Imagem por USAID

Participação de atores humanitários em zonas de conflito: emergência e risco na Etiópia   

Beatrice Daudt Bandeira*

 

O governo central da Etiópia anunciou em 28 de junho de 2021 um “cessar-fogo unilateral” à uma escalada de hostilidades e violência que se estende desde novembro de 2020 no Tigré. A região foi destaque durante os últimos meses pelas ofensivas cometidas em consequência de disputas políticas e étnicas, principalmente entre os grupos oromo – o maior do país – e os tigrínios. O conflito teve início quando o governo do primeiro-ministro da Etiópia, Abiy Ahmed, no poder desde 2018, membro da etnia oromo – que já era suspeito de perseguição pela representação Tigré –, acusou a Frente de Libertação dos Povos do Tigré (FLPT), partido político que já desempenhou grande influência no país, de atacar e roubar equipamentos bélicos do governo central. A partir de então, foi deliberado o início de uma sequência de ofensivas militares entre os dois lados e suas forças aliadas – principalmente grupos de milícias e forças da Eritreia aliadas ao governo etíope.

A invasão do Tigré pelas forças de Abiy Ahmed em novembro de 2020 gerou preocupação entre diversos líderes mundiais, como António Guterres, Secretário-Geral das Nações Unidas e o Papa Francisco, além de organizações regionais como a União Africana – cujo acionamento do Conselho de Paz e Segurança foi rejeitado pelo próprio governo central da Etiópia, que faz parte da organização e é membro do Conselho, sob o argumento de ferir sua soberania nacional. No Conselho de Segurança das Nações Unidas as discussões também não resultaram em decisão comum entre os Estados membros para qualquer ação efetiva sobre o que acontece entre os grupos beligerantes.

Em poucos meses, o conflito entre o governo etíope e a FLPT resultou em uma crise de larga escala. São mais de 350 mil pessoas em situação catastrófica de fome, milhares de refugiados etíopes, que se abrigam principalmente no Sudão, e assassinatos de civis. De forma a agravar ainda mais este cenário, entre novembro de 2020 e abril de 2021, período de maior intensificação do conflito, o acesso de trabalhadores humanitários às vítimas esteve constantemente restringido, principalmente pelo governo etíope. A restrição de funcionamento das redes de comunicação (principalmente internet e telefone) na província do Tigré ainda é, nos dias de hoje, mais uma problemática para as operações humanitárias.

O temor de episódios de violência e de se expor a esta situação de insegurança são fatores também prejudiciais para as atividades de atores humanitários no conflito. No dia 25 de junho, por exemplo, a organização Médicos Sem Fronteiras (MSF) foi alvo de ataques que resultaram na morte de três de seus colaboradores na região do Tigré. Outro exemplo aconteceu em 28 de junho contra as instalações do Unicef na cidade de Mekele, capital da província do Tigré. Esse tipo de violência evidencia o risco para trabalhadores humanitários na região; a perda de alcance dos serviços prestados, com foco no bem-estar da população vulnerável; e a limitação do potencial de um mapeamento mais extenso que permitiria, em outras circunstâncias, uma melhor compreensão da realidade em todo o território.

Além do MSF e do Unicef,  o trabalho de atores humanitários internacionais na região – como o Comitê Internacional da Cruz Vermelha e o Escritório das Nações Unidas para a Coordenação de Assuntos Humanitários, dentre outros – se traduz em atividades de atendimento e proteção do bem-estar da população necessitada. Para que isso aconteça, portanto, é fundamental evitar e responder ao sofrimento humano; atuar de forma ética perante as consequências diretas do conflito sem discriminação de gênero, raça, etnia, religião, ou qualquer outra distinção; e não estar sujeitos aos arranjos de teor político, econômico, militar, ou outros interesses diretos no conflito, que não o de salvar vidas.

Por outro lado, mesmo que sejam essas as expectativas de impacto positivo que podem surgir da ajuda humanitária internacional, o desprezo dos grupos beligerantes – grupos ofensivos estatais e não-estatais – às normas do Direito Internacional Humanitário, no Tigré, leva o debate para outro rumo. Mostra que, durante o período de maior iminência de hostilidade, para quem deliberou sobre os ataques e esteve à frente das ofensivas, a proteção de civis não foi uma prioridade. Logo, o acesso irrestrito de organizações humanitárias ao território da região do Tigré, a segurança dos trabalhadores humanitários e a proteção de civis passaram ao largo da preocupação vital no conflito.

Desde o início da guerra, os ataques deliberados contra civis tornaram a situação humanitária ainda mais preocupante. O Tigré fica na região mais ao norte da Etiópia, fazendo fronteira com o vizinho Eritreia, que enxergava a FLPT há tempos como uma ameaça potencial. De forma a complicar ainda mais as tensões, a participação de forças militares da Eritreia, aliada ao governo do etíope Abiy Ahmed – que ganhou o Nobel da Paz em 2019 justamente por contribuir para as negociações de paz entre os dois países -, no caso do Tigré, ocasionou uma escalada de acusações sobre seu envolvimento em violência e violações de direitos humanos, incluindo assassinatos, agressões sexuais e morte por fome de civis na região.

Diante da crise instalada, é impensável desviar a atenção dos oito meses de violência constante contra civis e bloqueio de rotas para abastecimento e fornecimento de ajuda humanitária. Com todos estes fatores, a questão agora é saber se os responsáveis pelas atrocidades e graves violações dos direitos humanos e humanitário, incluindo os ataques violentos contra representações de ajuda internacional, serão devidamente denunciados e investigados pelos órgãos internacionais. Finalmente, mesmo depois que as forças do Tigré retomaram o controle de Mekele e após o anúncio de cessar-fogo e a retirada das tropas do governo central, o cenário ainda é frágil e longe do fortalecimento da paz e das relações entre adversários.

 

Imagem: USAID promove campanha no Tigré. Por: USAID/Wikimedia Commons.

* Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (UNESP – Unicamp – PUC-SP) e pesquisadora do Grupo de Defesa e Segurança Internacional (GEDES). Contato: beatricedaudtb@gmail.com

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