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O “bolsonarismo” como elo e como amálgama

Jorge M. Oliveira Rodrigues*

 

A compreensão da crise política e social brasileira exige uma análise que adote como ponto de partida o reconhecimento de sua complexidade. Se é certo que o desenrolar da crise se sustenta em aspectos muito bem arraigados de nossa sociedade, é certo também que se insere no contexto mais amplo da crise do capitalismo global. Nesse sentido, a ascensão de Jair Bolsonaro ao poder, reflexo e resultado da crise que se instaurou no país, deve ser encarada como elo e como amálgama nesse processo histórico amplo e complexo.

Com efeito, a chegada de Bolsonaro à Presidência e o movimento que se convencionou nomear de “bolsonarismo” são fenômenos que encontram equivalentes em nível global. O governo de Donald Trump nos Estados Unidos, Jeanine Áñez na Bolívia e de Viktor Orbán na Hungria são exemplos da ascensão da extrema direita, pela via eleitoral ou pela ruptura institucional. Todavia, o ecossistema da extrema direita global não se resume a movimentos que assumiram poder em seus respectivos países.

Na França, a presença da extremista de direita Marine Le Pen no segundo turno das eleições presidenciais se tornou recorrente, resultando na formação de uma espécie de cordão de contenção por parte dos demais grupos políticos para evitar sua vitória – cordão este que não se sabe até quando perdurará. Em 2022, a novidade foi a presença de Eric Zemmour na disputa presidencial, com um discurso reacionário virulento e angariando 7,07% dos votos no primeiro turno das eleições francesas – o equivalente a 2.485.226 de votos.

Na América Latina o cenário político tampouco está livre de grupos e atores políticos de extrema direita. Na Bolívia, para além da auto-proclamada – e agora presa – presidente Jeanine Áñez, o empresário Luis Fernando Camacho participou ativamente do golpe que levou à renúncia de Evo Morales e à posterior instauração de um governo repressivo e de agenda neoliberal antipopular. No Peru, a recusa da candidata de Keiko Fujimori, de extrema direita, em reconhecer a vitória de seu adversário, Pedro Castillo, agravou a crise política no país, gerando ainda maior instabilidade.

Ao mesmo tempo, na Argentina, Javien Milei vem se mostrando um ator político relevante, articulando uma agenda ultraliberal[1] no país. Enquanto no Uruguai as eleições de 2020 foram marcadas pela presença de Guido Manini Ríos, um general de extrema direita, entre os postulantes à Presidência. Ex-comandante do Exército destituído pelo então presidente Tabaré Vázquez e atualmente senador, Ríos teve como companheiros de partido naquele pleito eleitoral candidatos acusados de tortura a prisioneiros políticos durante a ditadura uruguaia, de acordo com a cientista política da Universidad de la República, Alexandra Lizbona.

Nesse ecossistema, do qual destacamos apenas alguns eixos, merecem atenção as relações estabelecidas entre os diversos grupos que o compõem. Tomemos por foco o “bolsonarismo”. É fundamental ter em mente a participação de Eduardo Bolsonaro e de outros políticos aliados do “bolsonarismo”, como Carla Zambelli e Tarcísio de Freitas, na Conferência de Ação Política Conservadora – CPAC, por sua sigla em inglês. De fato, o filho do presidente não apenas participou de diversas edições do evento, como trabalhou ativamente para que o Brasil passasse a sediar edições da conferência.

Ademais, são conhecidos os laços da família Bolsonaro com o ex-presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, bem como com o extremista de direita, Steve Bannon. Eduardo Bolsonaro, inclusive, teve seu nome aventado em investigações no Congresso estadunidense, que, no esforço de desvendar os laços da extrema direita no país, cogita averiguar a participação do parlamentar brasileiro na invasão do Capitólio, em 6 de janeiro de 2021.

No âmbito regional, é sintomático o rápido reconhecimento do governo de Jeanine Áñez, na Bolívia, por Jair Bolsonaro. Os laços da extrema direita latino-americana são explicitados ainda pela proximidade de Eduardo Bolsonaro e Javier Milei, da Argentina. Milei, assim como Trump, chegou a declarar apoio à campanha de reeleição de Jair Bolsonaro. Os vínculos, entretanto, não se limitam à família presidencial. Em setembro de 2021, Guido Manini Ríos manteve reunião com o vice-presidente brasileiro, Hamilton Mourão, tendo também se encontrado com Luiz Carlos Heinze, senador pelo Rio Grande do Sul, aliado de Bolsonaro e notório negacionista.

Configura-se, assim, uma cadeia mais ampla da qual o “bolsonarismo” é um dos elos constitutivos. Sua análise enquanto fenômeno político deve levar em consideração suas relações externas e sua inserção numa cadeia global. Concordamos com a cientista social Sabrina Fernandes que mesmo não sendo possível falar numa “aliança unificada da extrema direita global”, é certo que esses grupos se comunicam, estabelecendo parcerias que vão além de relações institucionais de eventuais governos que ocupem. Todavia, também em conformidade com a pesquisadora, é preciso ir além da mera busca por paralelos ou similaridades.

Com efeito, a análise do “bolsonarismo” como fenômeno exógeno, elo numa cadeia que vai além de si, embora relevante, é incompleta. O “bolsonarismo” enquanto fenômeno político que culminou na vitória eleitoral de Jair Bolsonaro em 2018 deve ser entendido também como um amálgama. Alinho-me aqui ao argumento apresentado pelo historiador Odilon Caldeira Neto, para quem a vitória de Bolsonaro simbolizou o aglutinamento de “uma série de grupos tradicionais da extrema direita brasileira”. Para o autor, o “bolsonarismo” se insere na tradição desses movimentos históricos da extrema direita, a exemplo do integralismo.

Todavia, é possível ainda ir além. Ao tomarmos como referência o governo Bolsonaro, o amálgama é ainda mais amplo. Se é certo que o “bolsonarismo”, em si, se insere na tradição da extrema direita brasileira, como argumenta Caldeira Neto, é certo também que o governo Bolsonaro não se restringe a tais grupos – e não se viabilizaria, é seguro afirmar, apenas a partir deste eixo de sustentação.

Tem-se, portanto, grupos de direita e extrema direita que encontraram no agora ocupante da Presidência o eixo de galvanização de seus interesses, numa lógica de desenvolvimento predatória e com uma concepção de país altamente excludente e desigual. Todos, enfim, com poder de agência que por vezes supera a própria figura de Jair Bolsonaro e seu ciclo de apoiadores mais próximos.

É a partir deste viés que é possível dar algum sentido ao caldeirão ideológico e de interesses que gravitam em torno do Planalto. De ultraliberais como Paulo Guedes, a setores do agronegócio mais reacionário e predatório, passando por rentistas e evangélicos, não são poucos os grupos que encontraram nesse governo uma oportunidade de impor sua agenda – ou ao menos lutar para tal. Dentre esses grupos, um chama atenção pelo peso que mostrou no governo, inclusive ao se sobrepor a outros setores considerados estruturantes do “bolsonarismo” – como é o caso dos chamados olavistas. Trata-se, aqui, dos militares egressos das forças armadas.

A atenção recente que tem recebido a presença de militares na política não pode nos fazer esquecer do descaso de pouco tempo atrás. A leniência do sistema político e dos meios de comunicação com esse grupo específico permitiu que, ao longo dos anos, a anistia de outrora se perpetuasse como permissividade, dando espaço e por vezes legitimando o intervencionismo histórico dos militares brasileiros. Nesse sentido, é fundamental destacar que o alinhamento de militares a Bolsonaro não se dá por cooptação ou tampouco por mera perspectiva de ganhos corporativos. Há, aqui, uma relação complexa que se estrutura também num relevante alinhamento ideológico entre militares e os chamados “bolsonaristas”.

Ao longo desse texto propôs-se uma compreensão do fenômeno que convencionou-se chamar “bolsonarismo” a partir de dois aspectos: de um lado, sua inserção num ecossistema mais amplo da extrema direita global, como um elo; de outro, seu caráter de amálgama, não apenas de movimentos de extrema direita, mas também de uma série de interesses difusos à direita do espectro político.

Assim, e novamente em concordância com Caldeira Neto, nos parece cada vez mais importante olhar para as causas sistêmicas do que representa o bolsonarismo, em seus laços internacionais, mas principalmente nas bases históricas em que se sustenta. E é nesse sentido que faço aqui uma última consideração.

Para além de elo e amálgama, o “bolsonarismo” carrega consigo outro traço fundamental para sua compreensão. Seu surgimento na política nacional reflete aspectos muito arraigados na formação do Brasil enquanto país. Do passado escravista ao racismo presente, passando pela ditadura anistiada e por uma sociedade estruturada no machismo e na desigualdade de classes. O “bolsonarismo” surge, enfim, na esteira das violências estruturais constitutivas da sociedade brasileira e cuja superação, como argumentado por Rodrigues e Mathias, é essencial.

[1] Para uma discussão acerca das nuances do liberalismo enquanto ideologia ver ROCHA, Camila. Menos Marx, mais Mises: o liberalismo e a nova direita no Brasil. São Paulo: Todavia, 2021. Adotamos aqui, conforme a autora, o termo “ultraliberal” para indicar a radicalidade desta corrente específica do liberalismo econômico.

 

*Jorge M. Oliveira Rodrigues é pesquisador do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social e do Grupo de Estudos de Defesa e Segurança (GEDES). Doutorando em Relações Internacionais pelo Programa de Pós-Graduação San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP e PUC-SP).

 

Imagem: Manifestação “Todos com Bolsonaro”, 2018. Por Editorial J/Flickr.

 

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