12 de fevereiro é considerado o Dia Internacional Contra o Uso de Crianças-Soldado. Nessa data, em 2002, um dos principais documentos acerca do emprego de crianças-soldado entrou em vigor: o Protocolo Facultativo à Convenção sobre os Direitos da Crianças Relativo ao Envolvimento de Crianças em Conflitos Armados, atualmente assinado por mais de cem países, incluindo o Brasil. Esse Protocolo é resultado de um processo de estabelecimento dos direitos da criança que ocorreu, sobretudo, a partir da segunda metade do século XX, quando alguns documentos internacionais sobre a infância foram assinados como a Declaração dos Direitos da Criança (1959), a Convenção sobre os Direitos da Criança (1989) e a Convenção sobre Proibição das Piores Formas de Trabalho Infantil (1999). De modo geral, todos esses instrumentos procuram estabelecer que a criança deve ser poupada da violência, da guerra, do trabalho e da exploração sexual e garante direito ao lazer, à educação e à saúde.
O objetivo de lembrar anualmente o dia 12 de fevereiro é chamar a atenção para o fato de que as crianças continuam sendo empregadas nos conflitos armados. Uma das metas do Protocolo Facultativo é garantir que nenhuma pessoa com menos de 18 anos seja utilizada ou treinada por forças armadas, grupos armados e outras organizações militares em qualquer função – incluindo funções que não envolvam o uso de armas – e que os menores de 18 anos que já estão engajados em algum serviço militar sejam liberados de suas funções e recebam a devida assistência para retornar às suas vidas civis.
Logo, o propósito do Protocolo não é apenas impedir que crianças sejam usadas em diversas funções durante os conflitos armado, mas prevenir que crianças sejam incentivadas a participar de atividades militares. Esse incentivo pode ocorrer de várias formas, até mesmo de formas mais sutis – como dar armas de presente para crianças ou ensiná-las a atirar, prática recorrente em muitos países nos quais o acesso a armas de fogo é amplo. Atingir um consenso global acerca da idade apropriada para entrar nas forças armadas e nas demais atividades militares é uma meta difícil de ser atingida, pois esbarra nas legislações internas de alguns países que consentem que menores de 18 anos participem de serviços militares. É o caso do Reino Unido que permite que pessoas com 16 anos juntem-se às suas forças armadas. Esse exemplo nos lembra que quando falamos em crianças-soldado não estamos nos referindo somente a crianças que estejam envolvidas em algum conflito armado em uma região pobre – imagem tradicionalmente reproduzida pela mídia, pelos documentos publicados pela ONU e por algumas ONGs e pelas histórias contadas nos filmes. De acordo com o Unicef, o termo criança-soldado designa qualquer menor de 18 anos que cumpre alguma função junto a uma força armada ou grupo armado– atuando como cozinheiras, escravas sexuais, espiãs, carregadores de munição, portando armas, etc. De fato, é um conceito amplo que busca abarcar as diversas maneiras que a atividade militar se manifesta para as crianças. Assim, trata-se de uma questão mais profunda que envolve conscientizar as crianças e os adultos de que o trabalho militar exige maturidade física e psicológica para ser realizado.
Outro desafio importante é nomear publicamente e punir as partes que empregam crianças-soldado diante do Tribunal Penal Internacional ou cortes nacionais. É mais simples enquadrar atores estatais, exigindo um comprometimento maior e mudança de postura, visto que muitos Estados são membros da ONU e signatários do Protocolo. Entretanto, existem atores não estatais – como o Estado Islâmico – que também utilizam crianças. Controlar esses atores, mapear de que forma as crianças estão sendo utilizadas, punir os responsáveis e impedir que mais crianças sejam recrutadas são objetivos ainda mais complexos. Os mecanismos legais e os documentos de proteção das crianças, apesar de relevantes, são instrumentos limitados que não abrangem toda a dimensão do emprego de crianças-soldado e não dialogam com todos os atores envolvidos na questão. Temos que considerar que os atores não estatais são partes importantes nos conflitos armados atuais, os quais são formados por uma rede de atores que interagem entre si. Estados, grupos armados, organizações internacionais, empresas privadas e forças armadas estabelecem diálogos e relações políticas e econômicas de forma dinâmica. Pensar em modos de impedir a utilização de crianças-soldado deve levar em conta todos esses atores.
Uma forma de atingir grupos e Estados que utilizam crianças-soldado é desarticulá-los, restringindo seu financiamento, dificultando a aquisição de armamentos, componentes militares e munição. Todavia, controlar os fluxos de armamentos – legais e ilegais – que chegam aos grupos e aos países que utilizam crianças demanda um esforço maior de desmontar todo um esquema de enriquecimento que pode afetar diversas regiões do mundo. Esse processo envolve tanto cortar a ajuda militar a países cujas forças armadas recrutam menores de idade, quanto fiscalizar a venda e o tráfico de armas, o que pode comprometer as atividades comerciais de grandes empresas de armamentos e as rotas ilegais utilizadas no tráfico. Assim, a decisão de controlar os armamentos que chegam às crianças-soldado varia também em função de interesses políticos e econômicos e não apenas em função da proteção das crianças. Destarte, a retórica em torno do combate ao emprego de crianças-soldado aparece quando é conveniente trazer à tona o assunto a fim de reforçar que determinado grupo ou país é um inimigo que deve ser combatido e privado de seu financiamento e aquisição de armas. Contudo, quando não há a percepção de inimizade, a proteção da criança aparece somente em segundo plano.
Apesar do esforço de criar documentos internacionais de proteção das crianças, sabemos que ainda há muitos casos de emprego de crianças-soldado em todo o mundo. Na década de 1990, emergiram diversos conflitos em que crianças-soldado eram utilizadas em países como Serra Leoa, Libéria, Moçambique, Uganda, fazendo com que o assunto ganhasse maior repercussão internacional e fosse divulgado pela mídia. O tema foi até mesmo incluído na agenda do Conselho de Segurança da ONU, em 1999. Porém, a utilização de crianças-soldado não se resume aos anos de 1990 e não terminou após esses conflitos. Atualmente, ainda noticiamos casos de crianças envolvidas em conflitos armados em algumas regiões do Oriente Médio, no Sudão do Sul, em Mianmar e na Colômbia, país em que, por outro lado, muitas já foram reintroduzidas à vida civil. Dezesseis anos após o Protocolo Facultativo, ainda precisamos falar sobre as crianças-soldado, refletindo sobre como estabelecer um conceito global de criança e ao mesmo tempo respeitar as particularidades de cada região do mundo; como garantir a dignidade e os direitos da criança; e como garantir que atores estatais e não estatais comprometam-se a não utilizar crianças-soldado. O tema envolve não somente as crianças, mas uma rede de atores e as relações de poder que estabelecem entre si.
Giovanna Ayres é doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais “San Tiago Dantas” (UNESP – UNICAMP – PUC/SP) e pesquisadora do Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional (GEDES).