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Crises sul-americanas e a ausência brasileira

Tamires Aparecida Ferreira Souza*

 

O início da década de 2000, conhecida como a “era da mudança” e de desenvolvimento nacional e regional, marcou-se pela eleição, por vias democráticas, de governos progressistas na América do Sul, bem como pelo crescimento econômico, através do boom das commodities e dos recursos naturais. Neste cenário, apresentou-se a terceira onda regionalista, também denominada como regionalismo pós-liberal ou pós-hegemônico. Houve um movimento de priorização da agenda política, associada, nas políticas externas dos países, à busca de autonomia regional frente aos Estados Unidos e atores externos, e à adoção de políticas de desenvolvimento, além de uma inserção da região no cenário internacional. Observou-se, ainda, a concretização de consensos regionais e o desenvolvimento de instituições marcadas por abordagens multifacetadas (RIGGIROZZI; TUSSIE, 2012). Assim, iremos percorrer, brevemente, o período do regionalismo pós-hegemônico, destacando-se a criação da União de Nações Sul-Americanas (UNASUL), a fim de compreendermos o período atual de crises e mudanças na América do Sul, em especial com a concretização do governo de Jair Bolsonaro no Brasil.

A UNASUL se caracterizou como a principal organização criada nesta configuração da região. Em 2004, por iniciativa brasileira, desenvolveu-se a Comunidade Sul-Americana de Nações (CASA), marcada pela associação, única, de doze países sul-americanos. Sua proposta baseava-se em cooperação política, com a coordenação de políticas exteriores e a convergência entre outras organizações, como a Comunidade Andina (CAN) e o Mercado Comum do Sul (MERCOSUL), e países como Chile, Guiana e Suriname, para uma área de livre comércio e uma integração física, energética e de comunicações, inserindo em seu escopo a Iniciativa para a Integração da Infraestrutura Regional Sul-Americana. (SANAHUJA, 2009). Em 2008, essa Comunidade passou por uma transformação, com a assinatura do Tratado Constitutivo da União das Nações Sul-Americanas, objetivando promover na região uma personalidade jurídica internacional para dialogar com outros blocos, com o status de organização internacional. A UNASUL foi projetada como via alternativa às propostas da Organização dos Estados Americanos (OEA) e do Tratado Interamericano de Assistência Recíproca (TIAR), para a resolução de conflitos regionais. Ademais, a União é uma instituição de caráter cooperativo regional, pautada nos vieses político, econômico, de infraestrutura, social e de defesa, sendo as decisões tomadas por consenso e implementadas de forma gradual.

Contudo, tal conjuntura passou a ser modificada a partir da ascensão de governos de centro-direita na região sul-americana e do término do ciclo das commodities. As mudanças políticas na Argentina, com a eleição de Mauricio Macri em 2015, e no Brasil, com o impeachment de Dilma Rousseff em 2016, levaram ao poder governos de centro-direita, conservadores, liberais e ideologizados nos dois países líderes dos processos cooperativos regionais. Nota-se, assim, o “início do fim do ciclo pós-hegemônico” (BRICEÑO-RUIZ, 2020). Distintamente ao movimento anterior, ocorre uma aproximação dos países aos Estados Unidos de Donald Trump, sendo o caso mais expressivo o do Brasil de Jair Bolsonaro, que abandonou o discurso autonomista, e adotou uma visão baseada em “narrativas religiosas e/ou mitológicas” (SANAHUJA; BURIAN, 2020).

Representativamente a esta situação sul-americana, em 20 de abril de 2018, houve a solicitação de suspensão temporária de participação nas atividades da UNASUL por parte de Argentina, Brasil, Chile, Colômbia, Paraguai e Peru. A justificativa se baseou na ausência de consensos e resultados concretos na organização. Em 2019, Argentina, Brasil, Chile, Colômbia, Equador, Paraguai e Peru anunciaram suas saídas oficiais da União. No mesmo ano, houve a criação do Foro para o Progresso e Integração da América do Sul (PROSUL), como uma resposta da direita sul-americana frente a uma UNASUL enquadrada como ideológica e bolivariana.

Assim, observa-se a presença mais evidente dos Estados Unidos atrelada a uma influência nas políticas nacionais dos países sul-americanos. Argentina e Brasil passaram a intensificar seus laços com a superpotência, promovendo acordos na área de defesa, demonstrando uma maior adoção das perspectivas estadunidenses, especialmente quanto ao emprego das Forças Armadas em assuntos de segurança pública, o reconhecimento da ameaça do narcoterror nas fronteiras, bem como um alinhamento político-econômico. O âmbito regional projeta esse novo posicionamento dos governos e da diplomacia presidencial. Há uma transformação da abordagem de autonomia regional e estímulo quanto à cooperação sul-americana, a qual entrou em um processo de estagnação, com perda acentuada da vontade política das lideranças dos países.

Vale ressaltar que o governo Bolsonaro, iniciado em 2019, marca-se por uma associação estreita aos militares brasileiros, autodeclarando-se  como “um governo todo militarizado”, nas palavras do próprio presidente. Observa-se o dobro de pessoal militar presente em Ministérios e altos cargos públicos, dentre eles o Ministério da Defesa, em comparação a governos anteriores. Tais níveis são inéditos no período democrático brasileiro. (VERDES-MONTENEGRO; SOUZA, 2021).

A pandemia de COVID-19 insere-se como um agravamento da já existente crise do regionalismo. A utilização de discursos classificando a pandemia como um risco ou ameaça à segurança nacional converte-se em políticas e estratégias de segurança na maioria dos países. Observa-se um expressivo esquecimento da cooperação regional e internacional, associado à debilidade das instituições regionais, e à priorização da soberania e autonomia nacional. (BOSCHIERO, 2020).

No Brasil, o presidente Bolsonaro apresentou ceticismo quanto à pandemia, discordando de consensos científicos, minimizando seus impactos e mortes e fazendo referência à COVID-19 como uma “gripezinha” (VERDES-MONTENEGRO; SOUZA, 2021). O governo brasileiro ainda se destacou por sua ausência de iniciativa e liderança regional. Em reunião do PROSUL sobre a temática da pandemia, em 2020, Bolsonaro foi o único governante dos países membros a não participar do encontro (JUNQUEIRA; NEVES; SOUZA, 2020). Ademais, o Brasil bolsonarista consolidou seu “abandono” a Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (CELAC) e estimulou discordâncias quanto à relevância do MERCOSUL, utilizando-se de “ameaças” de saída da organização e confrontos com o atual presidente argentino, Alberto Fernández, no referente à gestão da pandemia. Paralelamente, seguindo seu alinhamento estadunidense, promoveu que a OEA retornasse como uma instituição ativa na região latina. (FRENKEL, 2021).

Desta forma, na América do Sul do período de 2015 a 2022 houve o agravamento da crise do regionalismo, da cooperação e da busca por uma região autônoma e independente frente à     s potências mundiais. Os governos de centro-direita, com destaque ao Brasil de Bolsonaro, visaram o alinhamento aos Estados Unidos e a desintegração sul-americana. O Brasil, conhecido amplamente como o líder e mediador regional, se converteu em um país ausente e indiferente aos seus vizinhos e às suas iniciativas cooperativas institucionalizadas.

 

* Tamires Aparecida Ferreira Souza é doutora em Relações Internacionais pelo PPGRI San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP e PUC-SP) e pesquisadora do Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional (GEDES).

Imagem: América do Sul. Por: delfi de la Rua/ Unsplash.

 

Referências Bibliográficas

BRICEÑO-RUIZ2, J. Da Crise da Pós-Hegemonia ao Impacto Da Covid-19. O Impasse do Regionalismo Latino-Americano. Rev. Cadernos de Campo, n. 29, p. 21-39, jul./dez. 2020.

BOSCHIERO, E. Riesgos globales y derechos humanos: hacia sociedades más resilientes, igualitarias y sostenibles In: Mesa, M. (coord.) Riesgos globales y multilateralismo: el impacto de la COVID-19 – Anuario 2019-2020. Madrid: CEIPAZ, 2020.

FRENKEL, D. Jair Bolsonaro e a desintegração da América do Sul: um parêntese? NUSO,  nº 2021, ago.-set. 2021.

JUNQUEIRA, C.; NEVES, B.; SOUZA, L. Regionalismo Sul-Americano nos anos 2020: O que esperar em meio às Instabilidades Políticas? Revista tempo do mundo, n. 23, ago. 2020.

RIGGIROZZI, P.; TUSSIE, D. The Rise of Post-Hegemonic Regionalism In Latin America. In: RIGGIROZZI, P.; TUSSIE, D. The Rise of Post-hegemonic Regionalism: The Case of Latin America. New York: Springer, 2012.

SANAHUJA, J. Del “regionalismo abierto” al “regionalismo post-liberal”. Crisis y cambio en la integración regional en América Latina. In: ALFONSO, L.; PEÑA, L; VAZQUEZ, M. (org) Anuario de la Integración Regional de América Latina y el Gran Caribe. Buenos Aires: CRIES, 2009. p.11-54.

SANAHUJA, J.; BURIAN, C. Las derechas neopatriotas en América Latina: contestación al orden liberal internacional. Revista CIDOB d’Afers Internacionals, n. 126, p. 41-63, 2020.

VERDES-MONTENEGRO, F.; SOUZA, T. ¿Misión cumplida? La militarización de la gestión sanitaria frente a la COVID-19 en Brasil. Análisis Carolina, v.30/2021, p.01 – 22, 2021.

O “bolsonarismo” como elo e como amálgama

Jorge M. Oliveira Rodrigues*

 

A compreensão da crise política e social brasileira exige uma análise que adote como ponto de partida o reconhecimento de sua complexidade. Se é certo que o desenrolar da crise se sustenta em aspectos muito bem arraigados de nossa sociedade, é certo também que se insere no contexto mais amplo da crise do capitalismo global. Nesse sentido, a ascensão de Jair Bolsonaro ao poder, reflexo e resultado da crise que se instaurou no país, deve ser encarada como elo e como amálgama nesse processo histórico amplo e complexo.

Com efeito, a chegada de Bolsonaro à Presidência e o movimento que se convencionou nomear de “bolsonarismo” são fenômenos que encontram equivalentes em nível global. O governo de Donald Trump nos Estados Unidos, Jeanine Áñez na Bolívia e de Viktor Orbán na Hungria são exemplos da ascensão da extrema direita, pela via eleitoral ou pela ruptura institucional. Todavia, o ecossistema da extrema direita global não se resume a movimentos que assumiram poder em seus respectivos países.

Na França, a presença da extremista de direita Marine Le Pen no segundo turno das eleições presidenciais se tornou recorrente, resultando na formação de uma espécie de cordão de contenção por parte dos demais grupos políticos para evitar sua vitória – cordão este que não se sabe até quando perdurará. Em 2022, a novidade foi a presença de Eric Zemmour na disputa presidencial, com um discurso reacionário virulento e angariando 7,07% dos votos no primeiro turno das eleições francesas – o equivalente a 2.485.226 de votos.

Na América Latina o cenário político tampouco está livre de grupos e atores políticos de extrema direita. Na Bolívia, para além da auto-proclamada – e agora presa – presidente Jeanine Áñez, o empresário Luis Fernando Camacho participou ativamente do golpe que levou à renúncia de Evo Morales e à posterior instauração de um governo repressivo e de agenda neoliberal antipopular. No Peru, a recusa da candidata de Keiko Fujimori, de extrema direita, em reconhecer a vitória de seu adversário, Pedro Castillo, agravou a crise política no país, gerando ainda maior instabilidade.

Ao mesmo tempo, na Argentina, Javien Milei vem se mostrando um ator político relevante, articulando uma agenda ultraliberal[1] no país. Enquanto no Uruguai as eleições de 2020 foram marcadas pela presença de Guido Manini Ríos, um general de extrema direita, entre os postulantes à Presidência. Ex-comandante do Exército destituído pelo então presidente Tabaré Vázquez e atualmente senador, Ríos teve como companheiros de partido naquele pleito eleitoral candidatos acusados de tortura a prisioneiros políticos durante a ditadura uruguaia, de acordo com a cientista política da Universidad de la República, Alexandra Lizbona.

Nesse ecossistema, do qual destacamos apenas alguns eixos, merecem atenção as relações estabelecidas entre os diversos grupos que o compõem. Tomemos por foco o “bolsonarismo”. É fundamental ter em mente a participação de Eduardo Bolsonaro e de outros políticos aliados do “bolsonarismo”, como Carla Zambelli e Tarcísio de Freitas, na Conferência de Ação Política Conservadora – CPAC, por sua sigla em inglês. De fato, o filho do presidente não apenas participou de diversas edições do evento, como trabalhou ativamente para que o Brasil passasse a sediar edições da conferência.

Ademais, são conhecidos os laços da família Bolsonaro com o ex-presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, bem como com o extremista de direita, Steve Bannon. Eduardo Bolsonaro, inclusive, teve seu nome aventado em investigações no Congresso estadunidense, que, no esforço de desvendar os laços da extrema direita no país, cogita averiguar a participação do parlamentar brasileiro na invasão do Capitólio, em 6 de janeiro de 2021.

No âmbito regional, é sintomático o rápido reconhecimento do governo de Jeanine Áñez, na Bolívia, por Jair Bolsonaro. Os laços da extrema direita latino-americana são explicitados ainda pela proximidade de Eduardo Bolsonaro e Javier Milei, da Argentina. Milei, assim como Trump, chegou a declarar apoio à campanha de reeleição de Jair Bolsonaro. Os vínculos, entretanto, não se limitam à família presidencial. Em setembro de 2021, Guido Manini Ríos manteve reunião com o vice-presidente brasileiro, Hamilton Mourão, tendo também se encontrado com Luiz Carlos Heinze, senador pelo Rio Grande do Sul, aliado de Bolsonaro e notório negacionista.

Configura-se, assim, uma cadeia mais ampla da qual o “bolsonarismo” é um dos elos constitutivos. Sua análise enquanto fenômeno político deve levar em consideração suas relações externas e sua inserção numa cadeia global. Concordamos com a cientista social Sabrina Fernandes que mesmo não sendo possível falar numa “aliança unificada da extrema direita global”, é certo que esses grupos se comunicam, estabelecendo parcerias que vão além de relações institucionais de eventuais governos que ocupem. Todavia, também em conformidade com a pesquisadora, é preciso ir além da mera busca por paralelos ou similaridades.

Com efeito, a análise do “bolsonarismo” como fenômeno exógeno, elo numa cadeia que vai além de si, embora relevante, é incompleta. O “bolsonarismo” enquanto fenômeno político que culminou na vitória eleitoral de Jair Bolsonaro em 2018 deve ser entendido também como um amálgama. Alinho-me aqui ao argumento apresentado pelo historiador Odilon Caldeira Neto, para quem a vitória de Bolsonaro simbolizou o aglutinamento de “uma série de grupos tradicionais da extrema direita brasileira”. Para o autor, o “bolsonarismo” se insere na tradição desses movimentos históricos da extrema direita, a exemplo do integralismo.

Todavia, é possível ainda ir além. Ao tomarmos como referência o governo Bolsonaro, o amálgama é ainda mais amplo. Se é certo que o “bolsonarismo”, em si, se insere na tradição da extrema direita brasileira, como argumenta Caldeira Neto, é certo também que o governo Bolsonaro não se restringe a tais grupos – e não se viabilizaria, é seguro afirmar, apenas a partir deste eixo de sustentação.

Tem-se, portanto, grupos de direita e extrema direita que encontraram no agora ocupante da Presidência o eixo de galvanização de seus interesses, numa lógica de desenvolvimento predatória e com uma concepção de país altamente excludente e desigual. Todos, enfim, com poder de agência que por vezes supera a própria figura de Jair Bolsonaro e seu ciclo de apoiadores mais próximos.

É a partir deste viés que é possível dar algum sentido ao caldeirão ideológico e de interesses que gravitam em torno do Planalto. De ultraliberais como Paulo Guedes, a setores do agronegócio mais reacionário e predatório, passando por rentistas e evangélicos, não são poucos os grupos que encontraram nesse governo uma oportunidade de impor sua agenda – ou ao menos lutar para tal. Dentre esses grupos, um chama atenção pelo peso que mostrou no governo, inclusive ao se sobrepor a outros setores considerados estruturantes do “bolsonarismo” – como é o caso dos chamados olavistas. Trata-se, aqui, dos militares egressos das forças armadas.

A atenção recente que tem recebido a presença de militares na política não pode nos fazer esquecer do descaso de pouco tempo atrás. A leniência do sistema político e dos meios de comunicação com esse grupo específico permitiu que, ao longo dos anos, a anistia de outrora se perpetuasse como permissividade, dando espaço e por vezes legitimando o intervencionismo histórico dos militares brasileiros. Nesse sentido, é fundamental destacar que o alinhamento de militares a Bolsonaro não se dá por cooptação ou tampouco por mera perspectiva de ganhos corporativos. Há, aqui, uma relação complexa que se estrutura também num relevante alinhamento ideológico entre militares e os chamados “bolsonaristas”.

Ao longo desse texto propôs-se uma compreensão do fenômeno que convencionou-se chamar “bolsonarismo” a partir de dois aspectos: de um lado, sua inserção num ecossistema mais amplo da extrema direita global, como um elo; de outro, seu caráter de amálgama, não apenas de movimentos de extrema direita, mas também de uma série de interesses difusos à direita do espectro político.

Assim, e novamente em concordância com Caldeira Neto, nos parece cada vez mais importante olhar para as causas sistêmicas do que representa o bolsonarismo, em seus laços internacionais, mas principalmente nas bases históricas em que se sustenta. E é nesse sentido que faço aqui uma última consideração.

Para além de elo e amálgama, o “bolsonarismo” carrega consigo outro traço fundamental para sua compreensão. Seu surgimento na política nacional reflete aspectos muito arraigados na formação do Brasil enquanto país. Do passado escravista ao racismo presente, passando pela ditadura anistiada e por uma sociedade estruturada no machismo e na desigualdade de classes. O “bolsonarismo” surge, enfim, na esteira das violências estruturais constitutivas da sociedade brasileira e cuja superação, como argumentado por Rodrigues e Mathias, é essencial.

[1] Para uma discussão acerca das nuances do liberalismo enquanto ideologia ver ROCHA, Camila. Menos Marx, mais Mises: o liberalismo e a nova direita no Brasil. São Paulo: Todavia, 2021. Adotamos aqui, conforme a autora, o termo “ultraliberal” para indicar a radicalidade desta corrente específica do liberalismo econômico.

 

*Jorge M. Oliveira Rodrigues é pesquisador do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social e do Grupo de Estudos de Defesa e Segurança (GEDES). Doutorando em Relações Internacionais pelo Programa de Pós-Graduação San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP e PUC-SP).

 

Imagem: Manifestação “Todos com Bolsonaro”, 2018. Por Editorial J/Flickr.

 

A extrema-direita na Guerra da Ucrânia: combatentes estrangeiros e a ameaça transnacional – Parte 2

Álvaro Anis Amyuni*

Na primeira parte do texto, analisei os desenvolvimentos endógenos à Ucrânia que contribuíram para a criação do ambiente permissivo à atuação da extrema-direita ucraniana a partir do Euromaidan e durante a guerra civil. Nesta segunda parte é analisado o desenvolvimento exógeno, ou seja, as conexões transnacionais estabelecidas entre os atores de extrema-direita ucranianos e russos com grupos e indivíduos estrangeiros ao conflito.

Os símbolos, atos e ideologia do desenvolvimento endógeno da extrema-direita ucraniana nos permitem perceber e analisar as consequências transnacionais da atuação de atores abertamente extremistas. O desenvolvimento exógeno se refere à atração que grupos como Azov exercem sobre atores de extrema-direita externos à região, recrutando indivíduos para participar do conflito e estabelecendo laços transnacionais com outras organizações.

Entre 2014 e 2021, estima-se que mais de 17 mil “combatentes estrangeiros” (em inglês, “foreign fighters”) atuaram no conflito em Donbass – e não apenas do lado ucraniano. Segundo Christian Kaunert e Alex Mackenzie (2021), desse total, cerca de 15 mil são russos, robustecendo as forças das repúblicas separatistas de Donetsk e Lugansk, sendo 3 mil desse contingente pró-Ucrânia. Os demais, 2 mil, dividem-se entre combatentes de países como Belarus e Sérvia (majoritariamente pró-Rússia) e  combatentes vindos do Ocidente. A partir da deflagração da guerra em 2022, esse número aumentou consideravelmente. Nas semanas de escalada das tensões e preparação para o conflito, houve uma mobilização da inteligência de alguns países ocidentais para impedir a saída de cidadãos para lutar na Ucrânia, como foi o caso do Reino Unido.

Diante desse número expressivo de combatentes estrangeiros, é inevitável comparar a situação dos últimos 8 anos na Ucrânia com guerras que gestaram o surgimento de grupos extremistas e terroristas durante o século XX e no século XXI. O precedente mais próximo é a Guerra da Síria, quando milhares de indivíduos de países ocidentais se radicalizaram através do Estado Islâmico, inclusive criando células terroristas em seus países de origem que produziram atentados como o de Paris (2015). A semelhança com a Síria para por aí, visto que o recrutamento de estrangeiros (até o momento) não é destinado à criação de células terroristas ou exclusivamente com o objetivo de serem praticados atos violentos quando retornarem aos seus países de origem.

Entretanto, o conflito na Ucrânia já gerou conexões transnacionais importantes entre atores do Ocidente com organizações paramilitares russas. É o caso do Movimento Imperial Russo (MIR) e do Movimento de Resistência Nórdica (MRN). O primeiro, um grupo paramilitar ultranacionalista e supremacista russo que atua na Ucrânia e na Rússia que recruta indivíduos de países ocidentais para o treinamento militar. O segundo, um grupo neonazista atuante principalmente na Suécia e responsável pelo ataque a um campo de refugiados em Gotemburgo, em 2017, logo após seus perpetradores terem viajado para a Rússia para participarem de um treinamento oferecido pelo MIR. Destaca-se que o MIR foi designado como um grupo terrorista pelos EUA e Canadá em 2020 e 2021, respectivamente, apesar de sua atividade principal não ser o engajamento em uma campanha terrorista internacional contra o Ocidente.

O caso do MIR mostra que o problema não se concentra somente nas organizações ucranianas. A Rússia possui uma perigosa cena de extrema-direita que atua a partir da vista grossa do governo Putin, este de forte inspiração ultranacionalista e conservadora. Além da atração de combatentes ocidentais, os grupos paramilitares russos construíram um forte nexo pan-eslavista com grupos e indivíduos de países dos Bálcãs, especialmente a Sérvia.

Os grupos de extrema-direita ucranianos não apenas realizam recrutamentos como se tornaram símbolos de referência para extremistas em atentados e movimentos políticos em outros países. No atentado de Christchurch na Nova Zelândia, em 2019, o perpetrador, Brenton Tarrant, exibiu o símbolo do Regimento Azov em seu “manifesto” com o objetivo de propagar e inspirar outros terroristas. Apesar disso, a comissão de investigação neozelandesa não comprovou uma relação direta de Tarrant com Azov.

Outro exemplo foi o caso do Brasil, no auge das manifestações bolsonaristas, em 2020, quando militantes radicais manifestavam a intenção de “ucranizar” o Brasil, fazendo referência à milicianização das forças armadas, a própria guerra civil que a Ucrânia se afundou desde 2014 e à inspiração ideológica racista, anticomunista e neofascista dos grupos de extrema-direita ucranianos, ilustrada pela presença de símbolos de grupos como o Setor Direito.

O fato de combatentes estrangeiros ocidentais e não-ocidentais atuarem dos dois lados do conflito Rússia-Ucrânia nos impede de fazer uma análise simplista dessa “atração ideológica” sobre a qual Putin remete e que busca utilizar como uma das justificativas para a guerra atual. Por um lado, a Ucrânia representa para parte da extrema-direita ocidental a “fronteira” do Ocidente, um território que deve ser defendido contra forças anti-ocidentais, como a Rússia. Há também a inspiração tomada por neonazistas e supremacistas do passado colaboracionista ucraniano com o nazismo na Segunda Guerra Mundial, fato também exaltado pelo Regimento Azov. Do outro lado, a atração em relação a Rússia de Putin se encontra na defesa de uma nação-modelo de comunidade étnica “pura” que subjuga outras etnias, além do relacionamento íntimo do poder político do Kremlin com a Igreja Ortodoxa.

Outra possibilidade vai além das proximidades ideológicas e encontra a oportunidade de aperfeiçoamento tático e estratégico individual e grupal, como é o caso do relacionamento entre o MRN e o MIR. Não necessariamente, entretanto, a razão para peregrinação está atrelada a ideologias de extrema-direita. Kaunert e Mackenzie traçaram vários veteranos de guerra norte-americanos que enxergam na guerra da Ucrânia uma oportunidade de voltarem à ativa, não possuindo necessariamente uma inclinação ideológica à direita. Porém, há o risco de radicalização no conflito, fazendo com que indivíduos atraídos pela ideia de realizar “atos heroicos” em uma situação de guerra entrem em contato com as ideologias de grupos como Azov e MIR e se tornem adeptos.

Toda essa complexidade envolvendo o relacionamento transnacional da extrema-direita com a guerra da Ucrânia encontra parte de sua razão na forma como aquela se manifesta e se organiza desde o fim da Segunda Guerra Mundial. Roger Griffin (2003), cientista político dedicado ao estudo do fascismo e do neofascismo, afirma que a extrema-direita no cenário hostil à sua atuação e crescimento do pós-guerra passou a não mais se organizar de forma centralizada, em movimentos de massa, e sim a partir de “grupúsculos” que agem de forma independente. Não existe uma liderança central que dite os rumos ideológicos e concentre carisma o suficiente para unificar a extrema-direita nacional e internacionalmente. Isso se aplica principalmente para grupos violentos que rejeitam atuações pela via democrática/institucional e que são os principais reprodutores de ideologias que remetem ao nazismo e ao fascismo.

Assim, apesar dessa autonomia, a atuação concorrente e cooperativa entre os grupos é o que cria um ambiente ideológico comum, mas ao mesmo tempo adaptado à realidade nacional de cada ator, sendo justamente essa falta de centralidade o que permite a sua sobrevivência contra tentativas de governos de sufocá-los. Nos Estados Unidos, por exemplo, supremacistas brancos resumiram sua estratégia de atuação como “resistência sem liderança” e sumariza muito bem a concepção de “grupúsculo” proposta por Griffin ao não encorajar filiações formais de indivíduos a grupos bem estruturados, mas sim ações violentas reativas individuais.

Essa característica tem sido intensificada com o advento da internet, onde há um ambiente propício para a rápida propagação transnacional de ideias de extrema-direita e articulações em torno de práticas violentas. A comunicação on-line se dá principalmente por meio de símbolos, algo que a extrema-direita envolvida no conflito ucraniano não deixa a desejar. A extrema-direita grupuscular não tem como objetivo alcançar “corações e mentes” de multidões, por outro lado, seus atores, inclusive, almejam o confronto. Por isso, grupos como Azov, o MIR, o Setor Direito e a milícia Wagner[1] servem de oportunidade para suprir o “fetiche” militarista comungado entre militantes da extrema-direita global.

Mas não devemos esperar que haja uma tomada de liderança pelos grupos envolvidos no conflito russo-ucraniano para formar grupos paramilitares “filiados” sob sua tutela em outros países. Eles servem a diversos propósitos para atores estrangeiros de extrema-direita, principalmente para dar experiência de campo para a prática de violência. Mesmo assim, esses nexos não estão claros, ou seja, nem todos os combatentes estrangeiros de extrema-direita irão, de fato, realizar atentados terroristas quando retornarem a seus países de origem ou organizar movimentos para “ucranizar” a sua sociedade. O impacto dos combatentes estrangeiros na guerra em si é difícil de ser mensurado, mas se apresenta como a minoria em ambos os lados.

Internamente para a Ucrânia e para a Rússia a permissividade para a atuação da extrema-direita na guerra tem um potencial nocivo muito maior. Primeiro, pela possibilidade de a ideologia influenciar ações violentas que violem os direitos humanos da população civil a partir do estabelecimento de critérios étnicos e raciais. O governo russo repetidamente acusa as forças do Regimento Azov de terem praticado limpeza étnica em Donbass e a Ucrânia acusa as forças russas de terem provocado o Massacre de Bucha.

Segundo, pelo recrudescimento político dos grupos radicais no pós-guerra, especialmente na Ucrânia, onde há uma dependência muito maior das forças milicianas de extrema-direita. Não há qualquer sinal de Zelensky que aponte para uma desmobilização dessas forças no pós-conflito e o presidente segue negando a ligação do Regimento Azov com o neonazismo. Trata-se menos de uma vinculação/defesa ideológica de Zelensky a esses grupos e mais uma posição baseada em um pragmatismo extremo visando negar a narrativa de Putin sobre a ligação do Estado ucraniano com o neonazismo. Além disso, Zelensky se vê diante de uma armadilha quase sem saída, já que caso repreenda essas milícias durante ou após o conflito, pode perder a guerra pela redução do contingente de seu exército e ainda criar um inimigo interno, arriscando a estabilidade de seu próprio governo.

De qualquer maneira, falta espaço no atual estágio do conflito para mensurar o real impacto e potencial da atuação da extrema-direita. A guerra da Ucrânia apresenta-se como um elemento ideológico e organizacional importante para a extrema-direita transnacional, mas a essência grupuscular se impõe, impedindo uma articulação que supere a barreira das realidades nacionais dos atores em direção a um movimento unificado e centralizado nos atores envolvidos na guerra. Isso não significa que o potencial dos combatentes estrangeiros seja diminuído, no entanto, será necessário que seus países de origem estejam atentos às movimentações – em campo e on-line – destes indivíduos quando retornarem.

[1] Empresa militar privada que é financiada secretamente pelo Kremlin. Atua na Guerra da Ucrânia, com passado importante em conflitos na África. Seus fundadores comungam de ideias supremacistas e ultranacionalistas.

Imagem em destaque: Stanislav Nepochatov/Flickr.

*Álvaro Anis Amyuni é mestrando do Programa de Pós-Graduação San Tiago Dantas, onde desenvolve pesquisa sobre o terrorismo transnacional de extrema-direita. É pesquisador do Observatório de Conflitos do Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional (OC-GEDES). Também é pesquisador júnior do Observatório da Extrema Direita (OED Brasil).

A extrema-direita na Guerra da Ucrânia: do Euromaidan às fileiras do exército ucraniano – Parte 1

Álvaro Anis Amyuni*

Desde o início da Guerra da Ucrânia, em fevereiro de 2022, uma das principais justificativas do presidente russo, Vladimir Putin, para a invasão ao país vizinho é o alegado domínio neonazista na região. Putin tenta emular a luta nacionalista dos soviéticos contra o nazismo na Segunda Guerra Mundial a partir do superdimensionamento da presença de militantes supremacistas brancos, neonazistas e de extrema-direita nas fileiras do exército ucraniano, especialmente no Regimento Azov.

Desde os protestos do Euromaidan que deflagraram a crise que a Ucrânia vive desde 2013 há, de fato, um ambiente bastante permissivo ao desenvolvimento de grupos de extrema-direita no país, sobretudo a partir de dois movimentos importantes. O primeiro, endógeno, que envolve os grupos políticos e armados que participaram ativamente das ações violentas durante e após o Euromaidan.

O segundo, exógeno, está relacionado à força de atração que grupos envolvidos no conflito civil-militar, que se formou no leste ucraniano a partir de 2014, exercem sobre indivíduos e grupos da extrema-direita transnacional, transformando a Ucrânia em um local de peregrinação e treinamento paramilitar. A narrativa de Putin explora esses dois fatores, bem como as conexões oficiais estabelecidas entre determinados grupos paramilitares de extrema-direita – como o Azov – e o Estado ucraniano. Mas, qual o real tamanho da ameaça posta pela extrema-direita no conflito ucraniano e quais são as possíveis consequências transnacionais de sua atuação durante e após a guerra atual?

A primeira parte deste texto está concentrada em responder esse questionamento pela análise do movimento endógeno de permissividade à extrema-direita gestado nos protestos do Euromaidan em 2013 e na guerra civil na região de Donbass a partir de 2014. Na segunda parte, concentro a análise no movimento exógeno, sobre as consequências internas e externas da presença de combatentes estrangeiros da extrema-direita na guerra.

Os protestos da praça Maidan em Kiev reuniram grupos políticos de diversas orientações ideológicas e uma diversidade de objetivos que iam desde a retomada das negociações para a entrada do país no bloco da União Europeia – acordo interrompido pelo presidente, pró-Rússia, Viktor Yanukovitch – até a deposição do governo incumbente e a instalação de um novo regime ultranacionalista e pró-Ocidente. Nesta parcela mais extremista, se destacavam organizações e partidos de direita, como o Svoboda e o Setor Direito, que foram atores protagonistas de ataques violentos contra políticos e a polícia.

Cientistas políticos ocidentais mediram o impacto da opinião popular sobre as ações desses grupos a partir do nível de aceitação eleitoral dos ucranianos à extrema-direita, que se provou baixo nas eleições de 2014 (pós-Euromaidan) quando não conseguiram sequer superar a barreira de 5% dos votos. Levando em consideração o cenário atual de guerra, o insucesso desses partidos continua a ser a principal fonte de refutação à narrativa de Putin. Argumenta-se que há pouca adesão ao extremismo de direita na Ucrânia e, por isso, não existe um problema de escala nacional como um governo abertamente nazista; por outro lado, a presença isolada e diminuta de organizações de extrema-direita.

No entanto, segundo Volodymyr Ischenko (2016), esta não é a melhor maneira de avaliar o impacto dessas organizações na criação de um ambiente propício à atuação da extrema-direita, visto que, apesar do apoio diminuto e de serem minoria nos protestos, tiveram papel central nos confrontos com a polícia em meio à dinâmica dos protestos de massa. Justamente essa escalada de violência, ao lado do aumento das tensões separatistas, também no leste ucraniano, forçou a fuga e renúncia do presidente Yanukovitch.

Paralelamente, em meio ao cenário de caos social com a iminente perspectiva de combate das forças ucranianas com separatistas pró-Rússia na região de Donbass, emergiram grupos paramilitares informais e semi-informais com a intenção de defender o país de uma invasão russa. Como afirma Andreas Umland (2019), esses grupos foram rotulados de “Batalhões de Defesa Territorial”, “Destacamentos de Patrulha Policial Especiais”, “Regimentos de Operações Especiais”, entre outros, tendo um caráter fortemente nacionalista e telúrico, além de justificar sua criação a partir da impotência do exército ucraniano. Esses batalhões “voluntaristas”, como ficaram conhecidos, foram total ou parcialmente absorvidos pelo exército ucraniano durante o mandato presidencial de Petro Poroshenko.

O Regimento Azov, nesse sentido, foi o grupo mais destacado por conta do feito de recapturar a cidade de Mariupol das forças pró-Rússia em junho de 2014, fazendo com que fosse absorvido como parte formal do exército, sendo designado oficialmente como o “Destacamento de Operações Especiais, Azov”. Umland (2019) ressalta que os fundadores do Azov são ultranacionalistas ucranianos que começaram o ativismo político na era pós-soviética em organizações como a Assembleia Social-Nacional (ASN), o Patriotas da Ucrânia (PU), a Divisão Misantrópica e a Bratstvo – organizações que, em maior ou menor grau, contribuíram para a criação do Batalhão/Regimento com sua militância e articulação política. A ideologia de Azov é manifestada em seus símbolos que remetem aos adotados por nazistas, como o Sol Negro e o Wolfsangel, símbolo da 2ª Divisão da SS Das Reich.

Aos poucos e paralelamente ao processo de absorção nas forças armadas da Ucrânia, o grupo se esforçou para diminuir a sua associação ao nazismo e fascismo, retirando, por exemplo, o Sol Negro de seu emblema oficial. Durante a guerra de 2022 houve uma nova atualização da insígnia, retirando também o Wolfsangel. Muitas de suas lideranças abertamente supremacistas foram substituídas e seus líderes atuais dizem que o grupo está aberto a qualquer um que deseje “defender a Ucrânia”, independentemente de qual seja a sua ideologia ou crença pessoal. De fato, é difícil mensurar a quantidade de neonazistas e supremacistas convictos nas fileiras de Azov. Mesmo com essa alegada abertura a soldados de fora do círculo da extrema-direita, as referências e simbologias se mantêm, o que pode ser percebido em imagens recentes da guerra em que soldados do Regimento apareceram utilizando o símbolo do Sol Negro em seus uniformes.

Assim, a extrema-direita na Ucrânia opera sob a vigilância negligente do Estado – e já se trata de um problema perpetuado por mais de um governo. Por essas forças terem rapidamente se organizado em estruturas paramilitares, ganharam uma força política tal que, ao mesmo tempo, foi capaz de fortalecer o débil exército ucraniano e enfraquecer o monopólio legítimo do uso da força das mãos do Estado. Adicionado a isso, os feitos “heroicos” na guerra civil desde 2014, os batalhões voluntaristas exerceram o papel de proteger a população, criando uma relação de fascínio diante da incapacidade do governo de oferecer segurança contra as forças russas e separatistas. Este fascínio, contudo, logo transbordou as fronteiras do conflito, capturando o interesse de atores externos sobre os desenvolvimentos internos da extrema-direita ucraniana, como abordo na parte 2 do texto.

 

*Álvaro Anis Amyuni é mestrando do Programa de Pós-Graduação San Tiago Dantas, onde desenvolve pesquisa sobre o terrorismo transnacional de extrema-direita. É pesquisador do Observatório de Conflitos do Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional (OC-GEDES). Também é pesquisador júnior do Observatório da Extrema Direita (OED Brasil).

Imagem em destaque: Stanislav Nepochatov/Flickr

Imagens no corpo do texto: Antigo Símbolo do Batalhão Azov, uma combinação do Sol Negro e o Wolfsangel flutuando em ondas do Mar de Azov, referência geográfica do nome do grupo. Fonte: Wikimedia Commons.

A carta dos generais franceses é parte de algo muito maior

Carolina Antunes Condé de Lima*

 

No dia 21 de abril, vinte e cinco generais da reserva francesa publicaram uma carta, assinada por outros mil militares, alertando o presidente Emmanuel Macron sobre a possibilidade e o limiar de uma guerra civil estourar na França. De acordo com os generais, as políticas frouxas de segurança pública do atual governo resultariam em caos, gerando a necessidade de intervenção dos militares na ativa, a fim de proteger aquilo que chamaram de “valores civilizacionais franceses”. 

Em sua carta, os generais apontam para o perigo da desintegração da integridade e da identidade francesas e os culpados por isso seriam os antirracistas, pessoas não brancas e, particularmente, o islã. A carta deslegitima os muçulmanos como cidadãos legítimos ou residentes da França e os trata como uma horda de estrangeiros cujas ideologias e práticas ameaçam a identidade natural da França. Na carta, os generais ainda afirmam que áreas ao redor de algumas cidades francesas foram transformadas em territórios sem lei pelos seus habitantes não-brancos, abalando as estruturas da república da França. No fim, para eles, a simples existência de minorias é uma ameaça à nação.

Como resposta, o governo e partidos de esquerda se manifestaram contra a carta, uma vez que o documento fere a ideia de controle civil sobre os militares, esperado em governos democráticos. A Ministra da Defesa, Florence Parly, falou em punir os signatários que ainda estão na ativa por descumprirem com a lei que requer que militares sejam politicamente neutros. Uma semana após a carta, o chefe do Estado-Maior, general François Lecointre, afirmou que os militares na ativa que assinaram a carta irão passar por um tribunal militar e receberão sanções.

O assunto que parecia resolvido, voltou às manchetes no dia 09 de maio, quando uma nova carta, dessa vez atribuída a militares franceses na ativa, veio a público, apontando para o que chamam de “concessões ao islamismo”, feitas pelo governo de Macron, reforçando o alerta de uma guerra civil. A nova manifestação é feita por homens e mulheres que dizem terem dado suas vidas em combate ao islamismo em intervenções mundo afora e agora assistem a concessões sendo feitas no próprio país. 

Manifestações como essa, não são novidade na França. A publicação da primeira carta aconteceu na data na qual se relembra a tentativa de golpe sofrida pelo então presidente Charles de Gaulle, conhecido como putsch de Argel, há sessenta anos. Na ocasião, um grupo de militares se uniu para depor o então presidente como forma de retaliação aos planos de reconhecer a independência da Argélia. Além da memória histórica, a carta foi publicada num contexto de preparação para a eleição presidencial, que acontece ano que vem e, portanto, de disputa pelo eleitorado francês, que entende a  luta contra o terrorismo e a segurança como pautas importantes. Em função disso, temas como imigração e a disseminação do chamado Islã Radical têm feito, cada vez mais, parte das agendas dos candidatos.

Esse novo ataque à política de Macron, e à comunidade muçulmana francesa, acontece num momento em que se assiste ao crescimento das intenções de voto para Marine Le Pen e de aumento da reprovação da atual administração. Le Pen, candidata da extrema-direita apontada como principal rival de Macron na eleição presidencial do próximo ano, se manifestou em apoio à carta dos generais, os convidou para fazer parte de sua campanha e os convocou para aquilo que chamou de ‘batalha pela França’. A manifestação de Le Pen gerou críticas dos governistas e, mais abertamente, da Ministra Parly, que afirmou que a politização do exército, tal qual defendido por Le Pen, enfraqueceria a própria França, uma vez que “os exércitos não estão lá para fazer campanha [política], mas para defender a França e os franceses”. A segunda carta também causou reações de repúdio do governo francês e recebeu o apoio de Le Pen. 

Dentro desse contexto de disputa pelo eleitorado francês, o atual presidente tem sido acusado de se aproximar cada vez mais da direita e estar se valendo de algumas pautas. Em outubro de 2020, Macron lançou seu projeto de lei para por fim ao que ele denominou de “separatismo islâmico”. A proposta de lei surgiu após ataques cometidos por radicais voltarem a acontecer no país, reacendendo os debates sobre islã, secularismo e islamofobia na França, lar da maior população muçulmana na Europa (são aproximadamente seis milhões de muçulmanos, que correspondem a quase 10% da população).

Ao mesmo tempo em que há uma hiper politização do Islã na França, acadêmicos e a comunidade são excluídos dos debates sobre a questão, inviabilizando maior conhecimento e aproximação real da comunidade e suas demandas e problemas, resultando numa dificuldade de entender a diversidade de opiniões entre os quase seis milhões de muçulmanos que moram no país. Uma das principais razões para isso é a instrumentalização do secularismo francês, ou seja, as ideias de laicidade e secularismo são usadas como justificativa para não se engajar nem reconhecer a diversidade religiosa do país. Outra razão se deve ao passado colonial e orientalista, que criou e perpetuou a ideia de que muçulmanos são um bloco único e homogêneo.

Outra frente da lei de Macron contra o separatismo islâmico foi a imposição do não uso do veú por mulheres muçulmanas. Em 2004, o governo aprovou a primeira lei que proibiu o uso de coberturas religiosas em escolas e espaços públicos, em 2011 foi proibido o uso de vestimentas que cobrem toda a face em locais públicos, e em 2016 o governo proibiu o uso de burkinis, lei que depois foi suspensa. Agora, o governo pretende proibir mulheres que estejam acompanhando seus filhos em atividades escolares e meninas menores de 18 anos a usarem o véu. 

Todas essas medidas são parte da assim chamada “batalha cultural” contra o “esquerdismo islâmico”, uma suposta aliança entre acadêmicos assumidamente de esquerda e indivíduos das comunidades islâmicas. Essa imposição sobre o que mulheres muçulmanas podem ou não usar remete ao recente passado colonial francês, que reverbera em sua sociedade. Quando da invasão francesa ao Norte da África (1830-1975), também foi imposto às mulheres que deixassem de usar os véus, além das diversas imposições contra símbolos e práticas religiosas. A ideia de resgatar mulheres muçulmanas sempre foi parte integral do imperialismo francês e foi usado como justificativa e, consequentemente, apagamento, das violências cometidas nos territórios invadidos: estima-se que os franceses tenham matado 825.000 pessoas durante a ocupação da Argélia, além dos estupros cometidos contra as mulheres da região. O debate sobre o véu, portanto, é parte de algo muito maior: é apenas um elemento da atual batalha do governo francês contra ideais de equidade de gênero, raça e teorias pós-coloniais, que têm sido colocadas como ameaças à estabilidade e identidade nacional francesa.

Ainda que seja cedo para apontar as consequências da carta e do apoio oferecido aos militares por Le Pen, a situação tem se desdobrado de forma preocupante. No dia 30 de abril foi publicada uma pesquisa na qual 58% dos entrevistados concordam com o que dizem os militares e 49% afirmou que apoiaria uma intervenção militar na França. Isso não significa que a França irá sofrer um golpe de Estado, mas pode ser um indicativo do que a eleição presidencial aponta para o ano que vem. 

Quando olhada sem contextualização, a carta dos vinte e cinco generais, prontamente respondida e rechaçada pelo governo Macron, perde sua força justamente pela resposta e pela punição aos seus signatários. Porém, a carta mais recente dos militares na ativa e os números de intenções de votos a favor de Le Pen, demonstram que há algo muito maior acontecendo na França. Enquanto a guinada de Macron à direita já é perceptível em uma França na qual a esquerda tem sido, cada vez mais, marginalizada, as eleições do ano que vem podem levar o país numa guinada para a extrema-direita.

 

*Doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP, PUC-SP). Membro do Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional (GEDES) e Membro do Grupo de Estudos sobre Conflitos Internacionais (GECI).

Imagem: Emmanuel Macron. Por: https://www.president.gov.ua/.