No dia 11 de dezembro, o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) completou setenta anos. Esse órgão da ONU foi criado em 1946, logo após a Segunda Guerra Mundial, com o objetivo de prestar assistência emergencial às crianças que sofreram os impactos do conflito armado – como fome, doenças e falta de estrutura familiar. O aniversário do Unicef nos lembra que, mesmo setenta anos depois, ainda presenciamos um contexto de conflitos armados no qual as crianças têm que conviver com a violência.
A relação entre crianças e conflitos armados é estreita e muito anterior à Segunda Guerra. Em diferentes fases da história como na sociedade espartana, nas Cruzadas da Idade Média, na Guerra Civil Americana, na Guerra do Paraguai e na Primeira Guerra Mundial, já havia relatos de criança envolvidas diretamente nas hostilidades ou que enfrentavam as consequências da violência. Entretanto, somente no século XX – sobretudo após a publicação de documentos relevantes como a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), a Declaração dos Direitos da Criança (1959) e a Convenção sobre os Direitos da Criança(1989) – o tema ganhou maior repercussão internacional e o Unicef destacou-se como um órgão dedicado ao bem-estar das crianças.
De fato, muitos avanços foram conquistados desde 1946. O Unicef produziu diversos relatórios apresentando dados sobre as condições nas quais as crianças vivem e denunciando os principais problemas que elas enfrentam em todo o mundo. O órgão também desempenha a função de pressionar os Estados-membros da ONU a reiterar o compromisso com os direitos da criança. O Unicef ainda ampliou seu escopo de atuação e passou a abarcar – além da proteção da criança em conflitos armados – questões como sobrevivência e desenvolvimento infantil, educação básica e igualdade de gênero, crianças com HIV/AIDS, erradicação da pobreza extrema e fome, ensino primário universal, promoção da igualdade entre sexos, autonomia da mulher e saúde materna. Portanto, houve iniciativas para acompanhar a condição de vida das crianças e cobrar maior comprometimento dos Estados com a proteção da infância.
Porém, quando focamos mais em termos práticos, vemos que a violência gerada pelos conflitos armados continua atingindo as crianças de forma preocupante. Os danos aos quais as crianças estão expostas em um conflito são diversos: elas são utilizadas como soldados; perdem familiares e ficam desamparadas; sofrem com as instabilidades políticas e econômicas dos governos locais que, muitas vezes, não conseguem fornecer às crianças seus direitos mais básicos; sofrem com a violência deliberada que não poupa civis; são vítimas de abusos sexuais, físicos e psicológicos.
Na conjuntura atual, a proteção de crianças em conflitos armados é um assunto especialmente necessário e o trabalho do Unicef é ainda mais desafiador: o órgão tem que acompanhar uma pluralidade de conflitos armados intra ou inter estatais que se proliferam nas mais diferentes regiões do mundo e que envolvem atores estatais e não-estatais. Além disso, há uma preocupação não somente com a recuperação de crianças no pós-guerra, mas também com a proteção das crianças durante os conflitos armados. No leste de Aleppo, por exemplo, estima-se que 40% da população é formada por crianças. Quando ocorre um bombardeio em um local assim é quase inevitável que as crianças estejam entre as vítimas. Mesmo quando os ataques cessam, as crianças que sobrevivem deparam-se com a falta de infra-estrutura, perda de familiares e danos físicos e psicológicos. Ou seja, toda uma geração de crianças acaba sendo afetada pela ausência de condições básicas para seu pleno desenvolvimento. Quando as famílias que vivem em zonas de conflito tentam buscar melhores condições em outros países, as crianças também se encontram em situação vulnerável, pois ficam expostas a rotas de imigração perigosas.
O caso do menino sírio, Aylan Kurdi, que foi encontrado morto em uma praia da Turquia é um exemplo das dificuldades que as crianças enfrentam nessas situações. A imagem da Aylan repercutiu na mídia e despertou a atenção para os perigos que os refugiados enfrentam ao tentar deixar as áreas de guerra. Mais recentemente, outra imagem também de um menino sírio se espalhou pelo mundo: a foto mostra Omran Daqneesh coberto de sangue e poeira, após ser resgatado dos escombros de um bombardeio em Aleppo. Apesar de tais imagens chocarem a sociedade internacional, sabemos que essas não serão as últimas fotos de crianças em meio a catástrofes humanitárias.
Atualmente, o Unicef tem o papel de acompanhar as condições em que as crianças se encontram em meio aos conflitos, articular modos de protegê-las e registrar os abusos a que estão expostas. O fato de já existir uma legislação que protege as crianças durante as hostilidades – diferentemente do contexto da Segunda Guerra, em que essa proteção não era assegurada formalmente – faz com que exista uma pressão internacional mais forte para que elas sejam poupadas e protegidas. Assim como a Segunda Guerra foi um marco para a proteção dos direitos da criança, pois somente após esse conflito conferiu-se maior atenção à situação das crianças, os conflitos armados atuais também podem ser um símbolo da necessidade de repensar estratégias de apoio às crianças em contextos de guerras, de reforçar a fiscalização dos direitos que estão sendo infringidos constantemente e de incentivar a continuidade do trabalho do Unicef.
Giovanna Ayres Arantes de Paiva é doutoranda em Relações Internacionais pelo Programa de Pós-Graduação San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP, PUC-SP) e pesquisadora do GEDES.
Imagem: Menino com AK-47. By: Kevin Lafferty.