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Exercendo uma curiosidade feminista sobre as desigualdades de gênero no mercado de trabalho: lutas históricas e desafios atuais

Maria Eduarda Kobayashi Rossi*

Segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT), a desigualdade salarial entre homens e mulheres é um problema enfrentado em todo o mundo[1]. Nos Estados Unidos, a média da diferença salarial é de 18%, já nos países da União Europeia, esse número é de 12,7%. Na América Latina, a desigualdade salarial também persiste, e no Brasil, em especial, os dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística  (IBGE, 2022) mostram que as brasileiras recebem, em média, 78% do salário dos homens, representando uma diferença de 22%. Neste primeiro de maio, em que se comemora o Dia do Trabalhador, trazemos uma contextualização acerca da entrada das mulheres no mercado de trabalho e alguns dos desafios atuais. Ademais, ao praticar uma curiosidade feminista[2], influenciada por Cynthia Enloe (2004, 2014), buscamos olhar criticamente para a condição das mulheres no ambiente laboral, e as dinâmicas de poder que permitem a perpetuação da desigualdade até o presente.

O Dia do Trabalhador é uma data comemorada internacionalmente, e a história de sua criação está relacionada ao início uma grande greve nacional, iniciada no dia 1 de maio de 1886 em Chicago, nos Estados Unidos da América (EUA), visando promover a redução jornada de trabalho  para oito horas diárias. Os protestos, organizados por sindicatos e estimuladas por anarquistas, foram reprimidos pela polícia. Além da disseminação da violência direta sobre a população, destaca-se, também, a condenação de cinco sindicalistas anarquistas à forca. Um deles se suicidou na prisão, e os demais foram enforcados em 11 de novembro de 1887, cuja data ficou conhecida como “Revolta de Haymarket”.

Exercendo uma curiosidade feminista, cabe-nos questionar: onde estão as mulheres nessa história? Embora seus nomes não ganhem destaque na origem da data, é importante lembrar que as mulheres desempenharam uma função ativa e essencial nas lutas sociais (em especial, no movimento antiescravista) dos EUA, cuja participação foi fundamental para organizar campanhas pela garantia de direitos às mulheres anos mais tarde (DAVIS, 2004). Como destacado por Angela Davis: “[n]o final da década de 1820, muito antes da Convenção de Seneca Falls, celebrada em 1848, as mulheres trabalhadoras começaram a organizar manifestações e greves protestando ativamente contra a dupla opressão que sofriam como mulheres e como trabalhadoras industriais” (DAVIS, 2004, p. 63, tradução nossa). No Brasil, as mulheres exerceram um papel importante no movimento negro (GONZÁLEZ, 2021), bem como na luta contra a ditadura cívico-militar. Segundo Célia Pinta (2003), os grupos feministas cresceram nas décadas de 1970 e 1980, e neles participavam principalmente mulheres de classe média e operárias. A criação de tais grupos, principalmente nas capitais, foi impulsionada por mulheres intelectuais de esquerda.

Ao olhar para a evolução do movimento feminista, a socióloga argentina Dora Barrancos (2022) lembra-nos que as hierarquias de gênero, cujas consequências são manifestas, dentre muitas outras formas, na desigualdade de salários entre homens e mulheres, foi construída e reforçada historicamente, baseada na criação de papéis de gênero. Como destacado por Connell (2015, p. 32), a partir da noção da diferença entre os dois sexos biológicos são criadas imagens de gênero e, em consequência, padrões sociais que promovem a subalternização de determinados corpos, influenciando, inclusive, as escolhas profissionais[3]. As mulheres são associadas à passividade e ao amor, sendo-lhes delegadas tarefas domésticas e de cuidado, bem como empregos menos valorizados e o trabalho não remunerado no lar. Em contrapartida, aos homens são associados à imagem de força, agressividade e responsabilidade e, em consequência, são delegadas tarefas relacionadas à arena pública, à tomada de decisão, defesa e aos cargos de liderança.

No período da Revolução Francesa, as mulheres nem sequer eram consideradas cidadãs plenas e, por isso, não possuíam direitos civis e políticos ⏤ fato que incentivou a criação dos movimentos sufragistas. Há duas décadas, a grande maioria das mulheres não podia ingressar no mercado de trabalho exercendo tarefas que não fossem de cuidado e serviços gerais, como a limpeza dos espaços. Com o passar do tempo, houve um crescimento histórico do número de mulheres no mercado de trabalho e, inclusive, ocupando  altos cargos de liderança, entretanto a lacuna salarial persiste, principalmente pelo fato de que as mulheres continuam ser super-representadas em empregos vulneráveis[4].

A noção de “empregos vulneráveis” engloba: trabalhos não remunerados (como os trabalhos domésticos e de cuidado, que discutiremos a seguir), trabalhos com menos horas, trabalhos pouco remunerados e trabalho sem proteção social. Silvia Federici (2019a, 2019b), uma das principais referências do feminismo marxista, denuncia em suas obras como as mulheres estão na base de sustentação de um sistema capitalista desigual, cruel e violento, o qual se aproveitou (e se aproveita) do trabalho doméstico não pago para a sua expansão. Esse tipo de trabalho é entendido, pela autora, como “a violência mais sutil que o capitalismo já perpetuou contra qualquer setor da classe trabalhadora” (FEDERICI, 2019b, p. 12). A violência é dita sutil porque o sistema capitalista se aproveitou das normas e papéis de gênero, presentes no imaginário da sociedade, para reafirmar a ideia de que tais tarefas não representam um trabalho, mas apenas um ato de amor natural à feminilidade.

Um exemplo atual da sobrecarga das mulheres em muitas horas de trabalho ficou evidente durante a pandemia de covid-19, em que coube a elas exercer, para além de seus trabalhos, as tarefas de cuidado, tendo sua jornada de trabalho ampliada exponencialmente. Tal fato levou, no espaço científico, à diminuição da produção acadêmica das mulheres, em especial àquelas que são mães, isso fica evidente na pesquisa Parent in science. Em adição, de acordo com os dados da CEPAL (2021), as mulheres ocupavam as posições de maior risco de exposição e contaminação, como no comércio e na área da saúde. O  documento também mostra que as mulheres exerceram o triplo do trabalho não remunerado em comparação com os homens nos países da América Latina.

Importa destacar, ainda, que a desigualdade salarial está entrelaçada com outros marcadores sociais, tais como a classe e a raça. Conforme o IBGE (2022), a porcentagem de pessoas negras ocupando cargos de gestão é de 29,5%, enquanto a população branca ocupa 69%. Isso se deve à desigualdade de oportunidades alinhada a um problema estrutural: o racismo. Carolina Maria de Jesus é um exemplo de mulher trabalhadora e periférica que sentiu, em seu cotidiano, o peso da desigualdade social que permanece como um problema na sociedade brasileira. No livro “Quarto de despejo: diário de uma favelada”, Carolina Maria de Jesus (1992) conta as dificuldades sentidas em seu cotidiano como mãe, catadora de lixo e moradora da favela do Canindé, na cidade de São Paulo, denunciando problemas sociais como a fome e a inação do Estado em garantir, principalmente, os direitos econômicos, sociais e culturais dessa população. Antes de mudar-se para São Paulo, a autora viveu em Minas Gerais e, assim como sua mãe, foi empregada doméstica. Vale ressaltar que a literatura brasileira está repleta de exemplos, evidentes, em especial, na poesia como forma sensível de tocar a experiência humana, da subjugação das mulheres negras, seja no mercado de trabalho público ou no âmbito doméstico.

Nos estudos de Segurança Internacional com foco nos indivíduos trabalha-se a questão da segurança humana, a qual está baseada na ideia de que os seres humanos devem ser livres do medo (freedom from fear), ou seja, das ameaças que possam ferir a sua integridade, e das necessidades (freedom from want) (DUFFIELD, 2005). As questões de segurança e intervenções internacionais, principalmente após os anos 2000, passaram a carregar um forte nexo com as questões de desenvolvimento, em perspectiva ampliada, na qual se defende a busca pela expansão das liberdades reais que as pessoas desfrutam (SEN, 2001), de modo a proteger as pessoas da violência direta e oferecendo-as oportunidades para poderem desenvolver suas capacidades e viverem a vida que almejam viver (ou seja, conforme os princípios que são caros a cada pessoa). Diante destas questões, cabe-nos destacar, tendo exercido uma curiosidade feminista, que a segurança humana, atualmente, não é uma condição desfrutada por todas as pessoas em todo o mundo, principalmente pelas mulheres racializadas e migrantes nas periferias tanto do Sul quanto do Norte global, que vivem em uma situação estrutural marcada pela insegurança.

Ainda que a Organização das Nações Unidas (ONU) tenha proposto, dentro do escopo da Agenda 2030, a igualdade de gênero enquanto um dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável que devem ser garantidos pelos Estados às comunidades, os dados apresentados ao longo do texto são uma evidência de que a desigualdade persiste. Tendo isso em mente, esperamos, por fim, que este Dia do Trabalhador seja uma data para tomar consciência de que ainda há muito a fazer para que a igualdade de gênero, em especial no mercado de trabalho, saia da teoria e se concretize, na prática, para todas as pessoas do mundo. O alcance deste objetivo, porém, não é tarefa fácil, pois pressupõe a mudança das relações de poder que estão na base de funcionamento da dinâmica internacional capitalista, como evidenciado por Federici.

*Maria Eduarda Kobayashi Rossi é graduanda em Relações Internacionais pela UNESP. Pesquisadora do Iaras- Núcleo de Estudos de Gênero do Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional (Iaras-GEDES). Pesquisadora bolsista FAPESP (processos 2021/04480-3 e 2022/01182-4).

Imagem: A lacuna salarial de gênero no mundo do trabalho. Por: Organização Internacional do Trabalho (OIT).

 

Notas:

[1] Para mais informações sobre a diferença de gênero no mercado de trabalho, sugerimos a consulta aos dados organizados pela OIT, os quais estão disponíveis no link: <https://www.ilo.org/infostories/en-GB/Stories/Employment/barriers-women#global-gap>. Acesso em 25 de abril de 2023.

[2] O exercício da curiosidade feminista, segundo Enloe, busca analisar a realidade social e, questionar as normas naturalizadas, percebendo as dinâmicas de poder que promovem a desigualdade de gênero.

[3] No que se refere a este tema, em Portugal, lugar de onde a autora escreve, pesquisadores do Centro de Estudos Sociais (CES), em conjunto com diversas instituições parceiras, estão desenvolvendo o projeto “Igual-Pro: as profissões não têm gênero”, que busca questionar e desconstruir os estereótipos de gênero relacionados às distintas profissões no mercado de trabalho e áreas de estudo. Os avanços do projeto podem ser acompanhados pelo site (https://projetos.cite.gov.pt/pt/web/igualpro/pagina-inicial), e os próximos relatórios serão divulgados no em breve. Tatiana Moura e Tiago Rolino, que estão a frente dessas atividades, são boas referências para aqueles(as) que se interessam pelos estudos de gênero e masculinidades.

[4] Nosso entendimento acerca da definição de “empregos vulneráveis” segue os princípios da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Mais informações podem ser encontradas em: <https://www.ilo.org/infostories/en-GB/Stories/Employment/barriers-women#unemployed-vulnerable/vulnerable-employment>. Acesso em 25 de abril de 2023.

 

Referências

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DAVIS, Angela. Mulheres, raça e classe. Boitempo Editorial, 2016.

DE JESUS, Carolina Maria. Quarto de despejo: diário de uma favelada. Editora Ática. 10 edição. 1992. Disponível em: <https://dpid.cidadaopg.sp.gov.br/pde/arquivos/1623677495235~Quarto%20de%20Despejo%20-%20Maria%20Carolina%20de%20Jesus.pdf.pdf>. Acesso em 30 de abril de 2023.

CEPAL. Brechas de género en el mercado laboral y los efectos de la crisis sanitaria en la autonomía económica de las mujeres. 2021. Disponível em: <https://www.cepal.org/sites/default/files/presentations/presentacion_aguezmes_180121.pdf>. Acesso em 30 de abril de 2023.

CONNELL, Raewyn. Gênero: uma perspectiva global. nVersos Editora. 2015.

DUFFIELD. Human Security: Linking Development and Security in an Age of Terror, 2005. Disponível em: <http://members.chello.at/intpol_gkc4/Duffield%202005b.pdf>. Acesso em 30 de abril de 2023.

ENLOE, Cynthia. Bananas, beaches and bases: Making feminist sense of international politics. University of California Press, 2014.

ENLOE, Cynthia. The curious feminist: Searching for women in a new age of empire. University of California Press, 2004.

FEDERICI, Silvia. Calibã e a bruxa: mulheres, corpos e acumulação primitiva. Editora Elefante: Coletivo Sycorax, 2019b. Disponível em: http://coletivosycorax.org/wp-content/uploads/2019/09/CALIBA_E_A_BRUXA_WEB-1.pdf

FEDERICI, Silvia. O ponto zero da revolução: trabalho doméstico, reprodução e luta feminista. Editora Elefante: Coletivo Sycorax, 2019a. Disponível em: http://coletivosycorax.org/wp-content/uploads/2019/09/Opontozerodarevolucao_WEB.pdf

GONZÁLEZ, Lélia. Por um feminismo afro-latino-americano. Zahar Editora. 2020.

IBGE, Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Desigualdade social por cor ou raça no Brasil. 2022. Disponível em: <https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101972_informativo.pdf>. Acesso em 30 de abril de 2023.

IBGE, Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Estatísticas de Gênero Indicadores sociais das mulheres no Brasil. 2021. Disponível em: <https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101784_informativo.pdf>.  Acesso em 30 de abril de 2023.

OIT, Organização Internacional do Trabalho. InfoStories. The gender gap in employment: What’s holding women back?. 2022. Disponível em: <https://www.ilo.org/infostories/en-GB/Stories/Employment/barriers-women#intro>.

PINTO, Célia. Uma história do feminismo no Brasil. Fundação Perseu Albramo. 2003. pp. 40-66.

SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. Editora Companhia das letras, 2018.

Dia Internacional da Mulher Africana: rompendo silêncios e fortalecendo resistências

Maria Eduarda Kobayashi Rossi*

Lorena dos Santos Roberts**

Kimberly Alves Digolin***

 

No dia 31 de julho é celebrado o Dia Internacional da Mulher Africana. A data foi criada em alusão à Conferência das Mulheres Africanas, que ocorreu em 1962, na cidade de Dar Es Salaam, na Tanzânia. Nessa data também foi criada a Organização das Mulheres Pan Africanas (PAWO[1]), um movimento transnacional de mulheres que objetiva contribuir para a promoção da igualdade de gênero, lutando pelo fim do colonialismo, das diversas discriminações e das injustiças sociais sobre as mulheres. Neste texto, discorreremos sobre o fortalecimento dos feminismos no continente africano e sua relação com a expansão do movimento pan-africanista. Em seguida, abordaremos o papel das mulheres nos processos de paz, bem como os desafios enfrentados por elas nas sociedades contemporâneas. De modo complementar, trataremos do apagamento da África nas Relações Internacionais e, por fim, apresentaremos alguns exemplos dos movimentos em prol dos direitos das mulheres no continente.

A campanha deste ano, em comemoração aos 60 anos da PAWO, convida a comunidade regional e internacional a uma reflexão acerca da participação feminina no desenvolvimento social e econômico, acrescentando temas como a insegurança alimentar e a violência nas sociedades contemporâneas (UNIÃO AFRICANA, 2022a). Almeja-se, também, debater sobre os avanços e retrocessos dos esforços para a equidade de gênero no continente, principalmente por meio da discussão sobre o recente relatório publicado pela organização e intitulado The African Women’s Decade: Grassroots Approach to Gender Equality and Women’s Empowerment (UNIÃO AFRICANA, 2022b), o qual foi elaborado como um esforço de coordenação das atividades e objetivos, para impulsionar a implementação de políticas públicas e programas destinados ao alcance da equidade de gênero e empoderamento das mulheres[2].

É importante ressaltar que a origem da PAWO, bem como o fortalecimento dos feminismos em África, está alinhada à expansão do movimento pan-africanista no continente (SANTOS, 2021). Este movimento tem como missão promover a união dos povos africanos para conquistar não apenas a independência formal com o processo de descolonização, mas também a libertação das amarras do colonialismo e das consequências destrutivas e predatórias que ele traz às sociedades africanas (BELLUCCI, 2010; HARRIS, ZEIGHDOUR, 2010). Um dos grandes marcos desse movimento é a criação da Organização da Unidade Africana (OUA), em 1963, que precedeu a criação da União Africana na Conferência de Durban, no ano de 2002.

Conforme a cronologia organizada por Blenda Santos (2021b), é possível perceber que, embora a participação e a representação das mulheres nos processos políticos tenham aumentado com o passar do tempo, as suas resistências e ativismos sempre estiveram presentes, exercendo papéis essenciais nos processos de (re)construção da paz. A importância de incluir as mulheres nesses processos políticos está associada ao fato de que as crises em África não estão baseadas apenas em aspectos militares ou elementos transitórios. São resultantes também, e talvez principalmente, de questões estruturais políticas, econômicas e socioculturais. Sob essa perspectiva, a inclusão das mulheres promove mais atenção a aspectos que costumam ser ignorados nos processos de paz, tendo em vista a reprodução das hierarquias de gênero no microcosmo comunitário, a qual promove impactos distintos entre homens e mulheres que presenciam uma mesma situação de crise. A participação das mulheres locais reforça um olhar crítico sobre o bem-estar social, que não apenas amplia o debate sobre as raízes das crises, mas também sobre os meios necessários para garantir respostas mais abrangentes e sustentáveis.

No entanto, as mulheres em África convivem com uma sobreposição de violências, não apenas oriundas das divisões de gênero, mas também baseadas em termos culturais e de nacionalidade. Isso porque, em um sistema internacional marcado por hierarquias, a África ainda é largamente considerada um território a ser tutelado. Em outras palavras, em meio a uma lógica binária que coloca os Estados Unidos e a Europa como centros desenvolvidos e democráticos, a caracterização da África, muitas vezes, é estabelecida como o contraponto atrasado, bárbaro e incapaz.

Dentro desse estereótipo, as intervenções externas são frequentemente legitimadas sob a alcunha de uma ação humanitária em prol da democracia e da liberdade em África; um dever dos países entendidos como mais desenvolvidos em garantir a paz e a segurança internacional. Entretanto, conforme vimos anteriormente, essas ações não costumam levar em consideração as demandas locais, muitas vezes mascarando as verdadeiras raízes dos problemas ou, ainda, acrescentando elementos que dificultam uma solução duradoura e sustentável para as crises.

Ademais, essas ações externas frequentemente reforçam a marginalização das mulheres africanas em relação aos processos políticos de (re)construção da paz. Tal fato pode ser percebido tanto pela estereotipificação das mulheres africanas – as quais são sexualizadas e subalternizadas –, quanto pela marginalização dos feminismos africanos[3]. Segundo Oyěyùmí (2004), a “hegemonia cultural euro-americana” promove uma racialização do conhecimento que desconsidera, inferioriza e/ou generaliza as realidades em África e, de modo ainda mais acentuado, as experiências das mulheres africanas. Em suma, o que se nota é um conjunto de violências que, embora se sobreponham, originam-se em uma mesma visão hierárquica da divisão de poder, que busca silenciar a história da África e subtrair a participação ativa das mulheres africanas na tomada de decisão política.

Em meio a essa conjuntura, existem diversos movimentos ativos em África que buscam lutar contra a sub-representação feminina nos espaços políticos e decisórios. Durante os anos 1980, diversas teóricas africanas, bem como mulheres negras e indígenas imigrantes no Ocidente, impulsionaram o questionamento dentro do movimento feminista, trazendo para debate questões referentes não apenas às diferenças entre mulheres e homens, mas também entre as mulheres que não se enquadravam no padrão ocidental; ou seja, mulheres de diferentes raças/etnias, religiões, classe social, orientação sexual e geração (SILVA, 2018).

Silva (2018) demonstra que foi no contexto das independências dos países africanos, além do processo de modernização e construção da identidade nacional, que se verificou o fortalecimento de movimentos de emancipação das mulheres africanas. Concomitantemente, percebe-se o aumento no número de trabalhos que traziam como principais temas: colonialismo, masculinidades, casamentos e relações de parentesco, associação de mulheres e lutas nacionalistas, reconfiguração de papéis de gênero, entre outros. De modo geral, as independências dos países africanos deram espaço para uma rearticulação da sociedade civil, trazendo como consequência o surgimento de novos movimentos sociais que desafiam as estruturas e as especificidades das sociedades africanas.

Segundo Casimiro (2014, p. 75-76, apud GASPARETTO, 2017, p. 8) os movimentos de mulheres e feminismos africanos surgem a partir de quatro frentes: “1) o movimento endógeno de mulheres nas sociedades africanas; 2) a resistência anticolonial; 3) os movimentos de libertação nacional; e 4) os grupos de mulheres profissionais e acadêmicas, com independência econômica”.

A emergência desses movimentos de mulheres foi fundamental na inserção da mulher africana nos debates teóricos, enfatizando a necessidade de um olhar minucioso de suas realidades, bem como questionando suas culturas e tradições sem desmerecê-las, mas sim buscando entender o lugar que a mulher ocupa nessas estruturas.

Esses movimentos questionaram os paradigmas de desenvolvimento conservadores e conformistas, confrontando-os com o resgate da história das mulheres sem cair nos erros da corrente central da historiografia africana, que desconsidera as especificidades das experiências e as diversidades das mulheres desses países (CASIMIRO, 2014 apud Gasparetto, 2017, p. 389).

Entre os movimentos em prol da equidade de gênero e dos direitos das mulheres em África, alguns se destacam. O MULEIDE é uma organização não-governamental moçambicana, criada em 1991, com o objetivo de combater a violência baseada no gênero e eliminar o desequilíbrio de oportunidades de acesso ao progresso socioeconômico entre homens e mulheres. O principal grupo alvo desta organização são as mulheres em situações de vulnerabilidade, mas também trabalha com homens vítimas de violências baseadas no gênero e crianças que são vítimas de violência sexual e de outros problemas sociais.

Em mesma medida, o FÓRUM MULHER é uma rede de organizações não-governamentais de direito privado e sem fins lucrativos, fundada em 1993, a partir de uma perspectiva feminista. Seu principal objetivo é mediar a relação entre sociedade civil e o Estado no que diz respeito à formulação e aplicação de políticas governamentais, bem como o fortalecimento de organizações que lutam pela garantia dos direitos das mulheres. Esta organização busca promover transformações nas práticas socioculturais que inferiorizam as mulheres, tendo como denominador comum o respeito pelos direitos humanos e a melhoria da posição da mulher na sociedade.

Por fim, podemos destacar o trabalho desenvolvido pelo MULHERES EM MOVIMENTO. Trata-se de uma estratégia regional da CARE, lançada em 2016, que tem como objetivo emancipar econômica e socialmente mulheres e meninas na África Ocidental por meio de grupos de poupança, de tal modo que elas se tornem sujeitos mais ativos na sociedade fazendo valer seus direitos básicos e impulsionando a transformação social nos níveis familiar, comunitário e social.

Tais movimentos têm se mostrado necessários para a garantia dos direitos das mulheres, bem como para a sua emancipação e inserção nas diversas esferas da sociedade. O Dia Internacional da Mulher Africana ajuda a trazer visibilidade a esses movimentos e impulsionar o engajamento coletivo para concretizar o objetivo comum a todos os projetos aqui apontados: garantir o fim das violências contra as mulheres e a elaboração de políticas eficazes que promovam a equidade social. Em suma, a data cumpre um importante papel para evitar o apagamento da história das mulheres em África, bem como destacar a luta coletiva contra o silenciamento dessas mulheres em meio a estruturas hierárquicas marcadas pela desigualdade e pela violência.

 

* Maria Eduarda Kobayashi Rossi é graduanda em Relações Internacionais pela UNESP. Pesquisadora do GEDES e bolsista FAPESP (processo 2021/04480-3). Contato: eduarda.kobayashi@unesp.br

** Lorena dos Santos Roberts é graduanda em Relações Internacionais pela UNESP. Pesquisadora do Núcleo de Estudo de Gênero Iaras-Gedes. Contato: lorena.roberts@unesp.br

***Kimberly Alves Digolin é professora de Relações Internacionais na Universidade Paulista, mestre em Relações Internacionais pelo PPGRI San Tiago Dantas (Unesp, Unicamp, Puc-SP) e pesquisadora do Núcleo de Estudos de Gênero Iaras-GEDES. Contato: kimberly.alves.digolin@gmail.com

Imagem: Rede de Mulheres Líderes Africanas. Por: ONU Mulheres/ Flickr.

Notas:

[1] A sigla refere-se ao termo “Pan-African Women’s Organization”.

[2] Vale pontuar que muitos dos projetos são financiados pelo Fundo da União Africana para a Mulher Africana, o qual é essencial para a implementação das propostas previstas nos planos estratégicos da União Africana, principalmente para o alcance dos objetivos previstos na Agenda 2063: A África que queremos (UNIÃO AFRICANA, 2015).

[3] Para mais informações, recomendamos a seguinte leitura: GONZÁLEZ, Lélia. Por um feminismo afro-latino-americano. Editora Zahar. 2021.

Referências bibliográficas

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Recomendações

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