sobre modelo de Estado. É uma discussão sobre República.
Sabiamente anuncia Elio Gaspari: “por maior que seja a confusão existente, quando se chamam os militares para botar ordem no circo, cria-se outra confusão, que nem eles são capazes de prever”. É sintomático do momento político em que vivemos no Brasil que os espaços políticos estejam sendo ocupados por setores militares ou por grupos vinculados.
De Gaspari, passamos à Estratégia: se a racionalidade da Guerra é dada pela Política, o inverso não pode ser verdadeiro. A gramática da Guerra, já dizia o general Von Clausewitz, não se sobrepõe à Política simplesmente porque nela não encontra encaixe. Assim, aos militares que se aventuram na política resta uma opção: deixar de ser militar. Nesse processo as Forças Armadas brasileiras se afundam numa dinâmica de desprofissionalização, perdendo aptidão às funções que lhes são previstas constitucionalmente. Ao fazê-lo, o militar perde sua essência e faz desaparecer a essência da Política.
Sufoca-se a Política, distancia-se a República e militariza-se a sociedade. Ao fim, com a proximidade do segundo turno, resta-nos o drama de Elio Gaspari: “quando não se sabe o nome do ministro da Educação, mas conhece-se o de generais, coisa ruim pode acontecer”.
Imagem: Soldados do Exército Brasileiro durante o desfile militar do Dia da Independência de 2003 em Brasília, Brasil. Por: Victor Soares/Agência Brasil.
*Jorge Rodrigues é mestrando em Relações Internacionais pelo Programa de Pós-Graduação San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP, PUC-SP). Membro e Pesquisador do Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional (GEDES) e do Grupo de Grupo de Estudos Críticos sobre Política de Defesa, Cooperação, Segurança e Paz (COOP&PAZ).