O começo de outubro é, anualmente, o momento de nos empolgarmos com os resultados do Prêmio Nobel, uma das mais reconhecidas honrarias do mundo. Este ano, o Prêmio Nobel da Paz foi concedido para a Campanha Internacional para a Abolição de Armas Nucleares (ICAN, na sigla em inglês), uma coalizão formada por organizações não-governamentais, por “atrair atenção para as consequências humanitárias catastróficas de qualquer uso de armas nucleares e por seus esforços inovadores para promover um tratado proibindo essas armas”.
Através dos esforços da ICAN, foram realizadas negociações, no âmbito da ONU, para a formulação de um tratado que abolisse as armas nucleares. O Tratado sobre a Proibição de Armas Nucleares, concluído em 07 de julho, estipula que os Estados-parte se comprometem a não desenvolver, testar, produzir, adquirir, possuir ou armazenar armas nucleares ou outros dispositivos explosivos nucleares. Além disso, os termos do tratado incluem a obrigação de não utilizar, ou ameaçar empregar, armas nucleares e de não permitirem a colocação ou instalação de tais dispositivos em seus territórios. Evidentemente, essa iniciativa é embasada em fortes considerações normativas e tem um apelo humanitário fundamental.
O texto foi aprovado com 122 votos favoráveis, mas não estavam presentes representantes dos nove Estados que hoje possuem armamentos nucleares (China, Coreia do Norte, Estados Unidos, França, Índia, Israel, Paquistão, Reino Unido e Rússia), que boicotaram as negociações. Por meio de um comunicado conjunto, os representantes permanentes de Estados Unidos, França e Reino Unido na ONU declararam que seus países nunca pretendem aderir ao tratado e afirmaram que a iniciativa ignora a realidade do ambiente da segurança internacional.
O boicote dos Estados detentores de armas nucleares colocaria, para alguns, o Tratado no plano do utópico e do ineficaz. Contudo, a adesão das potências nucleares não era, de fato, esperada: esses países não têm incentivos reais para abrirem mão de seus arsenais. Mas quais seriam os interesses dos Estados que respaldam o Tratado, se não há perspectiva de que os países nuclearmente armados se somem aos esforços para banimento de tal tipo de armamento?
Em primeiro lugar, o Tratado sobre a Proibição de Armas Nucleares pode ser entendido como uma forma de os Estados reiterarem compromissos assumidos com a não-proliferação no contexto de uma ordem nuclear global muitas vezes vista como desigual, imposta e frágil, estando em pauta então um movimento tanto de reforçar o comprometimento com o valor da não-proliferação desse ordenamento quanto de indicar o intento de sua modificação. Em segundo lugar, esse Tratado pode ser usado por certos governos como forma de fortalecer posicionamentos e pressões, especialmente no que tange ao tema do desarmamento nuclear. Isso é motivado pela percepção, de muitos Estados e atores não-estatais, de que os compromissos assumidos pelas potências nucleares no Tratado de Não-Proliferação Nuclear (TNP), para reduzirem seus arsenais e realizarem esforços concretos para o desarmamento, não foram cumpridos de forma satisfatória. Por fim, a negociação e a formalização do Tratado são uma maneira de se atrair a opinião pública e promover uma conscientização sobre as armas nucleares. Neste sentido, um aumento no envolvimento civil poderia gerar pressões sobre os governos para a promoção do fim da era nuclear e reforçar a posição dos Estados-parte nos dois sentidos citados acima.
Isso nos leva a um ponto central deste debate: qual é a real possibilidade de que a era nuclear chegue ao seu fim? A resposta parece ser que, no contexto atual, essa possibilidade é quase inexistente. De fato, os Estados desprovidos de armamentos nucleares não têm poder de barganha suficiente para fazer com que as potências nucleares destruam seus arsenais e, em assuntos internacionais, a voz democrática da maioria é, frequentemente, subjugada pela imposição silenciosa do poder. Assim, um tratado pode ser aprovado e ratificado por 190 países e, ainda assim, não ter efetividade (podemos nos lembrar, com muita pertinência, do Tratado Compreensivo para Proibição de Testes Nucleares).
Mas essa ineficácia da maioria nem sempre é algo negativo. De fato, há outra pergunta que também é de grande relevância ao considerarmos os esforços da ICAN: será que um mundo sem armas nucleares é algo desejável? Logo de partida, devemos nos atentar para o fato de que a eliminação dos armamentos não implica a eliminação da tecnologia. Ou seja, em um cenário hipotético em que as nove potências nucleares atuais eliminassem seus arsenais, o mundo poderia ser acometido por uma nova corrida armamentista, em que os mais diferentes Estados se empenhariam em produzir armamentos, sem os constrangimentos que hoje são impostos pelas atuais potências. Em tal cenário, o mundo não necessariamente estaria mais estável ou mais seguro, e parece razoável supor que o risco de conflitos armados continuaria sendo parte central da política internacional. De fato, uma nova corrida armamentista poderia trazer um contexto consideravelmente mais instável do que o atual equilíbrio nuclear, construído penosamente ao longo das últimas décadas. Assim, a abolição das armas nucleares, a menos que viesse acompanhada de uma abolição da tecnologia nuclear (não apenas em termos físicos – instalações e equipamentos –, mas também em termos do conhecimento acumulado) não resultaria em um mundo livre do espectro nuclear.
Que fique claro, no entanto, que nosso questionamento sobre a pertinência do desarmamento completo não equivale a uma defesa da proliferação ou a um desdém das questões humanitárias levantadas pela ICAN. A proliferação nuclear é um processo que tem inúmeras implicações negativas, incluindo a possibilidade de uma escalada de conflitos localizados e o aumento do risco de acidentes envolvendo explosivos nucleares. Além disso, a possibilidade de emprego de armas nucleares, sobretudo contra civis, não deve, em nenhuma circunstância, ser tratada de forma leviana.
Mas a questão nuclear deve ser abordada com uma dose adequada de realismo. Soluções utópicas não conseguem propor estratégias eficientes para os problemas existentes. Portanto, como iniciativas para despertar a atenção internacional, a ICAN e o Tratado para Proibição de Armas Nucleares são admiráveis, e merecem o reconhecimento que lhes foi concedido pelo comitê do Nobel. Mas tais iniciativas não devem ser vistas como uma panaceia para a insegurança no mundo. E talvez, enquanto não houver mudanças muito profundas no contexto internacional, o sonho de um mundo sem armas nucleares deva permanecer apenas isso: um sonho.
Luiza Januário é doutoranda em Relações Internacionais pelo Programa de Pós-Graduação San Tiago Dantas (UNESP-UNICAMP-PUC/SP) e pesquisadora do GEDES. Raquel Gontijo é professora do Departamento de Relações Internacionais da PUC Minas e pesquisadora do GEDES.
Imagem: Logo do ICAN. Por: Pronunn.