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A Política Externa Brasileira frente à invasão russa na Ucrânia

Guilherme Paul Berdú*

Ao completar trinta anos de independência, a Ucrânia se vê mais uma vez ameaçada pelo ataque russo deflagrado no dia 24 de fevereiro de 2022. Este contexto tem demandado um posicionamento do Brasil, em razão da precedente aproximação diplomática com a Rússia. Historicamente, o Brasil carrega em suas relações diplomáticas os princípios de não intervenção, autodeterminação (CERVO, 2008), não ingerência e resolução pacífica de controvérsias, construindo a imagem de um país que pauta suas ações dentro desses princípios, em defesa dos valores democráticos, dos direitos humanos, do meio ambiente, da paz e da justiça social (LAMPREIA, 1998). O estreitamento das relações do Brasil com a Rússia ocorre no contexto da ascensão das relações globais-multilaterais para além das relações hemisféricas-bilaterais, conforme apresentado por Cristina Pecequilo (2008), especialmente no contexto do grupo BRICS (Brasil, Rússia, índia, China e África do Sul).  Neste artigo, busca-se analisar a ação externa brasileira frente à ação militar da Rússia na Ucrânia.

O presidente brasileiro eleito em 2018, Jair Bolsonaro, afirmou em sua proposta de governo que, quando eleito, libertaria o Ministério das Relações Exteriores (MRE) de cooperações ideológicas, apoiando e alinhando-se incondicionalmente aos Estados Unidos da América (EUA) (CASARÕES, 2019). Coerente com seu discurso, o primeiro país a ser visitado por Bolsonaro foram os EUA (OPEX – INFORME 597, 2019). Assim, a ação inicial do Brasil, em 2022, foi discutir a situação ucraniana com o Secretário de Estado dos EUA, Antony Blinken, em ligação telefônica com o ministro das Relações Exteriores do Brasil, Carlos França, que defendeu uma solução de acordo com o Direito Internacional (OPEX – INFORME 691, 2022). 

Por outro lado, o dilema do governo brasileiro está posto pelo caráter conservador, segundo Bolsonaro, do presidente da Rússia, Vladimir Putin, estando entre os presidentes com os quais Bolsonaro busca construir uma rede conservadora. Ao ser convidado por Putin para visitar o país, Bolsonaro recebeu questionamentos dos EUA, que enfatizaram o compromisso brasileiro de confrontar Putin em defesa dos princípios democráticos e da ordem. Por sua vez, Bolsonaro afirmou que a viagem para a Rússia teve como objetivo melhorar o entendimento e as relações comerciais. Pressionado novamente, o governo argumentou que a situação entre os países não diz respeito ao Brasil, recorrendo ao vice-presidente Hamilton Mourão para defender tal posicionamento (OPEX – INFORME 693, 2022).

Em mais um telefonema entre França e Blinken, o secretário dos EUA se declarou preocupado com a visita de Bolsonaro à Rússia, e que esta poderia sinalizar apoio a uma possível invasão à Ucrânia. Por sua vez, Bolsonaro afirmou que manteria a visita e negou desgastes entre Brasil e EUA (OPEX – INFORME 694, 2022). Buscando equilibrar a balança, o Itamaraty publicou uma nota oficial, às vésperas da viagem de Bolsonaro, celebrando os trinta anos de relações diplomáticas com a Ucrânia e o aumento das parcerias e comércio entre os países (OPEX – INFORME 695, 2022). 

O presidente brasileiro desembarcou na Rússia no dia 15 de fevereiro e declarou que o Brasil é solidário à Rússia. Ainda, comentou as áreas de cooperação entre os países e destacou a defesa de valores comuns, como a crença em Deus e a defesa da família. Bolsonaro agradeceu o apoio ao Brasil no pleito a um assento permanente no Conselho de Segurança (CS) da Organização das Nações Unidas (ONU), e na defesa da soberania do Brasil sobre a Amazônia. O ministro brasileiro ressaltou que o Brasil busca, junto à Rússia, a promoção de uma ordem multipolar, e Bolsonaro destacou que leva de volta ao Brasil o sentimento de casamento perfeito com Putin (OPEX – INFORME 696, 2022). 

A resposta estadunidense foi imediata. Em nota, o Departamento de Estado dos EUA afirmou que o momento para o Brasil se declarar solidário à Rússia não poderia ter sido pior, enfraquecendo o esforço por evitar um desastre estratégico e humanitário, e as chances de se obter uma solução pacífica para a crise. O presidente brasileiro negou ter tomado partido na questão e afirmou ter transmitido uma mensagem de paz. A porta-voz da Casa Branca, Jen Psaki, criticou a declaração de Bolsonaro em solidariedade à Rússia, afirmando que o país pode estar em oposição à maioria da comunidade internacional (OPEX – INFORME 696, 2022). Em nota, o MRE lamentou o teor das declarações da Casa Branca, e afirmou que não as considera construtivas ou úteis (OPEX – INFORME 697, 2022).

No dia 21 de fevereiro, em sessão do CS da ONU, o embaixador brasileiro no organismo, Ronaldo Costa Filho, defendeu a retirada de tropas de Donetsk e Lugansk – territórios separatistas pró-Rússia reconhecidos como independentes por Putin. Na sequência, no dia 22, por meio de nota, o MRE pediu uma solução negociada, em que as partes evitem a escalada da violência e estabeleçam canais de diálogo rumo a uma solução pacífica. No dia 23, Mourão declarou que o Brasil não iria reconhecer as regiões separatistas do leste ucraniano como independentes, condenou as ações de Putin, asseverou que o país não está neutro, que o Ocidente deve ajudar militarmente a Ucrânia e comparou a expansão russa aos movimentos de Adolf Hitler. Tal declaração e seu emissor foram desautorizados por Jair Bolsonaro no dia seguinte, que convocou seus ministros para uma análise da situação a fim de emitir um parecer. A posição brasileira foi cobrada pelo embaixador estadunidense em exercício no Brasil, Douglas Koneff, que classificou as ações russas como a maior invasão entre países europeus desde a Segunda Guerra Mundial. Ainda, sem emitir uma decisão, Bolsonaro e ministros afirmaram que a prioridade do governo seria coordenar a saída dos brasileiros que estão na Ucrânia (OPEX – INFORME 697, 2022).

Um dia após a ofensiva russa, no dia 24, o ministro Carlos França conversou novamente com o secretário de Estado dos EUA, Anthony Blinken, para tratar da visão do Brasil sobre o tema. Segundo França, os representantes debateram formas de restaurar a paz e proteger os civis. Blinken reiterou o pedido de que o Brasil condene publicamente as ações russas e que se alinhe ao discurso da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN). Em nova reunião do CS da ONU, o Brasil votou a favor da resolução que pede o fim dos ataques russos à Ucrânia, condenou a Rússia por ameaçar a integridade e a soberania de outro país, pediu a suspensão dos ataques e clamou por uma solução diplomática do conflito. Ademais, o MRE pulicou uma nota discordando das operações militares da Rússia contra a Ucrânia, e pedindo a suspensão das agressões (OPEX – INFORME 697, 2022).

Na sequência, o governo brasileiro optou por não propor uma data para o encontro entre o vice-presidente brasileiro, Hamilton Mourão, e o primeiro-ministro da Rússia, Mikhail Mishustin, cancelando a reunião (OPEX – INFORME 696, 2022), ao considerar que recebê-lo poderia ser interpretado como apoio às ações russas (OPEX – INFORME 697, 2022). No dia 27, em reunião do CS da ONU, o embaixador brasileiro, Ronaldo Costa Filho, pediu cautela nas medidas tomadas para não aumentar a tensão entre as partes, afirmando que as sanções poderiam agravar o conflito ao invés de resolvê-lo, apelando por um cessar-fogo. Já em reunião da Assembleia Geral (AG) da ONU, no dia 28, o embaixador brasileiro condenou a invasão russa, defendeu o cessar-fogo e questionou o envio de armas à Ucrânia pelas potências ocidentais. No mesmo dia, em reunião do CS da ONU, o representante alterno do Brasil, João Genésio de Almeida Filho, reiterou as críticas às sanções e ao suprimento de armas, argumentando que esta contribui para a militarização do conflito, e não para o diálogo. Bolsonaro, por sua vez, no dia 28 de fevereiro, informou que o Brasil concederia vistos humanitários a ucranianos, mas reafirmou a posição neutra no conflito (OPEX – INFORME 698, 2022), reiterada nos dias 02 e 03 de março (OPEX – INFORME 698, 2022).

No dia 02 de março, o Brasil reforçou seu posicionamento ao votar a favor da resolução da AG da ONU que condenou a invasão da Ucrânia e pediu a retirada imediata das tropas do país vizinho. Na ocasião, o embaixador brasileiro reiterou a defesa da paz, o cessar-fogo e a construção do diálogo. Já no dia 07, o governo brasileiro enviou uma aeronave contendo itens de ajuda humanitária aos ucranianos, mesmo dia em que Bolsonaro comentou a importância do veto russo na defesa da soberania brasileira sobre a Amazônia (OPEX – INFORME 699, 2022).

A mudança da postura brasileira gerou elogios dos EUA. Em mídia social, o secretário-assistente para o Hemisfério Ocidental do Departamento de Estado, Brian Nichols, elogiou a atuação do Brasil no Conselho de Direitos Humanos da ONU, bem como o posicionamento brasileiro no CS. Enquanto isso, preocupada com a compra de fertilizantes russos, a ministra da Agricultura do Brasil, Tereza Cristina, buscou apoio para uma proposta que exclui o item das sanções impostas à Rússia (OPEX – INFORME 699, 2022), posição reiterada pela ministra por meio de veículos de imprensa e em reunião do Instituto Interamericano de Cooperação para a Agricultura (IICA) na segunda quinzena de março. No dia 24 de março, o Brasil reafirmou sua posição ao aprovar a segunda resolução da AG da ONU pedindo o fim do cerco russo e a proteção de civis (OPEX – INFORME 701, 2022). 

Internamente, durante sessão no Senado, França defendeu Bolsonaro e criticou as sanções impostas por acabarem prejudicando mais as nações em desenvolvimento do que a própria Rússia, tal como ocorre com o próprio Brasil no acesso a fertilizantes russos, prejudicando a agricultura do país (OPEX – INFORME 701, 2022).

O posicionamento do Brasil com relação à invasão russa na Ucrânia se apresenta em dois tempos: 1) descrença de que uma ação militar russa se concretizaria; momento no qual prevalecem o presidente Jair Bolsonaro, que mantém sua visita oficial à Rússia, e seu ministro das Relações Exteriores, Carlos França, que em março defendeu o posicionamento inicial do governo ao afirmar que seu homólogo ucraniano, Dmytro Kuleba, o havia tranquilizado quanto à iminência de um conflito; 2) defesa de uma solução pacífica com retirada das tropas russas da Ucrânia; momento no qual prevalecem as ações no âmbito da ONU através do embaixador brasileiro no organismo, Ronaldo Costa Filho. Mesmo no segundo momento, defendido pelo ministro Carlos França, Bolsonaro preferiu destacar o apoio russo ao Brasil na candidatura a um assento permanente no CS da ONU e na defesa da Amazônia.

O devido funcionamento das instituições brasileiras ainda é colocado em dúvida. Apesar das contradições entre a postura inicial do Brasil e aquela adotada após a invasão russa, neste caso, parece prevalecer a cultura da resolução pacífica de controvérsias através da ação do corpo diplomático brasileiro em espaços multilaterais, mais propriamente, na AG e no CS da ONU.

* Guilherme Paul Berdú – Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP, PUC-SP). Membro do Observatório de Política Exterior (OPEx). Contato: guilherme-paul.berdu@unesp.br

Imagem: Jair Bolsonaro acompanhado de Vladmir Putin durante declaração à Imprensa. Foto: Alan Santos/PR. Palácio do Planalto

 

Referências Bibliográficas

CASARÕES, Guilherme. Eleições, política externa e os desafios do novo governo brasileiro. Pensamiento Próprio, 49-50. 2019. Ano 24. 

CERVO, Amado Luiz. Inserção internacional: formação dos conceitos brasileiros. São Paulo:  Saraiva, 2008, 297 p.

LAMPREIA, Luiz Felipe. A política externa do governo FHC: continuidade e renovação. Revista Brasileira de Política Internacional, 42 (2): 5-17, 1998. 

OBSERVATÓRIO DE POLÍTICA EXTERIOR DO BRASIL (OPEX). São Paulo: Grupo de Estudos  de Defesa e Segurança Internacional, Jan-Mar. 2022. Semanal.

PECEQUILO, Cristina Soreanu. A política externa do Brasil no século XXI: os eixos combinados  de cooperação horizontal e vertical. Revista Brasileira de Política Internacional, Brasília, n.51, 136-153. 2008.

Guerra na Ucrânia e seu reflexo na política internacional africana

Laurindo Tchinhama*

Como os Estados africanos se posicionaram sobre a guerra na Ucrânia? O posicionamento dos países africanos na votação da resolução da Organização das Nações Unidas (ONU), em 2 de março, para condenar a invasão russa à Ucrânia chamou atenção da comunidade internacional porque juntos representavam 27, 97% dos votos. No campo político, boa parte dos Estados africanos tiveram atitudes convergentes embasadas nas relações históricas com as partes em conflito. No âmbito humanitário, assistiu-se ao nível de racismo e xenofobia contra as pessoas negras, em particular os africanos e oriundos do Oriente Médio – o que influenciou indiretamente o posicionamento dos governos africanos.

No tocante à atitude dos Estados africanos na votação da resolução para condenação da invasão russa, foram um total de 28 votos a favor, na sua maioria países com relações estreitas com o Ocidente no setor militar, envolvendo tanto bases militares como operações conjuntas. Por outro lado, houve 17 abstenções de países como, por exemplo, Argélia, Burundi, República Centro-Africana, Senegal, África do Sul, Sudão, Sudão do Sul, Madagascar, Namíbia, Uganda, Zimbábue, República Centro Africana (RCA), Mali e Angola, na sua maioria regimes considerados autoritários ou híbridos. Enquanto a Guiné, Burquina Faso, Togo, Camarões e Marrocos não participaram da votação; e a Eritreia foi o único país africano que votou contra.

Dois argumentos ajudam a entender o posicionamento dos africanos. O primeiro é que se trata de um comportamento político-diplomático. Dentre as razões deste argumento estão o elevado grau de dependência da Rússia e o medo de abalar as alianças estabelecidas com Moscou. Como exemplos que ilustram tal dependência, temos os casos da RCA, Sudão, Líbia, Guine e o Mali, que enfrentam instabilidade política e necessitam do suporte russo no setor de defesa e segurança. A empresa privada de segurança russa, Wagner, por exemplo, atua na RCA no setor de segurança do Estado e há indícios de abusos cometidos pela empresa contra os Direitos Humanos, sendo alvo de críticas pelos observadores do Alto Comissariado da ONU para os Direitos Humanos. Embora a RCA alegue estar investigando tais crimes, as informações indicam que pode ser infrutífero visto que parte da equipe de segurança pessoal do presidente do país, Faustin-Archange Touadera, é composta por membros da empresa. Na Líbia, a empresa possui cerca de 1.200 mercenários que atuam no suporte ao presidente Khalifa Haftar (LYAMMOURI; EDDAZI, 2020).

Ainda nesta linha, é imperioso salientar que muitos países africanos são compradores de armamentos  tanto da Rússia quanto da Ucrânia, assim como também da Bielorrússia, um dos principais aliados russos no conflito. Ademais, as relações Rússia-África nos últimos anos se intensificaram sobretudo a partir do primeiro Fórum Econômico realizado em Sochi, 2019, do qual 43 estados africanos participaram, quando foi fechado um investimento de cerca de US$ 12,5 bilhões de dólares em negócios no continente (LYAMMOURI; EDDAZI, 2020). No fórum foram estabelecidas parcerias nos setores político, securitário, comercial e econômico, jurídico, científico, técnico, humanitário, informacional e ambiental em todo continente. Além disso, parcerias no setor de infraestrutura energética com o Sudão, Etiópia, República Democrática do Congo (RDC) se destacam na política externa russa para África (INSTITUTE FOR GLOBAL DIALOGUE, 2020).

A neutralidade de alguns países chamou atenção da comunidade internacional, em especial dos Estados Unidos da América (EUA). O país criticou a falta de postura clara dos africanos diante da guerra, o que levou alguns estadistas africanos a se posicionarem criticamente. O presidente da África do Sul, Cyril Ramaphosa, declarou que “os países mais poderosos tendem a usar sua posição como membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU para servir seus interesses nacionais em vez dos interesses da paz e estabilidade globais”. Vale lembrar que a África do Sul é um dos principais parceiros estratégicos russos no continente, além de membro dos BRICS, grupo das economias emergentes, do qual a Rússia é integrante. No entanto, esta declaração reforça a longa discussão acerca da reforma do Conselho de Segurança da ONU como um dos pilares da crise que a segurança internacional vem enfrentando nos últimos anos. Ademais, na mesma linha, o embaixador do Quênia no Conselho de Segurança da ONU, Martin Kimani, observou haver uma tendência dos membros permanentes do Conselho da ONU de violarem o Direito Internacional.

Quando se analisa a posição político-diplomática no âmbito regional, o procedimento dos Estados africanos foi díspar. A Comunidade Econômica dos Estados da África Ocidental (CEDEAO), composta por 15 países, e a União Africana (UA) condenaram a invasão russa. A base argumentativa da UA sobre a violação do Direito Internacional, á integridade territorial e à soberania cometidos pela Rússia, também condenou o racismo escancarado contra os africanos que solicitaram refúgio aos países vizinhos, os quais priorizaram os ucranianos em detrimento dos africanos.

Percebe-se que o argumento político-diplomático, de um lado, está alicerçado nas relações bilaterais dos africanos, na dependência do setor de defesa, inteligência e segurança, especificamente, assim como na reaproximação da Rússia com o continente. É uma forma de preservar o cortejo com os russos além das relações históricas que alguns países estabeleceram durante e no pós-Guerra Fria, dado que o país apoiava os movimentos de libertação na África.

O representante queniano, Martin Kimani, comparou a invasão russa com o colonialismo afirmando que “[…] esta situação ecoa nossa história. O Quênia e quase todos os países africanos nasceram do fim de um império. Nossas fronteiras não foram traçadas por nós mesmos. Foram traçadas nas distantes metrópoles coloniais de Londres, Paris e Lisboa, sem considerar as nações antigas que eles separaram”.

Um segundo argumento que influenciou o posicionamento dos Estados africanos, ainda que indiretamente, está relacionado à questão humanitária. O comportamento das entidades ou agentes fronteiriços diante do fluxo de refugiados foi observado em vários jornais internacionais pelo caráter xenofóbico e racista contra os não ucranianos, que eram rejeitados nos meios de transportes. Nesse sentido, o fluxo migratório de ucranianos para os países vizinhos revisitou a questão racial e xenofóbica contra os refugiados não ucranianos, porém residentes no país. Declarações e comportamentos xenofóbicos das entidades migratórias e da mídia elucidaram a diferença na definição de quem deve ser salvo, protegido ou acolhido e, entre os critérios estava a cor da pele e a origem. Os migrantes da África, Índia, Oriente Médio e demais regiões, residentes na Ucrânia, foram impedidos de entrar nos países acolhedores ou de acessar os meios de transportes para se deslocarem.  De um total de 76.000 estudantes residentes na Ucrânia, 16.000 são africanos, ou seja, três em cada dez estudantes estrangeiros na Ucrânia são africanos e o país é o quinto destino mais procurado depois da França, Estados Unidos, Reino Unido e Malásia.

A ajuda humanitária e a solidariedade são seletivas, ficando evidente que algumas vidas importam mais e outras menos – fato que apenas reforça como a expansão do movimento Black Lives Matter torna-se cada vez mais importante na luta contra o racismo internacional e a xenofobia descarada como a presenciada na guerra. Um exemplo claro foi o argumento do primeiro ministro búlgaro, Kiril Petkov de que “estes não são os refugiados a que estamos acostumados. … Essas pessoas são europeias. … Essas pessoas são inteligentes; são pessoas educadas. … Esta não é a onda de refugiados a que estamos acostumados, pessoas que não tínhamos certeza sobre sua identidade, pessoas com passado obscuro, que poderiam ter sido até terroristas”.

Diante da discriminação e violência desenfreada, países africanos como Zimbábue, Angola, Nigéria já retiraram os seus cidadãos da Ucrânia e os demais Estados, como Gana, África do Sul e Costa do Marfim, têm feito esforços para salvarem seus cidadãos. Em tom crítico, a declaração do presidente nigeriano reforçou que “todos os que fogem da situação de conflito têm o mesmo direito de passagem segura sob a convenção da ONU e a cor de seu passaporte ou de sua pele não deve fazer diferença”. Como resposta, a Nigeria fretou aviões para retirar seus cidadãos que conseguiram chegar nos países vizinhos.

Diante do exposto, compreende-se que os argumentos político-diplomático e o humanitário demonstram os fundamentos da política internacional africana frente ao conflito Rússia-Ucrânia, sob pano de fundo das relações internacionais construída ao longo da Guerra Fria, principalmente. De um lado, afere-se que as relações históricas da África com o Ocidente, marcada pela colonização e luta anticolonial, ainda influenciam diretamente na decisão da política internacional e nas relações bilaterais desses Estados com os russos, visto que estes apoiaram os movimentos de libertação nacional. Assim, as relações estabelecidas nos últimos anos com a Rússia, com destaque ao Fórum econômico em Sochi, 2019, demonstram ruptura dos africanos em relação à dependência do Ocidente, apesar destes ainda exercerem maior influência na região, e influenciaram diretamente na votação na ONU. Por último, os atos xenofóbicos presenciados na guerra ilustram que a luta contra o racismo sempre foi uma luta transnacional que merece olhares críticos.

 

Referências Bibliográficas

INSTITUTE FOR GLOBAL DIALOGUE. PROCEEDINGS REPORT Dialogue Russia-Africa Summit. Sochi: [s. n.], 2020.

LYAMMOURI, R.; EDDAZI, Y. Russian Interference in Africa: Disinformation and Mercenaries. Policy Brief for the new South, Rabat, no. June, p. 6, 2020.

 

* Doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais “San Tiago Dantas” (Unesp, Unicamp, PUC-SP), membro do Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional (GEDES) e pesquisador do Observatório de Conflitos.

Imagem: Sessão emergencial da Assembleia Geral da ONU. Por: UN Photo/Cia Pak.

 

A Crise Humanitária na Ucrânia e a Resposta aos Refugiados e Refugiadas: o que determina o rechaço e a acolhida?

Laís Azeredo*

João Carlos Jarochinski Silva**

 

A escalada de conflito na Ucrânia, decorrente da invasão russa em 24 de fevereiro, tem resultado em mortes de civis, destruição de infraestrutura, medo e violência, o que levou ao deslocamento forçado de 10,7 milhões de pessoas, sendo que 4,2 milhões dessas são refugiadas, recepcionadas principalmente na Polônia, Romênia, Moldávia e Hungria. A maioria absoluta dessas pessoas é formada por mulheres e crianças. Desde os conflitos nos Bálcãs nos anos 1990 e da invasão russa à Crimeia, esse é o mais novo episódio europeu que ocasionou uma crise humanitária, demandando soluções emergenciais para atender a refugiados. De fevereiro a abril de 2022, em cerca de cinco semanas, um quarto da população da Ucrânia foi forçada a sair de suas casas, em busca de assistência e segurança, o que torna essa crise a que cresce mais rapidamente desde a Segunda Guerra Mundial. 

Interessante notar que nesse caso, diferentemente do que ocorreu em outras situações de mobilidade com destino a Europa – envolvendo os deslocados em situação de refúgio, em fuga de cenários de violência, conflitos, perseguições e graves violações de direitos humanos -, os ucranianos, felizmente, não estão sendo recepcionados por medidas que inserem essas pessoas em centros de detenção, criminalizando-as e tratando-as como ameaça. A resposta, de grande parte dos países[1] à crise ucraniana, tem sido positiva e acolhedora, compreendendo esse fluxo migratório como dever ser, a fuga pela sobrevivência, pela vida, não uma ameaça à segurança, ao emprego dos nacionais, à saúde pública. Ao ver esse cenário com medidas tão díspares, faz-se mister questionar: o que determina quem vai ser rechaçado e quem vai ser acolhido?

A pronta resposta dos países da União Europeia (UE) esteve baseada na permissão de entrada das pessoas refugiadas ucranianas sem a necessidade de visto. A acolhida por parte dos países vizinhos europeus tem sido de apoio público, com ações das comunidades, e também político, com posicionamentos claros dos líderes de que os ucranianos são bem-vindos. Eslováquia e Polônia permitiram que refugiados pudessem atravessar suas respectivas fronteiras até sem passaporte ou outros documentos válidos. Na Europa, o transporte público foi disponibilizado de forma gratuita, assim como os serviços de telefone. A UE propôs, inclusive, reativar a Diretiva de Proteção Temporária que foi utilizada nos anos 1990 para atender à crise de refugiados nos Bálcãs e que permite às pessoas ucranianas até um ano de Proteção Temporária, sem precisar solicitar refúgio, com acesso a direitos e a residência. Caso o conflito tenha seguimento, essa temporalidade será reavaliada. Em um contexto de fechamento e de forte retrocesso em ações de proteção às pessoas refugiadas, ver esse tipo de medida ser discutida é relevante para demonstrar que não podemos abdicar de um sistema protetivo tão relevante como o dos refugiados.

Ações como a da UE nesse contexto são medidas que contemplam a forma como o regime de Proteção às pessoas refugiadas deveria funcionar: fronteiras abertas, acolhida, sem penalizações para os que estão fugindo e buscando Proteção. Mas, infelizmente, esse não tem sido o padrão europeu e, tampouco, tem sido o padrão adotado nessa situação para os não-ucranianos, mesmo sendo atingidos pela mesma violência. Pessoas que foram afetadas pela crise humanitária na Ucrânia, mas que tinham outra nacionalidade, particularmente nacionais de países africanos, asiáticos ou do Oriente Médio, não conseguiram as mesmas oportunidades de acesso facilitado. Inúmeros relatos de pessoas provenientes de outras localidades, com destaque pelas anteriormente citadas, que viviam na Ucrânia, evidenciaram desafios no acesso à ajuda e Proteção, especialmente racismo e violência. 

Enquanto alguns foram impedidos de embarcar em ônibus e trens em cidades ucranianas, porque a prioridade eram os nacionais, outros descreveram maus tratos por parte de guardas de fronteira e autoridades daquele país, enquanto tentavam atravessar as fronteiras. Os Estados que estão demonstrando tamanha solidariedade com os ucranianos são os mesmos que rechaçam os nacionais de outros países. Na Polônia, migrantes africanos, do sudeste da Ásia e do Oriente Médio sofreram ataques por parte de nacionalistas poloneses e também têm enfrentado dificuldades para acessar o território. 

A pronta e efetiva resposta dos países europeus à crise de refugiados decorrente do conflito na Ucrânia é representativa da capacidade da Europa em responder a esse tipo de situação e permite o questionamento: por que isso não foi feito em outras circunstâncias , como na crise da Síria em 2015-2016? Quando milhares de refugiados sírios e de outras partes do Oriente Médio e África chegaram pela Itália ou Grécia em barcos precários, correndo risco de morte, mulheres com crianças, pessoas em situação de extrema vulnerabilidade, a resposta foi bastante distinta. A associação desses grupos com atividades terroristas, devido ao sentimento anti-muçulmano e à islamofobia, resultou em uma ação agressiva aos deslocamentos, inclusive reforçando plataformas políticas xenofóbicas, além de ações de criminalização, impedimento de acesso a território seguro e devolução, contrariando princípios basilares do Direito Internacional dos Refugiados e da estrutura jurídica europeia. 

Como esquecer que a mesma Hungria, que hoje mostra solidariedade para com os ucranianos,  instalou cercas nas fronteiras, legalizou a devolução de migrantes e fechou a fronteira com a Sérvia, além de ter associado a migração com diversos tipos de problemas e ameaças. De acordo com Parekh, é compreensível a recepção que os ucranianos têm recebido de seus vizinhos, muito em função da empatia construída pela fluidez de suas fronteiras e pelas diásporas constituídas nos países mais próximos, além do histórico pertencimento à antiga União Soviética. No mais, é mais fácil recepcionar os ucranianos por conta de seu direito já estabelecido de permanência nos países do bloco por até 90 dias. Ignorar, todavia, a racialização dessa resposta seria não perceber o contexto relacionado ao tema nos últimos anos, o que permite formular a hipótese de que a solidariedade existiu porque eles são percebidos como mais semelhantes, em termos de características físicas, de crenças, história. São vistos como parte da mesma “civilização” europeia. “Não são refugiados com um passado desconhecido”, conforme afirmou o primeiro-ministro búlgaro

A justificativa utilizada para que os não-europeus não recebam o mesmo tratamento que os ucranianos – por mais que também tenham sido afetados pela mesma Guerra -, e a resposta anterior que era dada aos outros deslocamentos de refugiados – notadamente provenientes do Oriente Médio e África -, pautam-se na ideia de que esses fluxos representam uma ameaça à segurança. Não há dados embasados que comprovem que pessoas do Oriente Médio ou da África estão mais ou menos propensas a cometer crimes ou a realizar um ato terrorista. Utilizar essa perspectiva é abrir espaço para um pensamento racializado, que associa determinados grupos étnicos, tidos como indesejados, a práticas criminosas. É racismo disfarçado de motivação de segurança.

A situação deixou mais claro algo que já ocorria anteriormente: que a dinâmica europeia de dar boas-vindas a pessoas refugiadas e migrantes é focada em grupos específicos. Essa eficiente resposta aos refugiados ucranianos deixou explícito que a abordagem de compartilhamento de responsabilidades – que envolve governos, sociedade civil, agências humanitárias e comunidades locais – e uma política de solidariedade e acolhida humanitária são possíveis e podem funcionar muito bem. O necessário é vontade política.

Muito se tem questionado se a partir desse exemplo, um novo paradigma para o acolhimento e proteção de pessoas refugiadas pode surgir, baseado no desenvolvimento esperado de uma lógica de ação pautada na solidariedade e nos direitos humanos. Infelizmente, mesmo com a importante, necessária e significativa resposta que tem sido dada para essa situação, quando se enxerga em perspectiva, a mudança de paradigma parece algo distante, pois só ocorrerá quando os critérios de raça, cor e nacionalidade deixarem de ser associados a questões de segurança. Enquanto discursos, percepções sociais e políticas e, principalmente, as ações corroborarem a racialização da segurança, a acolhida decente de pessoas refugiadas vai permanecer uma exceção.

[1] A resposta da Grã-Bretanha à crise tem sido distinta da que a União Europeia tem oferecido, visto que manteve o padrão de segurança recorrente e restringiu a concessão de entrada aos que tivessem familiares próximos vivendo na Grã-Bretanha, mas que teriam que ter visto prévio, para evitar a entrada de “infiltrados russos e extremistas”.

*Laís Azeredo, doutora pelo PPGRI San Tiago Dantas

**João Carlos Jarochinski Silva, Professor do Mestrado em Sociedade e Fronteiras da Universidade Federal de Roraima (PPGSOF/UFRR) e Coordenador da Cátedra Sérgio Vieira de Mello (CSVM/UFRR)

Imagem: Refugiados partindo da Ucrânia em direção à Polônia. Por: Ministério de Assuntos Internos da Ucrânia/Wikimedia Commons.

A Crise de Refugiados Ucranianos: um retrato da linha de cor na comoção internacional

Carolina Antunes Condé de Lima*

Lucas Ramos Oliveira**

 

Desde o início da invasão russa à Ucrânia em 24 de fevereiro de 2022, a questão dos refugiados do conflito ganhou ampla cobertura midiática e gerou grande comoção internacional. Repórteres de todo o mundo acamparam na fronteira entre Ucrânia e Polônia para noticiar a chegada de famílias inteiras que fugiam do conflito. Além deles, milhares de voluntários também se dirigiram às fronteiras para receber os refugiados ucranianos com água, comida e cobertores; europeus abriram suas casas para receber os ucranianos; e toneladas de alimentos foram enviadas do Brasil para ajudar as vítimas da guerra. No entanto, ao mesmo tempo que as imagens do conflito emocionam, elas também levantam uma questão: por que os refugiados ucranianos geram mais comoção e recebem mais ajuda do que os demais grupos de refugiados ao redor do mundo? 

Para responder a essa pergunta, resgatamos a ideia suscitada por Du Bois (2021) sobre o mundo ser dividido por uma linha de cor e partimos da hipótese que por trás da comoção com os refugiados ucranianos há uma questão de racismo estrutural; ou seja, a solidariedade internacional com os ucranianos é um reflexo do pacto da branquitude, dando mais importância a fatos que acontecem com pessoas brancas e marginalizando outras questões. Para tanto, propomos uma breve análise da cobertura midiática e dos dados e respostas europeias frente a Crise de Refugiados de 2015 em comparação com  a Crise de Refugiados Ucranianos, a fim de mostrar a existência de uma linha de cor na comoção internacional.

A Criação da Ideia de Linha de Cor

A chegada dos europeus à América transformou o mundo (QUIJANO, 1998). Por mais determinista que essa afirmação possa parecer, ela resume em poucas palavras o que aconteceu nas relações históricas, intersociais, nas concepções de tempo, cultura e de desenvolvimento; além disso, do encontro dos europeus com as populações nativas da América, tem início um processo de racialização dessas populações originárias do continente. Desde então, estabeleceu-se um padrão de dominação e hierarquia que tem a ‘raça’ como elemento organizador. A partir dos primeiros contatos entre europeus e não-europeus, a ideia de raça passou a ter implicações diretas sobre os padrões de relação e interação humana. Ou seja, raça é uma construção social usada para hierarquizar a sociedade colonial em todas as suas dimensões, desde a divisão do trabalho, a possibilidade de ocupar espaços e até o acesso ao conhecimento. Em suma, são determinações que têm por base uma divisão feita por uma linha de cor, imposta na colonização e que permanece até hoje (GROSFOGUEL, 2016; QUIJANO, 1998; SILVA, 2021).

A colonização, seguida do processo de colonialidade, envolveu processos violentos que, como diz Fanon (1967), buscaram tirar daquele que foi colonizado qualquer resquício de humanidade. A violência de desumanizar o outro não foi apenas física, mas também emocional e cultural: do colonizado são retiradas suas manifestações culturais, seu entendimento de sociedade e de relações pessoais, sua organização social, sua língua e representações artísticas e seu sagrado; ou seja, do colonizado é arrancado o seu mundo de viver. Soma-se a isso o processo de desumanização dos corpos racializados pela violência contra seus corpos – desde o momento que foram sequestrados até os castigos corporais sofridos. É em cima desses conceitos, da naturalização da racialização e da retirada da humanidade dos corpos racializados que a identidade europeia se construiu; fruto de uma divisão de linha de cor, na qual o corpo racializado foi desumanizado e o corpo branco foi colocado no topo de uma hierarquia, que tem como fundamento a proteção dos seus. 

A identidade europeia, portanto, é pautada sobre o pacto narciso da branquitude (OLIVEIRA, 2020; SILVA, 2021), o qual entendemos como as

alianças inconsistentes, inter-grupais, caracterizadas pela ambiguidade e, no tocante ao racismo pela negação do problema racial, pelo silenciamento, pela interdição de negros em espaço de poder, pelo permanente esforço de exclusão moral, afetiva, econômica e política do negro, no universo social (SCHUMAN, 2012, p.28 apud OLIVEIRA, 2020, p.40).

Ou seja, podemos associar o pacto narciso da branquitude ao que hooks (2017, p. 86) chamou de ato privilegiado de nomear e Vitalis (2000) chamou de norm against noticing. Enquanto a ideia de hooks fala dos aspectos que são escondidos, ou marginalizados, nas discussões que formam teorias e interpretações dos fatos, Vitalis aponta também para o silenciamento de corpos racializados nos ambientes e discussões acadêmicas. Uma das consequências disso é que os problemas que atingem corpos racializados são excluídos da moral afetiva e da solidariedade internacional – seja por sua marginalização ou pela desumanização que persiste quando tratamos desses grupos.  

Para evidenciar isso, na próxima sessão iremos trabalhar com materiais e dados selecionados sobre a atual crise de refugiados ucraniana e traçar comparações com dados da Crise de Refugiados de 2015, a fim de mostrar a existência de uma linha de cor na comoção internacional. Especificamente, tentaremos contrastar o volume de refugiados de ambas as crises, a política de acolhimento realizada pela União Europeia (UE) e os países da Europa durante esses dois períodos e a cobertura midiática, especialmente no que se refere ao apelo emocional.

Duas Crises de Refugiados, Duas Narrativas 

Em setembro de 2015, dados da Organização Internacional para as Migrações (OIM) apontaram que mais de 350 mil pessoas haviam tentado atravessar o Mediterrâneo — 2,4 mil desse montante havia morrido durante o percurso. Até o final daquele ano, o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR) indicava que pouco mais de um milhão de indivíduos tentaram chegar na Europa e que, desse contingente, 50% eram sírios fugindo do contexto de guerra civil, 20% afegãos e outros 7% iraquianos.

Levando em consideração o importante volume de indivíduos tentando acessar a Europa ocidental, Itália e Grécia – países que eram considerados porta de entrada dos refugiados -, assim como Alemanha, tiveram de ajustar suas políticas migratórias, o que teve reflexos políticos em todo o continente. Apesar do apoio inicial alemão para recepcionar os refugiados do Mediterrâneo e da União Europeia ter tentado equacionar esse contingente populacional entre seus Estados-membros, Áustria, Hungria, Polônia e República Tcheca rejeitaram o sistema de cotas da UE e construíram muros em suas fronteiras a fim de espantar a entrada de refugiados em seus territórios. Além disso, a França fechou suas fronteiras com a Itália.

Politicamente, é importante ressaltar também que a crise foi uma bandeira importante para o aumento no tom de vozes conservadoras por toda a Europa. No Reino Unido, a ala conservadora britânica se utilizou dessa questão para alavancar o Brexit. Na Itália, o fluxo migratório também foi mobilizado pela coalizão conservadora, que acabou recebendo o maior número de votos nas eleições de 2018. 

O apelo midiático dessa crise iniciou-se apenas no final de 2015, quando o corpo de Alan Kurdi, menino sírio de 5 anos, foi encontrado em uma praia na Turquia, por mais que a crise somasse números alarmantes durante todo o ano de 2015 e em anos anteriores. O desenho traçado pela mídia tratava menos da receptividade negativa da Europa e mais do horror que beirava as praias banhadas pelo Mediterrâneo.

Por outro lado, quando olhamos para o caso ucraniano de 2022, é gritante a diferença de postura. Em assembleia da União Europeia, foi decidida proteção humanitária a ucranianos por unanimidade. Ucranianos terão acesso ao mercado de trabalho, residência, assistência médica e educação infantil por um ano. O Reino Unido, que não participa mais da União Europeia, ofereceu mesada a quem acolhesse ucranianos em suas casas.

O caso polonês, nesse sentido, é o mais emblemático de todos. País que faz fronteira com a Ucrânia e é membro da União Europeia, a Polônia já recebeu mais de 2,1 milhões de refugiados ucranianos, de acordo com dados do ACNUR. O presidente do país, Andrzej Duda, declarou que muitos estavam sendo acolhidos pelas famílias polonesas “porque as pessoas sabem que devem abrir seus corações e receber os refugiados”.

Polônia e Ucrânia, importante ressaltar, possuem laços bastante estreitos. Muitos ucranianos trabalham na Polônia, assim como empresas polonesas têm operações na Ucrânia. Cerca de 1,5 milhão de ucranianos vivem na Polônia e muitos deles estão agora acomodando em suas casas parentes e amigos que chegam fugindo da guerra no país vizinho.

Os poloneses têm promovido diversas campanhas de doação de roupas de frio, cobertores, alimentos, itens de higiene como fraldas, absorventes femininos e dinheiro. Há centros de coleta de mantimentos e roupas em várias cidades onde as pessoas podem deixar suas doações para serem encaminhadas aos refugiados.

O próprio governo polonês tem sido bastante receptivo. No início de fevereiro, quando a Rússia estava pressionando a Ucrânia, o governo declarou que a Polônia também receberia um milhão de refugiados ucranianos se fosse necessário. Imediatamente após a invasão russa da Ucrânia, a Polônia rapidamente instalou oito chamados “pontos de recepção” ao longo dos 500 quilômetros da fronteira com a Ucrânia. Esses lugares oferecem comida quente, opções para tomar banho e também colchões para descansar temporariamente.

Em entrevista à CNN, o ex-diretor no ACNUR e na Organização Internacional para as Migrações, Jeff Crisp,  avaliou que a diferença na resposta dos países europeus entre as duas crises migratórias é nítida. De acordo com ele, “os ucranianos se deslocaram de forma mais rápida e em maior número, mas não há o mesmo senso de alarme e medo na Europa”. Crisp aponta alguns fatores que explicam a diferença e o primeiro deles é a discriminação de raça e etnia. “Os ucranianos são vistos como europeus brancos e cristãos”, explica. Os refugiados que vinham do Oriente Médio não eram percebidos como brancos, além de alguns serem muçulmanos. Para Crisp, essas características levaram os europeus a temerem possíveis ameaças terroristas.

Na esteira dessa diferenciação, africanos que moram na Ucrânia estavam tendo dificuldades de cruzar a fronteira. Polônia e Ucrânia negam que tenha havido discriminação na zona fronteiriça e disseram que os guardas são instruídos a deixar todos os estrangeiros passarem. Alguns africanos postaram vídeos nas mídias sociais acusando as autoridades de os impedirem de cruzar a fronteira durante dias, apesar do frio e da falta de comida ou outros suprimentos. Entre eles, milhares de jovens africanos que estavam estudando na Ucrânia, atraídos pelo relativo padrão alto do ensino e baixos custos das universidades ucranianas. Em contrapartida, os guardas teriam permitido que refugiados brancos entrassem na Polônia.

Para além do tratamento estatal, o tratamento midiático também é bastante díspar em relação às duas crises. Em primeiro lugar, a crise ucraniana é coberta de forma latente e massiva. Somos constantemente bombardeados por notícias sobre diversos aspectos da guerra e seus desdobramentos. A prioridade dada pelos veículos de mídia e a atenção monumental em comparação à crise no Mediterrâneo evidenciam a reafirmação do pacto de proteção da branquitude. A fala do próprio Jeff Crisp, nesse sentido, endossa essa avaliação.

Além disso, o ponto fulcral da crítica está no tom das reportagens de uma maneira geral. Grande parte da mídia internacional defende que a Ucrânia, país “relativamente europeu e civilizado, não deveria passar por isso”. Em não haver o constrangimento por parte dos jornalistas de fazer comparações sobre “a Ucrânia não ser um país de terceiro mundo, como Iraque e Afeganistão” e de os ucranianos “serem loiros de olhos azuis”, escancara-se o racismo que estrutura as relações sociais no Norte Global quando pensa as vítimas europeias e não-europeias de conflitos; ao mesmo tempo, o reconhecimento da dor do ucraniano como um semelhante, fato que não se encontra de maneira tão vocal ou explícita quando o conflito não ocorre em território europeu, expõe uma hierarquia subjetiva de corpos que são permitidos de receber afeto e solidariedade, ao mesmo tempo que nega tais sentimentos a outros corpos: corpos racializados.

A atual crise de refugiados ucraniana, quando em comparação com outras crises humanitárias, em específico com a crise de refugiados de 2015, nos permite recuperar Du Bois (2021) e afirmar que há uma linha de cor que distingue aqueles que são dignos de ajuda e refúgio daqueles que podem ser deixados para morrer. Nesse sentido, a solidariedade “internacional”, ao mesmo tempo que comove, também preocupa: enquanto, de um lado, tanto governos como empresas privadas se mobilizam para abrigar refugiados ucranianos; do outro lado, aos não-europeus é reservada apenas a morte.

Ao mesmo tempo, quando refletimos sobre essa conjuntura, fica igualmente evidente a estrutura racista pela qual se organizam as relações sociais sob o selo da ordem internacional vigente. Não seria surpreendente constatar futuramente, caso algo semelhante à onda de refugiados de 2015 ocorresse mais uma vez, que a crise de refugiados da guerra russo-ucraniana seja usada de subterfúgio para o impedimento de concessão de proteção humanitária a não-europeus. O pacto de proteção à branquitude demanda que, do outro lado da moeda, ocorra a exclusão sistemática daqueles que não se deleitam com o privilégio concedido pela estrutura.

 

REFERÊNCIAS

CESAIRE, Aimé. Discurso sobre o colonialismo. Tradução de Claudio Willer. Ilustração de Marcelo D’Salete. Cronologia de Rogério de Campos. – São Paulo: Vendeta, 2020

DU BOIS, W. E. B. As almas do povo negro. São Paulo: Editora Veneta. 1ª Edição. 2021.

FANON, Frantz. Os Condenados da Terra. Editora Ulisseia limitada, Lisboa. Tradução de SERAFIM FERREIRA, Transcrição: João Filipe Freitas, 1961.

GROSFOGUEL, Ramón: “A estrutura do conhecimento nas universidades ocidentalizadas: racismo/sexismo epistêmico e os quatro genocídios/epistemicídios do longo século XVI”, Revista Sociedade e Estado, vol. 31, número 1, janeiro/abril 2016.

HOOKS, bell. Ensinando a transgredir: a educação como prática da liberdade. Tradução de Marcelo Brandão Cipolla. – 2.ed. – São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2017

OLIVEIRA, Ananda Vilela da Silva. Epistemicídio e a academia de Relações Internacionais: o Projeto UNESCO e o afrodiaspórico sobre o Brasil e seu lugar no mundo. Dissertação de Mestrado, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Instituto de Relações Internacionais, 2020.

QUIJANO, Aníbal. Colonialidad del poder, cultura y conocimiento en America Latina, 1998. 

SILVA, Karine de Souza. “Esse silêncio todo me atordoa”: a surdez e a cegueira seletivas para as dinâmicas raciais nas Relações Internacionais. Revista de Informação Legislativa: RIL, Brasília, DF, v. 58, n. 229, p. 37-55, jan./mar. 2021. Disponível em: https://www12. senado.leg.br/ril/edicoes/58/229/ril_v58_n229_p37

VITALIS, Robert. The Graceful and Generous Liberal Gesture: Making Racism Invisible in American International Relations. Millennium: Journal of International Studies, 2000. Vol. 29, No. 2, p. 331-356. 2000.

 

* Doutoranda em Relações Internacionais no Programa de Pós Graduação San Tiago Dantas (UNESP – UNICAMP – PUC-SP). Bolsista CAPES. Pesquisadora no Grupos de Estudos sobre Defesa e Segurança (GEDES/UNESP),  membro do Observatório de Conflitos (GEDES) e do Observatório Feminista de Relações Internacionais (OFRI).

** Doutorando em Relações Internacionais no Programa de Pós Graduação San Tiago Dantas (UNESP – UNICAMP – PUC-SP). Pesquisador no Grupos de Estudos sobre Defesa e Segurança (GEDES/UNESP) e membro do ONDJANGO/GEDES (Núcleo de Estudos sobre Política e Relações Internacionais em África).

Imagem: Refugiados ucranianos recebem assistência na Polônia. Por: Silar/Wikimedia Commons.

Armas nucleares e invasão da Ucrânia: novas facetas de velhas inquietudes sobre o regime de não proliferação nuclear

Luiza Elena Januário*

Uma revigorada preocupação com os perigos representados pelas armas nucleares foi despertada desde os momentos iniciais da invasão russa da Ucrânia, no dia 24 de fevereiro de 2022. Em seu discurso anunciando o curso de ação tomado, o presidente da Rússia, Vladimir Putin, assegurou que seu país “é hoje uma das potências nucleares mais poderosas do mundo […] não deve haver dúvidas de que um ataque direto ao nosso país levaria à derrota e a consequências terríveis para qualquer potencial agressor”. O arsenal nuclear em pauta é, de fato, amplo e a menção aos efeitos de uma agressão externa contra a Rússia pode ser entendida como um lembrete para os países ocidentais acerca do poderio russo nessa seara e dos altos custos – em todos os sentidos – implicados em uma ação direta contra a nação eurasiática. 

Tal entendimento foi reforçado com a declaração de Putin do dia 27 do mesmo mês, em que o mandatário afirmou colocar as forças de dissuasão do país em “estado especial de alerta”. As armas nucleares são o elemento central em questão e, ao sinalizar uma possível disposição em recorrer a esse tipo de armamento, o ex-agente da KGB elevou ainda mais as tensões em uma tentativa de evitar um engajamento direto da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) no conflito da Ucrânia.

Deve-se recordar que bombas atômicas não foram utilizadas em uma situação de conflito desde as explosões de Hiroshima e Nagasaki ao final da Segunda Guerra Mundial, no alvorecer da era nuclear. O potencial de destruição das armas nucleares levou ao esforço de coibir sua difusão, ao mesmo tempo em que era necessário reconhecer as aplicações pacíficas da tecnologia. Sobre essa dualidade foi fundado o regime de não proliferação e a ordem nuclear que se seguiu foi estabelecida com base em dois mecanismos inter-relacionados: um sistema gerenciado de dissuasão e um sistema gerenciado de abstinência, nos termos de Walker. O primeiro diz respeito à manutenção da estabilidade internacional por meio da posse de armas nucleares por um conjunto determinado de Estados, enquanto o segundo refere-se ao compromisso dos demais Estados em não desenvolver ou adquirir esse recurso de poder.

A primeira dinâmica remete a ideia de evitar a utilização da bomba atômica por parte de um Estado mediante a ameaça de represália por outros que também dispõem de dispositivos explosivos nucleares, considerando o potencial de destruição do armamento. A lógica da dissuasão implica na necessidade de manter crível a ameaça de utilização dos arsenais nucleares, tanto no sentido da capacidade militar como da disposição política. Porém, a forma como a possibilidade de uso das armas nucleares foi abertamente colocada como uma opção é fonte, com razão, de preocupação e condenação

A doutrina militar russa atual estabelece grande importância para a dissuasão, indicando que o recurso às armas nucleares poderia ser utilizado como resposta a um ataque perpetrado com armas nucleares, outras armas de destruição em massa ou em caso de um ataque convencional massivo, restringido a última possibilidade a uma situação em que a própria existência do país estivesse ameaçada. A questão aventada então refere-se à possibilidade de que a guerra da Ucrânia seja enquadrada como tal caso. Ao se considerar o já citado discurso inicial de Putin acerca da invasão, pode-se concluir que há uma caracterização nesse sentido, em que se ressalta o ambiente mais amplo de segurança internacional com a expansão para leste da OTAN e o posicionamento dos EUA. O presidente afirmou claramente que “a Rússia não pode se sentir segura, se desenvolver ou existir com a ameaça constante proveniente do território da Ucrânia contemporânea”, exacerbando o receio que o país quebre a tradição de não uso de armas nucleares.  

É pertinente recordar também que a noção de que um ataque nuclear limitado poderia ser utilizado para convencer um inimigo a desistir de uma agressão foi introduzida na doutrina russa em 2000 com o conceito de ‘de-escalação’, no sentido justamente de que se o país enfrentasse um ataque convencional que ultrapassasse sua capacidade de defesa, um ataque nuclear limitado poderia ser utilizado como resposta.  Desse modo, a perspectiva seria escalar as hostilidades com a utilização de armas nucleares com o objetivo de desescalar um conflito de modo geral. O conceito foi retomado por muitos analistas diante da invasão da Ucrânia.

De todo modo, o conflito tem estimulado diversas análises sobre o perigo das armas nucleares. Assim, alguns tópicos de interesse foram o risco de escalada acidental e proposital, os cenários em que a Rússia poderia recorrer ao seu arsenal nuclear e a visão do líder russo sobre o ambiente de segurança internacional e o uso de armas nucleares. Outra faceta dessa questão é representada pela presença de reatores nucleares em zonas de guerra, havendo grande preocupação com relação às plantas nucleares de Chernobyl e  Zaporizhzhia. 

Apesar da relevância de todos esses temas, propõe-se aqui discutir o significado da postura russa face ao regime de não proliferação nuclear e à ordem nuclear global. Um aspecto relevante nesse sentido diz respeito ao fato de que a Ucrânia possuía armas nucleares soviéticas em seu território quando se tornou independente em 1991 e abriu mão desse arsenal em 1994, em troca de garantias de segurança em termos de sua soberania e integridade territorial. Diante desse quadro, já foram realizadas considerações sobre os efeitos nocivos da postura russa para o regime de não proliferação, pois a confiança nas iniciativas diminuiria ao passo que se desenha uma imagem de que o objetivo do Tratado de Não Proliferação Nuclear (TNP) é oferecer cobertura para que os países nuclearmente armados reconhecidos como legítimos tomem as ações necessárias para atender seus interesses sem repercussões. Assim, difunde-se um entendimento de que a Ucrânia estaria mais segura com armas nucleares e que a Rússia pode realizar ações agressivas impunemente justamente por possuir a bomba atômica, parecendo indicar que a proliferação compensa.

O ponto defendido aqui é que o momento atual evidencia com dramaticidade as contradições intrínsecas do regime de não proliferação e da ordem nuclear derivada. Não se trata de uma perversão do espírito das iniciativas, mas de uma demonstração crua de sua desigualdade estrutural. A ordem nuclear construída ainda durante a Guerra Fria apresenta um paradoxo, já que, por um lado, seus valores e suas normas são difundidos com pesado financiamento por todo o mundo não só por meio de organizações internacionais, mas também por uma série de outras dinâmicas, incluindo a produção do conhecimento em universidade e think thanks – algo que foi denominado de complexo de não proliferação. Por outro lado, é muito presente uma sensação de crise iminente do ordenamento. 

Tal sensação se deve, em grande medida, à existência de uma série de injustiças relacionadas a um caráter discriminatório e desigual da ordem nuclear que assume forma clara por meio do TNP, a espinha dorsal do regime. O tratado, finalizado em 1968 e em vigor desde 1970, estabeleceu duas categorias de países, com direitos e obrigações distintas. De um lado, estavam as potência nucleares legítimas, os países que desenvolveram a bomba atômica até 1967, e de outro, todo o resto. Com essa configuração, o TNP foi acusado desde sua fundação de ser um sustentáculo do status quo, inquietação presente ao se refletir sobre as implicações da postura russa hodierna. Além do mais, o mal-estar provocado pela perspectiva de que a Ucrânia estaria mais segura com armas nucleares e que as garantias de segurança se mostraram inúteis está relacionado a um dos problemas de justiça que remete justamente à situação dos países que não possuem armas nucleares e não estão sob guarda-chuvas nucleares. Nesse contexto, só podem contar com a proteção do Direito Internacional, das normas e da moralidade – o que representa um acesso desigual à segurança global.

Propõe-se que uma noção de confiabilidade, visivelmente abalada atualmente, também é chave para essa construção. A divisão do mundo em duas categorias de países implica no entendimento de que alguns são responsáveis e confiáveis para deter armamento nuclear, e os outros não. Assim, o regime é sustentado por meio de double standarts, sendo muitas vezes difundido um discurso que estabelece que os países nuclearmente desarmados seriam irresponsáveis e não confiáveis devido à falta de maturidade política dos países, à falta de competência técnica para lidar com armas nucleares e à própria condição de subdesenvolvimento em muitos casos. Assim, está em pauta uma perspectiva que coloca em relevo as relações de poder na política internacional e um passado de colonialismo e imperialismo, constituindo outro problema da justiça na ordem nuclear. Talvez o ponto nevrálgico da situação atual seja a evidência de que as potências nucleares legítimas podem não ser tão confiáveis e responsáveis assim – como toda a discussão sobre a racionalidade de Putin indica.

Não se pretende aqui defender a proliferação de armas nucleares. Pelo contrário, postula-se a necessidade de se repensar os fundamentos das iniciativas destinadas a lidar com a questão nuclear, escapando do labirinto que impede a reflexão sobre futuros alternativos no tocante à não proliferação. Assim, a reflexão aqui proposta diz respeito ao entendimento de como o significado nocivo da postura russa com respeito à possível utilização de armas nucleares na Guerra da Ucrânia para o próprio regime de não proliferação e para a ordem nuclear global têm raízes mais profundas. A situação atual evidencia inquietudes presentes desde os momentos fundacionais das iniciativas e aponta a necessidade de repensar os parâmetros para lidar com a questão nuclear.

*Doutora e mestra em Relações Internacionais pelo Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (UNESP-UNICAMP-PUC-SP). Professora da Universidade Paulista (UNIP). Membro do Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional (GEDES). 

Imagem: Tsar Bomba Revised. RDS202 (similar à AN602 “Tsar Bomba”) no Museu da Bomba Atômica de Sarov. Por: Croquant/Wikimedia Commons.

Israel e a guerra na Ucrânia: visita de Bennett à Rússia e discurso de Zelensky ao Knesset

Karina Stange Calandrin*

 

No dia 20 de março, o Presidente ucraniano Volodymyr Zelensky proferiu um discurso ao parlamento israelense (Knesset). O pronunciamento compõe uma série de aparições públicas que Zelensky vem realizando no intuito de angariar apoio às forças ucranianas. O Congresso dos Estados Unidos, a Casa dos Comuns na Grã-Bretanha, o Bundestag alemão e o parlamento europeu são outros exemplos de fóruns aos quais o presidente discursou acerca do atual conflito que se arrasta há mais de um mês.

Nos discursos feitos até então, o ucraniano criticou países, sobretudo aqueles que compõem a esfera ocidental, por não providenciarem apoio militar suficiente à Ucrânia. Em relação aos estadunidenses e aos europeus, Zelensky denunciou a relutância em impor uma zona de exclusão aérea sobre o território de seu país. Já para os israelenses, perguntou por quê Israel não teria ainda fornecido à Ucrânia o sistema de defesa antimísseis, por ele chamado de “melhor do mundo”, cunhado de “Iron Dome” ou “Domo de Ferro” em tradução livre.

Diferentemente dos demais discursos, que continham um elevado tom de crítica, para o parlamento israelense, Zelensky, que tem origem judia, deu ênfase à decepção que porventura sentia, como se esperasse um pouco mais por conta da história dos dois países. Ele afirmou que ucranianos escolheram salvar judeus durante o Holocausto, exagerando os fatos de forma a utilizar a emoção com o intuito de criar laços entre os dois países, como sugere a análise de Anshel Pfeffer

Em seu texto, Pfeffer afirma que Zelensky proferiu um discurso fortemente sionista, enfatizando que tanto Ucrânia quanto Israel são nações que buscam a paz para os seus povos e que querem apenas a “permissão para existir”, novamente ressaltando a carga emocional. Nesse contexto, referindo-se às intenções russas em relação à Ucrânia, o presidente citou com admiração uma frase da ex-Primeira-ministra Golda Meir: “nossos inimigos só querem acabar com a nossa existência”. 

Em 5 de março, dias antes do discurso proferido por Zelensky, o Primeiro-ministro israelense, Naftali Bennett, foi até a Rússia se encontrar com Putin com o intuito de mediar o conflito entre Rússia e Ucrânia. Israel, nesse momento, reiterou sua opção por não tomar um lado claro no conflito, decisão que se justifica por conta da relação entre Israel e Rússia no que tange:  (i) a Síria, país com o qual o território israelense faz fronteira; (ii) o Hezbollah, grupo que explicitamente se opõe ao regime israelita e que é apoiado por Moscou; (iii) e o Irã, país que mantém importantes parcerias estratégicas com o Kremlin em torno de seu programa nuclear e que é considerado o maior inimigo de Israel no Sistema Internacional. A adoção de uma certa neutralidade em relação ao conflito que se estende sobre a Ucrânia, assim, pode ser compreendida como um esforço de Israel no sentido de garantir que a Rússia não acionará seus parceiros para arquitetar retaliações contra Jerusalém.

Ademais, o governo israelense entende que a Rússia é responsável pela contenção do Irã e do Hezbollah na Síria, e por isso seria um parceiro importante e estratégico no que tange os interesse israelenses na região. Assim, aderir a uma posição anti-Rússia, ajudando diretamente a Ucrânia com aparatos militares, não seria interessante para Israel no momento, podendo agravar a situação na região, escalando para uma possível guerra, principalmente contra o Hezbollah. 

Zelensky compreende esta situação, por isso, diferente dos outros discursos que proferiu às demais casas legislativas ao redor do mundo, em Israel se utilizou de um discurso com forte carga emocional, visando não os parlamentares, mas sim a opinião pública israelense (a Praça Habima em Tel Aviv estava lotada e bandeiras da Ucrânia eram vistas aos montes). 

A relutância de Israel em se posicionar contra a Rússia decorre de uma série de cálculos que os israelenses consideram vitais para preservar a segurança do país. A Rússia atua como o principal intermediário de Israel na Síria, na qual os israelenses receberam liberdade para perseguir e atacar as milícias xiitas apoiadas pelo Irã, que são vistas como hostis. Esse arranjo único provou ser essencial para a estratégia de Israel em combater o Hezbollah e outros grupos apoiados pelo Irã que vêm se multiplicando na Síria, o que, por sua vez, aumentou as percepções de ameaça dos israelenses.

Israel é capaz de atuar na Síria graças à Rússia, que exerce controle quase total do espaço aéreo do país devastado pela guerra. Israel vê, assim, um grande incentivo em manter seu relacionamento com Moscou, daí a resposta silenciosa à situação na Ucrânia. Qualquer contratempo no relacionamento pode resultar no impedimento de Israel nas operações em território sírio, o que aumentaria a lista de preocupações de segurança israelitas.

Em segundo lugar, Israel passou a ver a Rússia como um ator importante no Oriente Médio para muito além do escopo da Síria. A Rússia exerce forte influência sobre as negociações nucleares iranianas, elevou seu relacionamento com as monarquias do Golfo e vem se posicionando constantemente na região no lugar da liderança estadunidense. Israel está, portanto, altamente motivado a manter seus laços com Moscou. A Rússia poderia indiretamente fortalecer o Irã, o Hezbollah e outros atores hostis se os israelenses se juntassem ao coro ocidental na condenação da Rússia. Portanto, a decisão de Israel de abster-se da condenação aberta, ao mesmo tempo em que busca o diálogo com ambas as capitais, faz parte de uma estratégia mais ampla que considera a cooperação com a Rússia essencial para a segurança israelense.

No que tange o aspecto da política doméstica em Israel, é importante ressaltar que o atual governo se formou recentemente, depois de uma crise política de dois anos que levou os israelenses a quatro eleições, mesmo durante as fases mais críticas da pandemia da Covid-19 no país. O Primeiro-ministro Bennett não possui o mesmo prestígio internacional que seu antecessor, Benjamin Netanyahu. Ele ainda é desconhecido para a maioria dos líderes globais, tem pouca experiência em fóruns multilaterais e com política internacional em geral. Netanyahu, por outro lado, tem não somente maior notoriedade internacional, mas também uma compreensão completa do sistema político estadunidense, uma vez que foi embaixador de Israel nos Estados Unidos antes de entrar para a política israelense, discursou no Congresso e é um veterano da Assembleia Geral da ONU. Esse forte contraste entre os dois desencadeou um debate em Israel, levando alguns especialistas a afirmar que Netanyahu teria sido um negociador muito mais eficaz ao lidar com Putin.

Dessa maneira, o conflito, para além das questões ligadas aos interesses nacionais de Jerusalém, transformou-se também em um impasse político de alto risco em Israel. Considerando o sistema político israelense, um parlamentarismo de coalizão, que atualmente conta com uma coalizão heterogênea (partidos de esquerda, direita e centro formam o atual governo), qualquer ação mais abrupta pode levar a uma crise política e a dissolução do parlamento (neste momento o governo de Bennett já passa por isso, por questões consideradas triviais em comparação a uma possível crise com a Rússia). Dadas as circunstâncias, Bennett tem a possibilidade de suplantar Netanyahu se conseguir balancear a crise de maneira positiva para Israel. Embora Israel seja um mediador improvável entre a Rússia e a Ucrânia, e Bennett seja um candidato ainda mais improvável para a negociação, a oportunidade parece ter chegado a ele. O encontro de Bennett com Putin e seus próximos encontros com os europeus poderiam muito bem se transformar em destaque da sua carreira política e levá-lo a um terreno muito mais seguro na política israelense.

A tomada de decisões pelo governo israelense em relação à guerra na Ucrânia é, em última análise, determinada por cálculos de segurança. Com a Rússia tendo se tornado tão central para a segurança israelense considerando o cenário de sua vizinhança imediata, seria irreal esperar que o país se envolvesse em esforços para antagonizar com Moscou. Em vez disso, ainda no início do conflito Israel optou por um curso de engajamento que busca transformar uma situação potencialmente contenciosa com o Kremlin em uma plataforma para diálogo, mediação e uma abertura para tentar emplacar esforços diplomáticos mais elevados. A manutenção da posição israelense atesta a prevalência do pragmatismo como norteador da política do país e demonstra que o lugar da Rússia na política de Israel se mantém a despeito do andamento da guerra.

* Karina Stange Calandrin é doutora em Relações Internacionais pelo PPG RI San Tiago Dantas (UNESP/UNICAMP/PUC-SP), professora da Universidade de Sorocaba e pesquisadora do Observatório de Conflitos. Sua tese de doutorado discutiu o processo decisório em política externa israelense. 

Imagem: Prédio do Knesset. Por: James Emery.

Um conto de dois mundos: a guerra entre Rússia e Ucrânia e a percepção da mídia sobre as crianças

Maria Eduarda Guerra*

Desde o início da invasão russa na Ucrânia, no final de fevereiro, são veiculadas diariamente notícias acerca dos impactos da guerra sobre as crianças[1] do país. O Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) afirma que, em um mês de conflito, cerca de 4,3 milhões de crianças – ou seja, mais da metade da população infantil da Ucrânia, estimada em 7,5 milhões de crianças – foram forçadas a abandonar suas casas, sendo que, destas, 1,8 milhão atualmente são refugiadas em países vizinhos, como Polônia e Romênia, e 2,5 milhões se deslocaram internamente, caracterizando um dos maiores e mais rápidos deslocamentos infantis desde a Segunda Guerra Mundial (1939-1945)[2]. Todavia, a mídia parece desconhecer – ou negligenciar – a situação de outras crianças: aquelas que continuam em território ucraniano, não como deslocadas internas, mas como soldados à disposição, especialmente, do batalhão de Azov.

Fundado em 2014 como um grupo paramilitar de extrema-direita que visava defender as regiões de Donetsk e Luhansk após os protestos conhecidos como EuroMaidan e a anexação da Crimeia pela Rússia naquele mesmo ano, o batalhão de Azov é conhecido pelos uniformes pretos, pelas tatuagens de cunho neonazista, por ostentarem suásticas em seus capacetes durante as batalhas, e também pelas acusações de violência contra a população LGBTQIA+ e contra a população Roma (cigana). O batalhão foi absorvido como um regimento do exército ucraniano após as vitórias militares nas cidades de Mariupol – hoje, sob extremo ataque russo – e Marinka, tendo saído das linhas de frente em 2015 a fim de se tornar um partido político, o qual acabou por não obter grande expressão nas urnas. Estima-se que o batalhão de Azov recrute crianças desde 2015 através de acampamentos de verão, nos quais em torno de 50 crianças, com idades entre 8 e 16 anos, treinam exaustivamente em florestas nos arredores de Kyiv para se tornarem “patriotas de verdade”, dispostos a se sacrificarem em prol de seu país.

É neste contexto que crianças são treinadas para montar, manejar e utilizar armas, sob o pretexto de estarem não apenas defendendo suas famílias e seu país, mas também  se tornando mais fortes e disciplinadas. Até agosto de 2017, pelo menos 850 crianças haviam passado pelo treinamento com o batalhão. Em fevereiro deste ano, crianças a partir dos 4 anos de idade participavam de intensivos treinamentos militares que antecipavam uma – até então – possível invasão russa à Ucrânia. Dentre as razões para tal, tanto as crianças quanto as mães – em sua grande maioria – demonstravam não somente um desejo de defender seu país do invasor, mas também vingar pais, avôs, tios e irmãos que morreram durante os conflitos de 2014.

Os separatistas pró-Rússia nas regiões de Luhansk e Donetsk também contam com as crianças. Apesar de, na época, o Unicef não ter  encontrado provas de que as crianças estavam lutando no leste da Ucrânia, relatos em 2015 apontavam que crianças auxiliavam os separatistas na retaguarda, chegando, inclusive, a treinar os voluntários mais novos.  Contudo, mesmo com toda esta mobilização militar de menores de 18 anos[3] – tanto pelo lado pró-Rússia quanto pelo lado pró-Ucrânia- , falta reflexão, análise e cobertura de grande parte da mídia sobre essa situação.

Em razão do receio dos países da União Europeia (UE) e da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) de entrar em guerra direta contra a Rússia, existe uma percepção entre parte dos ucranianos de que eles só podem contar consigo mesmos. Nessa conjuntura,  declarações de crianças e de parentes que integram o batalhão de Azov mostram que existe uma preocupação em saber se proteger por conta própria, sem depender de ajuda externa. Muitos integrantes do batalhão acreditam que sua atuação junto ao grupo parece algo momentâneo, dedicado à defesa da Ucrânia frente à Rússia somente enquanto o conflito durar, e que, no futuro, outras possibilidades surgirão em seus caminhos – embora alguns pais não descartem a possibilidade de seus filhos prosseguirem na carreira militar.

O que as famílias ignoram ou minimizam  são os impactos que este início precoce na vida militar pode trazer para as crianças. Além de prejudicar seu acesso a serviços básicos, como educação e saúde, muitas acabam adquirindo deficiências físicas permanentes após serem feridas em combate. O fato de serem expostas cumulativamente a sequestros, separação das famílias, assassinatos, torturas, mutilações e estupros traz também impactos psicológicos severos, como depressão e transtorno de estresse pós-traumático (TEPT), o que cria uma “rede de medo” composta pelas memórias interconectadas relacionadas aos traumas, na qual mesmo os menores estímulos podem desencadear flashbacks, fazendo do trauma um problema crônico de saúde.

No campo  militar, a presença das crianças – mesmo quando é considerada uma presença “voluntária”, como no caso das crianças ucranianas – é, na maioria das vezes, vista como negativa por parte da mídia e dos organismos internacionais, principalmente aqueles dedicados à proteção dos direitos humanos.  Sob a perspectiva desses atores, o contato entre o mundo infantil e o mundo bélico não somente  representa uma transgressão à proteção das crianças, mas também indica que as crianças estariam sendo intensamente manipuladas a participarem da guerra ou não teriam nenhuma alternativa melhor a não ser tomar parte nas hostilidades.

Entretanto, existe uma discrepância entre a percepção midiática das crianças associadas a grupos ou forças armadas no Norte Global e no Sul Global. A percepção que predomina é a de que, no Norte, a militarização das crianças pode ser um dos caminhos para um futuro promissor, baseado na disciplina e no patriotismo; enquanto que, no Sul, o recrutamento de crianças representa mais o fracasso das comunidades e Estados em promover oportunidades de uma infância saudável, colocando as crianças numa posição de vítimas. Evidências  disso são as campanhas promovidas por ONGs internacionais de proteção à infância e pelos Estados. Em 2009, a ONG Save The Children lançou a exposição “Make a Thing of the Past” (“Tornar algo passado”, em tradução literal), na qual, dentre outras fotografias, uma apresenta um menino segurando uma arma dentro de uma redoma de vidro, como se a criança em questão fosse um objeto em um museu, com a legenda Child Soldier – Democratic Republic of Congo, 2009” (“Criança soldado – República Democrática do Congo, 2009), e, novamente, repetindo o lema da campanha: “Devemos tornar isso algo do passado”.  Outra campanha,  desta vez, promovida pelo Escritório do Representante Especial do Secretário-Geral das Nações Unidas para Crianças e Conflitos Armados, “Children, Not Soldiers” (“Crianças, Não Soldados”), abrangeu, no momento de seu lançamento em 2014, países como Afeganistão, Chade, República Democrática do Congo, Mianmar, Somália, Sudão do Sul e Iêmen. Em outras palavras: até mesmo os organismos internacionais reforçam a percepção de que o recrutamento infantil é um problema do Sul Global.

Assim, a militarização das crianças no Norte parece representar a passagem da fase infantil  para a fase adulta, adquirindo um aspecto de normalidade. Na Austrália, por exemplo, jovens que estão saindo do ensino médio são incentivados a passar um ano em qualquer uma das Forças de Defesa (Marinha, Exército ou Aeronáutica) do país, sendo remunerados para tal. Os britânicos menores de 18 anos que lutaram e morreram em combate durante a Primeira Guerra Mundial (1914-1918) foram e continuam sendo lembrados como “jovens corajosos” que atenderam ao seu “chamado histórico”. No Sul, entretanto, esta militarização parece representar a perda da inocência infantil, algo que vitimiza ainda mais estas crianças, sendo, portanto, um mal a ser combatido. No caso ucraniano, embora o país faça parte do continente europeu, sua localização ao Leste –  região menos privilegiada e mais negligenciada, possivelmente pelo passado que remete à União Soviética e ao Pacto de Varsóvia – também contribui para que as crianças ucranianas envolvidas com grupos armados passem quase despercebidas pelos meios de comunicação internacionais.

O envolvimento de crianças em atividades e treinamentos militares, embora seja uma circunstância que entre em conflito com o padrão ideal de proteção da infância, é uma realidade recorrente no cenário internacional. Justamente por isso, é necessário tornar público, difundir e analisar o que ocorre com as crianças em uma situação extrema e indefinida como o conflito na Ucrânia. Deste modo, a mídia deveria, por mais difícil que possa ser, prestar mais atenção a esta questão. Assim, poderemos ter mais elementos para entender como as crianças agem ou são levadas a agir em contextos de violência que fogem de seu controle.

[1] A definição de “criança” utilizada neste texto é a mesma presente na Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Crianças, de 1989, e em diversos outros documentos internacionais – como, por exemplo, os Princípios de Paris, ou Princípios e Diretrizes sobre Crianças Associadas às Forças Armadas ou Grupos Armados, de 2007 –  e que engloba “todo ser humano com menos de 18 anos de idade, salvo quando, em conformidade com a lei aplicável à criança, a maioridade seja alcançada antes”.

[2] Dados de 24 de março de 2022.

[3] A Convenção sobre os Direitos da Criança e seu Protocolo Facultativo sobre o Envolvimento de Crianças em Conflitos Armados de 2002, assim como a Convenção nº 182 da Organização Internacional do Trabalho sobre Proibição das Piores Formas de Trabalho Infantil, desaconselham o recrutamento de pessoas menores de 18 anos pelos grupos armados e pelas forças armadas.

* Maria Eduarda Guerra é Mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (UNESP-UNICAMP-PUC-SP), pesquisadora do Grupo de Estudos sobre Conflitos Internacionais (GECI-PUC-SP) e do Grupo de Estudos sobre Infância e Relações Internacionais (GeiRI Brasil). 

 

Imagem: Material para hospital na Ucrânia. Por Unicef/Flickr.

Os Estados Unidos, as disputas por hegemonia global e a América Latina

Lívia Peres Milani* 

A invasão russa à Ucrânia insere-se em um contexto já existente e mais amplo de retomada das disputas entre grandes potências, o qual foi acelerado e intensificado pela guerra na Europa. Como pontuado por Héctor Saint-Pierre, há uma disputa por hegemonia, “um movimento nas camadas tectônicas mais profundas da segurança internacional, que é onde se expressam as estruturas estratégicas das grandes potências”. A disputa envolve Estados Unidos, China e Rússia e tem dimensões globais. Assim, ainda que seja mais intensa em áreas consideradas prioritárias por tais potências, como o Indo-Pacífico e a Eurásia, regiões periféricas, como África e América Latina, também são inseridas na mesma lógica de disputa. Este movimento pode ser constatado pela crescente percepção de ameaça russo-chinesa na América Latina por parte de diferentes atores estadunidenses, um movimento anterior à guerra, mas acelerado pela mesma.

Embora os militares estadunidenses já citassem de forma esparsa China e Rússia como desafios à hegemonia dos EUA na América Latina desde o governo Barack Obama, essa percepção se acentuou nos últimos anos. Durante o governo Trump, por exemplo, o Comando Sul – divisão das forças armadas dos Estados Unidos que autoatribui parte da América Latina como sua área de responsabilidade – destacava com preocupação a influência de atores estatais extracontinentais na região, caracterizando-os como atores malignos. Esta narrativa permaneceu na administração Biden, com a nomeação de Laura Richardson para a liderança da divisão militar. Já no contexto da guerra na Ucrânia, em documento entregue ao Congresso dos Estados Unidos para audiência pública em oito de março, Richardson afirmou que “nossa ameaça condicionante número um é a RPC [República Popular da China], nossas ameaças secundárias são a Rússia, TCO [Organizações Criminosas Transnacionais] e Irã”[1]. Essa retórica mais explícita e assertiva, que coloca a disputa entre grandes potências no centro da estratégia para a América Latina mostra uma intensificação do processo.

Importante pontuar que essa percepção de ameaça ocorre apesar de China e Rússia apresentarem mínima capacidade – ou mesmo interesse – em projeção de poder regional. Conforme a base de dados sobre transferência de armamentos mantida pelo Sipri, a transferência de sistemas de armas russos para a região foi relevante nos últimos anos, porém tem sido concentrada na Venezuela. Por outro lado, Brasil, Colômbia e México, por exemplo, seguem comprando armamentos especialmente de fornecedores estadunidenses e europeus. Já a China tem participação incipiente, ainda que crescente, na venda de armas para a região. Contudo, vale ressaltar que o país desponta como fornecedor de intercâmbios para os militares – de acordo com o Comando Sul. Os investimentos chineses em infraestrutura, especialmente na construção de portos e na região do Panamá, têm sido destacados pelos militares estadunidenses como um risco. O saldo que podemos extrair desses dados é que – militarmente – as presenças chinesa e russa na América Latina não se comparam com a influência estadunidense no entorno estratégico daquelas potências.

Não são apenas os militares, no entanto, que têm percebido China e Rússia como ameaças na América Latina. A narrativa é compartilhada por membros da administração e por congressistas estadunidenses. Em evento realizado pelo Inter-American Dialogue, ao ser perguntado sobre os efeitos da guerra e sobre a “interferência” russa na região, Brian Nichols, Secretário Assistente de Estado para o Hemisfério Ocidental, respondeu que a Rússia tem ameaçado aumentar a parceria com os países da região, com a possibilidade de desestabilizá-la ou ameaçar os EUA com armas estratégicas. Nichols também apontou que os desafios regionais refletem os desafios globais.

Em 2 de fevereiro de 2022, os Senadores Marco Rúbio (Republicano – Flórida) e Bob Menendez (Democrata – New Jersey) apresentaram um projeto de lei ao Congresso dos Estados Unidos que, se aprovado, demandará do governo federal a confecção de uma estratégia de segurança própria para a região. O projeto cita a influência “maligna e prejudicial” de China e Rússia como risco aos interesses nacionais dos Estados Unidos e propõe que os EUA devem aumentar as “parcerias” e promover “cooperação em segurança” com os países da região. O projeto também afirma que os EUA devem trabalhar com “agências de segurança e law enforcement [aplicação da lei]” da América Latina para fazer frente ao narcotráfico, ao crime organizado e apoiar o império da lei [rule of law], a democracia e os direitos humanos. Aponta ainda a necessidade de recursos adicionais para aumentar os investimentos e projetos dos EUA no Hemisfério Ocidental.

Alguns aspectos importam nesses movimentos, com consequências importantes para a América Latina. Em primeiro lugar, podemos citar que a tendência de securitização da presença russa e chinesa na região significa que há maiores constrangimentos sistêmicos para os países latino-americanos. Se, durante os anos 2000, no início da mudança sistêmica, a tendência à multipolaridade teve efeitos conjunturais aparentemente positivos e permitiu a diversificação de parcerias, atualmente, os Estados Unidos buscam minimizar esta possibilidade. Neste sentido, manter relações equilibradas e cordiais com as três potências mostra-se mais difícil para os países da região. 

Ademais, em sua estratégia de retomada da hegemonia regional, há dois atores que a potência hegemônica percebe como essenciais: as forças policiais e as forças armadas. Esta escolha pode conter um aumento da militarização da Política Externa dos EUA para a região, sendo que outros atores – como a diplomacia, ou a USAID (Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional) ficam em segundo plano. Os projetos com os militares e com policiais latino-americanos podem contribuir para o aumento do peso político interno desses atores, os quais, historicamente, tendem à intromissão na política. De forma semelhante, a conjunção de ameaças estatais e não-estatais apresentada no projeto de lei mostra que continua a não existir uma visão de separação entre as funções dos policiais e das forças armadas – o que significaria um contínuo apoio ao emprego dos militares internamente, mesmo que este seja historicamente associado à letalidade e a violações aos direitos humanos.

Por fim, em texto publicado sobre o tema, Adam Iscason alerta sobre o risco de que os Estados Unidos apoiem governos autoritários que se adequem a suas demandas de alinhamento geopolítico. Em alguma medida, isso já acontece. Cabe ressaltar o apoio concedido ao governo interino de Jeanine Añes, na Bolívia (2019-2020) – apesar da contestada forma como essa chegou ao poder – ou mesmo o convite feito ao governo brasileiro para participar da “Cúpula das Democracias” – apesar das falas nostálgicas e de apreço ao regime burocrático-autoritário emitidas pelo presidente brasileiro.

Em resumo, a guerra na Ucrânia é um desdobramento das crescentes rivalidades entre grandes potências, sendo que a abrangência deste elemento estrutural é global, atingindo todas as regiões, inclusive a América Latina. Na região, do ponto de vista da defesa, a posição de poder dos Estados Unidos ainda é muito superior, sendo que a projeção de seus competidores é mais limitada. Ainda assim, a potência hegemônica tem visto os avanços de seus competidores em outras áreas ou em situações específicas como problemas de segurança. Como consequências para a América Latina, destaca-se a maior dificuldade de colocar em prática uma posição equilibrada e de relacionamento não-excludente entre as potências, o reforço das tendências de militarização a partir de incentivos estadunidenses e um contexto internacional menos propício à manutenção da democracia.

[1] Luciana Wietchikoski e eu analisamos este documento e as formas como o Brasil poderia reagir a esse contexto de mudanças sistêmicas em texto publicado na coluna Diplomacia e Democracia do Uol.

* Lívia Peres Milani é pesquisadora de pós-doutorado em Relações Internacionais pelo Programa “San Tiago Dantas” (Unesp/Unicamp/PUC-SP), bolsista Capes-PrInt. Pesquisadora do Gedes e do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os Estados Unidos (INCT-Ineu). Twitter @Livia_LPM. E-mail: livia.milani@unesp.br.

Imagem por: US Southern Command.

A Invasão Russa na Ucrânia: Razões, Tempo e Espaço – Parte 2

            Getúlio Alves de Almeida Neto*

 

Na primeira parte do texto, busquei debater duas possibilidades de análise para a decisão russa de invadir a Ucrânia. Por um lado, existe a narrativa de que Putin possui um projeto expansionista e imperialista e buscaria anexar o território ucraniano, parcial ou totalmente. Por outro, há a perspectiva de que a decisão russa de invadir o país vizinho tenha se dado a partir da escolha em fazer prevalecer seus interesses político-securitários a partir do uso do aparato militar. Nessa segunda parte, abordarei a reação pública, política e midiática à guerra.

A reação à guerra: o espanto e a percepção do tempo

Tentativas de derrubada de governo têm sido prática frequente dos últimos 30 anos, capitaneadas sobretudo por operações estadunidenses e da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN). A exemplo, destacam-se sobretudo as guerras do Iraque, Líbia e Síria. No entanto, um grande diferencial destas invasões em relação à promovida pela Rússia na Ucrânia perpassa, sobretudo, fatores geográficos e imagéticos. De fato, EUA e OTAN não poderiam ter pretensões de anexar formalmente territórios que não são contíguos aos seus, o que dota suas operações de derrubadas de governo de uma roupagem mais sutil e que é justificada a partir da narrativa da democracia-liberal que liberta os povos da opressão de governos ditatoriais.

Dessa forma, as invasões aos países do Oriente Médio – para além da questão do preconceito que acaba por justificá-las aos olhos de parcela da opinião pública e da naturalização de conflitos nessas regiões nas grandes mídias – parecem menos agressivas pelo simples fato de não remeterem ao caráter mais “clássico” das grandes guerras do século XX e carregarem a roupagem das chamadas “novas guerras” características a partir dos anos 1990. Já no contexto ucraniano, a imagem de tanques russos invadindo por terra a fronteira do país vizinho, evoca a percepção de uma guerra de anexação em solo europeu e mobiliza a reação que expressa o espanto pela falsa sensação de que o mundo não é palco de inúmeras outras guerras. Por esse motivo, a invasão russa à Ucrânia traz um caráter de antiguidade à guerra que parece desconexa com as concepções contemporâneas dos conflitos armados.

À luz desse cenário, parece mais provável que o espanto gerado pela invasão russa decorra do contexto geográfico e histórico no qual a guerra da Ucrânia se insere do que na decisão per se de Vladimir Putin de invadir o território ucraniano. Isso se dá, sobretudo, a partir de elementos que influenciam na percepção do desenvolvimento da guerra e na expectativa que se gera entre o público em relação ao conflito. Em primeiro lugar, pode-se alegar que a guerra      na Ucrânia é a primeira na história acompanhada minuto a minuto por todos. Vale ressaltar que a guerra entre Azerbaijão e Armênia pela região de Nagorno-Karabakh, em 2020, também ganhou espaço nas mídias sociais, com impactos na guerra de informação sobre o conflito. No entanto, este se deu em menor escala e foi menos abordado pela mídia. Ainda que tenhamos a Guerra do Golfo, entre 1990 e 1991, como primeiro exemplo de um conflito televisionado e outros exemplos de grande interesse midiático na última década, como a Guerra Civil da Síria e a expansão territorial pelo autoproclamado Estado Islâmico, a invasão russa à Ucrânia se trata do primeiro embate no qual há análises feitas de forma quase instantânea, que se avolumam na televisão e nas mídias sociais.

Há alguns aspectos intrínsecos a este conflito que podem ser levantados para explicação do grande interesse público na guerra da Ucrânia. Em primeiro lugar, a Rússia é, junto com os EUA, a principal potência nuclear do mundo e possui um dos maiores exércitos a nível mundial. Decorrente disso, as possibilidades de transbordamento do conflito para a Europa e o risco de um confronto entre Rússia e OTAN se tornam o principal elemento de preocupação e interesse das análises. Por outro lado, há também os impactos econômicos na cadeia global de suprimentos alimentícios e energéticos que aumentam a expectativa sobre os desdobramentos da guerra. Não obstante, destaco o papel exercido pelas mídias sociais e das tecnologias de comunicação que, em 2022, estão muito mais consolidadas no cotidiano das pessoas do que na década passada. Nesse sentido, possibilita      ao mundo se relacionar com os acontecimentos em solo ucraniano de forma quase instantânea. Disto, se pode afirmar que a nossa percepção sobre o tempo da guerra e suas evoluções também foi alterada. Devido à enorme quantidade de informações que encontramos todos os dias, temos a impressão de se tratar de um conflito que já tem longa duração, quando na verdade estamos, no momento da escrita, há um mês observando-o.

Além disso, a forma como temos visualizado o desenvolvimento da guerra faz com que as análises sobre os avanços táticos e estratégicos russos possam ser distorcidas. No dia em que forças russas invadiram o país vizinho, destacava-se a narrativa de que tropas russas conseguiriam uma rápida tomada da capital Kiev e, em sequência, haveria uma rendição instantânea do governo e do povo ucraniano. Nessa linha, esperava-se, também, que as forças russas teriam um avanço muito maior em menos tempo em solo ucraniano. Por esse motivo, quando passados apenas alguns dias e observado a aparente lentidão do avanço russo, ganharam espaço análises segundo as quais a estratégia de Vladimir Putin havia falhado, uma vez que o presidente russo teria subestimado as capacidades de resistência do exército ucraniano.

Embora a aparente lentidão do avanço russo em território ucraniano, marcado por baixas humanas e de armamentos que, alegadamente, seriam maiores do que se esperava, é fato que as tropas russas continuam em progresso e garantindo avanços estratégicos dentro da Ucrânia, sem demonstrações de que pretendem recuar. Segundo o mapa de monitoramento do The New York Times, Moscou já tem o domínio de grande parte do Sul Ucraniano – como visto pela conquista da cidade de Kherson e Melitopol – assegurando grande parte do acesso ao Mar Negro; intensos ataques às cidades de Mariupol, e já cerca Kiev, ainda que sem maiores avanços ao centro da capital ucraniana. No cenário em que as negociações não avançam, em razão da relutância russa em flexibilizar suas reivindicações, em conjunto com a resistência ucraniana, a guerra tende a se estender. Nesse cenário, ambas as forças – de ataque e defesa – buscarão vencer o inimigo pela exaustão. No campo militar, a Rússia parece ter a vantagem nessa perspectiva. Do outro lado, a Ucrânia busca, com apoio sobretudo europeu e estadunidense, sufocar a viabilidade política e econômica da manutenção da guerra pela Rússia, ao mesmo tempo em que prolonga o conflito a partir de uma estratégia defensiva.

Contudo, não há ainda como afirmar a real estratégia pensada por Putin e os generais russos a respeito da invasão à Ucrânia. Tendo em mente o contexto que levou à guerra e os meses que os soldados russos estiveram estacionados próximos à fronteira com a Ucrânia, a hipótese de que o ataque tenha ocorrido às pressas, de forma mal planejada, parece pouco provável. Além disso, desde 2014 o exército ucraniano vem se fortalecendo com equipamentos e treinamentos providos pelos EUA e outros membros da OTAN. Nesse sentido, é de se imaginar que o Ministério da Defesa da Rússia e Vladimir Putin, munido de serviços de inteligência russos, tivessem ciência de que a capacidade de resistência ucraniana não deveria ser menosprezada.

Não deve ser descartada, no entanto, a hipótese de que os sucessos militares anteriores na Geórgia, Crimeia e na Síria, possam ter elevado a confiança de Putin em seu aparato militar de forma a contribuir para a tomada de decisão na expectativa de um menor poder de resistência militar, política e econômica da Ucrânia e do Ocidente. Assim, o próprio fato de que haja uma percepção de frustração dos planos russos e da bravura da resistência ucraniana, pode alterar os rumos da guerra e fortalecer ainda mais o moral do defensor e descreditar o aparato militar russo, instrumento cada vez mais utilizado por Moscou para reivindicar o status de grande potência da Rússia e fazer prevalecer seus interesses. Talvez revisitar literaturas que abordam a psicologia política como lente de análise, buscando incorporar não somente a dimensão externa aos Estados, mas também os objetivos, crenças e percepções dos indivíduos tomadores de decisão, possa contribuir para uma compreensão mais holística dos incentivos específicos que impulsionaram Vladimir Putin a seguir com a invasão. Como exemplo, vale citar as obras de Robert Jervis (2017): How Statesmen Think: Psychology of International Relations e Perception and Misperception in International Politics.

Em suma, a guerra na Ucrânia traz elementos que contribuem para o quase fascínio humano em compreender a guerra.  As análises cotidianamente difundidas pela mídia podem mudar a maneira como o público percebe e cria expectativas acerca dos desdobramentos. Ao passo que o conflito se desenrola, buscamos compreendê-lo enquanto esperamos que uma resolução rápida possa salvar um maior número de vidas. Para depois do conflito, surgirão perguntas que também trarão consigo um grau de complexidade para as análises que buscarão respondê-las. Para citar pelo menos algumas: qual o relacionamento do governo de Vladimir Putin com a Europa e os EUA no pós-conflito? Quem financiará a reconstrução da Ucrânia? Quais os desdobramentos para a coesão interna de um país que já se via dividido desde 2013? Quais os impactos da Guerra para a configuração de forças no sistema internacional, e para as instituições como o Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU), a OTAN e a União Europeia? Qual será o impacto no âmbito interno da União Europeia e dos partidos locais em termos de imigração e dependência energética em relação à Rússia? No momento atual, nos resta estar atentos aos impactos locais, regionais e globais do conflito.

*Mestre em Relações Internacionais pelo PPGRI “San Tiago Dantas” (Unesp, UNICAMP, PUC-SP). Pesquisa sobre a reforma militar russa e a projeção de poder do país, temas analisados em sua dissertação de mestrado. Membro do Observatório de Conflitos do GEDES. Contato: getulio.neto@unesp.br

REFERÊNCIAS

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ALMEIDA NETO, Getúlio Alves; MAKIO, Danielle Amaral. Guerra Civil no Leste da Ucrânia. Dossiê de Conflitos Contemporâneos, v. 1, n. 1, p. 55-60. Observatório de Conflitos Contemporâneos. Disponível em: https://gedes-unesp.org/wp-content/uploads/2020/10/Ucr%C3%A2nia_Observat%C3%B3rio-de-Confltos_-Dossi%C3%AA-de-Conflitos-Cont..-v.1-n.-1-2020-58-63.pdf. Acesso em: 22 mar. 2022.

CORDELL, Jake. Rewriting History, Putin Pitches Russia as a Defender of an Expanding Motherland. The Moscow Times. Feb. 22, 2022. Disponível em: https://www.themoscowtimes.com/2022/02/22/rewriting-history-putin-pitches-russia-as-defender-of-an-expanding-motherland-a76518. Acesso em: 22 mar. 2022.

JERVIS, Robert. Perceptions and Misperceptions in International Politics. Princeton, New Jersey: Princeton University Press, 2017.

JERVIS, Robert. How Statesmen Think: The Psychology of International Politics. Princeton, New Jersey: Princeton University Press, 2017.

KISSINGER, Henry. To settle the Ukraine crisis, start at the end. The Washington Post. Mar 5, 2014. Disponível em: https://www.washingtonpost.com/opinions/henry-kissinger-to-settle-the-ukraine-crisis-start-at-the-end/2014/03/05/46dad868-a496-11e3-8466-d34c451760b9_story.html. Acesso em: 22 mar. 2022.

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MEARSHEIMER, John. Why the Ukraine Crisis Is the West’s Fault. The Liberal Delusions that Provoked Putin. Foreign Affairs. September/October. v. 93, n. 5. 2014.

PUTIN reconhece independência de regiões separatistas da Ucrânia e prevê envio  de tropas para ‘manutenção da paz’. BBC NEWS. 21 fev. 2022. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/internacional-60471555. Acesso em: 22 mar. 2022.

PRESIDENT OF RUSSIA. Article by Vladimir Putin “On the Historical Unity of Russians and Ukrainians”. July 12, 2021. Disponível em: http://en.kremlin.ru/events/president/news/66181. Acesso em: 22 mar. 2022.

SIMPSON, John. Guerra na Ucrânia: as 6 exigências de Putin para acabar com o conflito. BBC NEWS. 18 Mar 2022. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/internacional-60793048. Acesso em: 24 mar. 2022.

UKRAINE continues to receive military aid. Army Technology. Disponível em: https://www.army-technology.com/features/russian-invasion-ukraine-war-nato/. March 3, 2022. Acesso em: 22 mar. 2022.

Imagem: Armas russas destruídas pelas Forças Armadas da Ucrânia. Por Ministério das Relações Exteriores da Ucrânia/Wikimmedia Commons.

A Invasão Russa na Ucrânia: Razões, Tempo e Espaço – Parte 1

            Getúlio Alves de Almeida Neto*

A grande quantidade de análises feitas diariamente acerca da guerra da Ucrânia desde a invasão russa – não somente no âmbito acadêmico, mas também midiático – desperta o interesse e demonstra o anseio público de compreender a complexidade desses eventos. Ademais, cria-se a expectativa de que analistas em geral, e sobretudo especialistas no tema, possam prever com acurácia os desdobramentos do conflito. Contudo, como tem-se observado ao longo de quase um mês de guerra, tentativas de predizer os acontecimentos e chegar a uma conclusão engessada são prejudiciais à compreensão dos fatos e estão, de certa forma, propensas a ser contraditas no instante seguinte. Nesse sentido, proponho um breve ensaio com reflexões que possam guiar o debate e auxiliar no entendimento de um fenômeno que se desenvolve enquanto o observamos.

É preciso tomar cuidado para que nossas análises não se tornem mais um reflexo do que esperamos que aconteça do que uma tentativa, ainda que naturalmente limitada, de depreender os acontecimentos que temos acompanhado, literalmente, minuto a minuto. Assim, proponho o breve debate de dois pontos: 1) os motivos que levaram à tomada de decisão russa de invadir a Ucrânia; 2) a reação pública, política e midiática à guerra, em razão de suas especificidades estratégico-militares que parecem em descompasso com o contexto histórico e geográfico atual, salientando aspectos da comunidade global contemporânea que têm impacto na percepção do tempo da guerra e seu desenvolvimento. O primeiro ponto é discutido neste texto e o segundo em sua continuação.

Os motivos da guerra: expansão imperialista ou agressão político-securitária?

Após a crescente tensão gerada por exercícios militares realizados pelas forças armadas russas próximos à fronteira ucraniana desde o final de 2021, Vladimir Putin ordenou, em 24 de fevereiro de 2022, que suas tropas invadissem o território ucraniano sob a alegação de uma “operação militar especial”. O objetivo, segundo Putin, seria “desnazificar” o país e atender ao pedido dos líderes das autoproclamadas repúblicas separatistas de Lugansk e Donetsk. Estas regiões no Leste Ucraniano são palco de uma guerra civil em confronto com o governo de Kiev que teve início há oito anos, na esteira da derrubada do então presidente Viktor Yanukovytch – tido como mais alinhado à Rússia em detrimento da aproximação com a União Europeia – nos protestos da Praça Maidan, em 2013. Três dias antes da invasão, o governo russo reconheceu formalmente a independência das repúblicas, anunciando a possibilidade do envio de tropas para a “manutenção da paz”.  Atualmente, o Kremlin busca impor como condições para o fim das hostilidades uma série de reivindicações: 1) neutralidade ucraniana, com garantias de que nunca se tornará país-membro da OTAN; 2) desmilitarização do país; 3) reconhecimento da independência das repúblicas de Donetsk e Lugansk; 4) reconhecimento do status da Crimeia como parte da Federação Russa; 5) e, por fim, proteção à língua russa na Ucrânia.

Antes de ordenar que suas forças armadas invadissem a Ucrânia, Vladimir Putin fez um discurso no qual colocou em xeque a própria existência do Estado ucraniano ao afirmar que “a Ucrânia moderna foi uma criação da Rússia”, após a formalização da URSS como produto da política leninista de uma federação de estados iguais. O discurso televisionado assemelhou-se a um artigo publicado por Putin, ainda em julho de 2021, no qual discorre extensamente sobre a história compartilhada entre russos e ucranianos. Este pronunciamento, somado ao histórico recente de anexação da Crimeia e o reconhecimento das regiões separatistas, torna possível questionar a narrativa utilizada por Putin antes da agressão à Ucrânia, segundo a qual Moscou buscaria apenas garantias de segurança. Consequentemente, vem crescendo como uma das linhas argumentativas para explicação do ataque russo à Ucrânia – sobretudo nas análises midiáticas –, que Putin buscaria incorporar todo o território ucraniano e restaurar territorial e formalmente as antigas fronteiras da União Soviética. Ainda nessa perspectiva, a Ucrânia poderia ser o primeiro passo para futuras tentativas de expansão russa.

O contexto ucraniano, em específico, torna ainda mais propenso o surgimento de tais análises. Russos e ucranianos possuem estreitos laços identitários que remontam ao passado político, econômico, cultural, linguístico e religioso em comum. Na historiografia de ambos os países é atribuída à Rus Kievana, um Estado feudal do século IX, como a primeira unidade política que deu origem aos atuais Estados modernos. Nesse seguimento, a interpretação de que Putin questiona a própria existência do Estado ucraniano faz sentido dentro desse contexto e perspectiva analítica.

Em compasso com as prerrogativas encontrada em documentos oficiais como a Doutrina Militar e o Conceito de Política Externa da Rússia, nas quais está prevista a utilização das forças armadas para fora de seu território em defesa de cidadãos russos, abre-se uma possibilidade de utilização deste argumento por parte do Kremlin para justificar suas ações, como observado nas incursões russas nas regiões separatistas da Ossétia e Abecásia do Sul durante a Guerra da Geórgia em 2008, além do caso da Crimeia, já citado acima. Quando expostos todos estes elementos, é natural que se traga à tona o argumento da expansão imperialista de Vladimir Putin. Não se trata aqui de descartar por completo tal possibilidade. No entanto, até que se tenha mais detalhes e conhecimento acerca dos fatos, tais afirmações podem ser caracterizadas no máximo como especulações.

Por outro lado, pode-se analisar o conflito a partir de um olhar que leve em consideração a dimensão político-securitária, em perspectiva histórica, podendo auxiliar na compreensão das circunstâncias que explicam a guerra, ainda que sem justificá-la. Nessa perspectiva, é importante ressaltar que a invasão russa faz parte de um contexto maior de crescente tensão entre Moscou e o chamado “bloco ocidental”, que remonta ao processo de dissolução da União Soviética e o consequente surgimento de 15 novas repúblicas independentes em dezembro de 1991, entre elas a Federação Russa e a Ucrânia.

No contexto de fragilidade econômica, política, social e militar da Rússia nos anos 1990, em conjunto com a supremacia estadunidense e surgimento de uma dita ordem internacional liberal-unipolar, Moscou observou a contínua expansão da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) em direção ao Leste Europeu. Ao longo desse processo, essa aliança militar ocidental incorporou 14 novos Estados-membros, entre eles ex-repúblicas soviéticas, como os Países Bálticos, e nações que antigamente estavam sob a esfera de influência de Moscou através do Pacto de Varsóvia, tal como a Polônia. O argumento utilizado por Putin de que o avanço de tropas ocidentais a regiões próximas à Rússia seria uma ameaça à segurança de seu país não pode ser desconsiderado, ainda que não justifique a invasão de tropas a um território de outro país sem que tenha havido qualquer ataque anterior.

De fato, a expansão da OTAN é debatida por acadêmicos, políticos e militares dos próprios países-membros desde os anos 1990. Teóricos realistas das Relações Internacionais, como Mearsheimer (2014), e o conhecido Secretário de Estado dos EUA na década de 1970, Henry Kissinger, já alertavam para a possibilidade de reação russa, ainda que advertissem para as consequências à Rússia em fazer uso de seu poderio militar para impor o status de neutralidade – ou subjugar – à Ucrânia. Ademais, o governo russo sempre deixou claro, em discursos e em documentos oficiais, ser contrário ao alargamento da aliança militar ocidental, sendo particularmente contrário a qualquer possibilidade de adesão da Ucrânia e da Geórgia. Sendo assim, desde a primeira Doutrina Militar russa pós-soviética, datada de 1993, encontra-se a crítica à expansão de blocos militares. Em 2010, a terceira edição do documento cita nominalmente a OTAN como principal ameaça à segurança do país. Logo, pode-se afirmar que a decisão russa de invadir a Ucrânia e assegurar que o país não se filie à aliança ocidental não é, no fundo, uma surpresa. Seja de forma retórica ou nos casos da Geórgia e Ucrânia, o governo russo já havia demonstrado disposição em fazer uso de seu aparato militar para reivindicar seus interesses político-securitários, mesmo que em detrimento de questões econômico-financeiras e repercussões políticas causadas pelas sanções impostas.

Em suma, a Guerra da Ucrânia suscitou o debate sobre um possível ímpeto expansionista-imperialista do governo de Vladimir Putin, que teria como objetivo restaurar – parcial ou totalmente – as fronteiras da União Soviética a partir da anexação contínua dos territórios adjacentes à Rússia. Apesar de o discurso do presidente russo ter se tornado cada mais agressivo e possua indícios de um revisionismo histórico, busquei salientar que considero mais frutífera a análise feita a partir de um contexto de percepção do governo russo de ameaça advinda de suas fronteiras ocidentais desde os anos 1990 em razão do processo de expansão da OTAN para o Leste europeu, e dos desdobramentos domésticos na política ucraniana desde os protestos na Praça Maidan, em 2013. Por essa perspectiva, o fortalecimento do aparato bélico russo, executado a partir de reformas militares em curso desde 2008, dotou o país de um instrumento de política externa para confrontação ao Ocidente e a partir da reivindicação de seus interesses político-securitários. Dessa forma, pode-se entender a agressão à Ucrânia como produto de um cálculo político do Kremlin que, dotado de confiança em seu poder militar, busca conseguir as vitórias políticas ensejadas, como a imposição do status de neutralidade da Ucrânia, o reconhecimento da independência das repúblicas separatistas de Lugansk e Donetsk, e da Crimeia como parte integral da Federação Russa, mesmo que isto venha a custos de pesadas sanções econômicas e isolacionismo político.

REFERÊNCIAS

MEARSHEIMER, John. Why the Ukraine Crisis Is the West’s Fault. The Liberal Delusions that Provoked Putin. Foreign Affairs. September/October. v. 93, n. 5. 2014

 

* Mestre em Relações Internacionais pelo PPGRI “San Tiago Dantas” (Unesp, UNICAMP, PUC-SP). Pesquisa sobre a reforma militar russa e a projeção de poder do país, temas analisados em sua dissertação de mestrado. Membro do Observatório de Conflitos do GEDES. Contato: getulio.neto@unesp.br.

Imagem: Russian military weapons destroyed and seized by the Armed Forces of Ukraine. Por Ministério das Relações Exteriores da Ucrânia/Wikimmedia Commons