genero e salario

Exercendo uma curiosidade feminista sobre as desigualdades de gênero no mercado de trabalho: lutas históricas e desafios atuais

Maria Eduarda Kobayashi Rossi*

Segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT), a desigualdade salarial entre homens e mulheres é um problema enfrentado em todo o mundo[1]. Nos Estados Unidos, a média da diferença salarial é de 18%, já nos países da União Europeia, esse número é de 12,7%. Na América Latina, a desigualdade salarial também persiste, e no Brasil, em especial, os dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística  (IBGE, 2022) mostram que as brasileiras recebem, em média, 78% do salário dos homens, representando uma diferença de 22%. Neste primeiro de maio, em que se comemora o Dia do Trabalhador, trazemos uma contextualização acerca da entrada das mulheres no mercado de trabalho e alguns dos desafios atuais. Ademais, ao praticar uma curiosidade feminista[2], influenciada por Cynthia Enloe (2004, 2014), buscamos olhar criticamente para a condição das mulheres no ambiente laboral, e as dinâmicas de poder que permitem a perpetuação da desigualdade até o presente.

O Dia do Trabalhador é uma data comemorada internacionalmente, e a história de sua criação está relacionada ao início uma grande greve nacional, iniciada no dia 1 de maio de 1886 em Chicago, nos Estados Unidos da América (EUA), visando promover a redução jornada de trabalho  para oito horas diárias. Os protestos, organizados por sindicatos e estimuladas por anarquistas, foram reprimidos pela polícia. Além da disseminação da violência direta sobre a população, destaca-se, também, a condenação de cinco sindicalistas anarquistas à forca. Um deles se suicidou na prisão, e os demais foram enforcados em 11 de novembro de 1887, cuja data ficou conhecida como “Revolta de Haymarket”.

Exercendo uma curiosidade feminista, cabe-nos questionar: onde estão as mulheres nessa história? Embora seus nomes não ganhem destaque na origem da data, é importante lembrar que as mulheres desempenharam uma função ativa e essencial nas lutas sociais (em especial, no movimento antiescravista) dos EUA, cuja participação foi fundamental para organizar campanhas pela garantia de direitos às mulheres anos mais tarde (DAVIS, 2004). Como destacado por Angela Davis: “[n]o final da década de 1820, muito antes da Convenção de Seneca Falls, celebrada em 1848, as mulheres trabalhadoras começaram a organizar manifestações e greves protestando ativamente contra a dupla opressão que sofriam como mulheres e como trabalhadoras industriais” (DAVIS, 2004, p. 63, tradução nossa). No Brasil, as mulheres exerceram um papel importante no movimento negro (GONZÁLEZ, 2021), bem como na luta contra a ditadura cívico-militar. Segundo Célia Pinta (2003), os grupos feministas cresceram nas décadas de 1970 e 1980, e neles participavam principalmente mulheres de classe média e operárias. A criação de tais grupos, principalmente nas capitais, foi impulsionada por mulheres intelectuais de esquerda.

Ao olhar para a evolução do movimento feminista, a socióloga argentina Dora Barrancos (2022) lembra-nos que as hierarquias de gênero, cujas consequências são manifestas, dentre muitas outras formas, na desigualdade de salários entre homens e mulheres, foi construída e reforçada historicamente, baseada na criação de papéis de gênero. Como destacado por Connell (2015, p. 32), a partir da noção da diferença entre os dois sexos biológicos são criadas imagens de gênero e, em consequência, padrões sociais que promovem a subalternização de determinados corpos, influenciando, inclusive, as escolhas profissionais[3]. As mulheres são associadas à passividade e ao amor, sendo-lhes delegadas tarefas domésticas e de cuidado, bem como empregos menos valorizados e o trabalho não remunerado no lar. Em contrapartida, aos homens são associados à imagem de força, agressividade e responsabilidade e, em consequência, são delegadas tarefas relacionadas à arena pública, à tomada de decisão, defesa e aos cargos de liderança.

No período da Revolução Francesa, as mulheres nem sequer eram consideradas cidadãs plenas e, por isso, não possuíam direitos civis e políticos ⏤ fato que incentivou a criação dos movimentos sufragistas. Há duas décadas, a grande maioria das mulheres não podia ingressar no mercado de trabalho exercendo tarefas que não fossem de cuidado e serviços gerais, como a limpeza dos espaços. Com o passar do tempo, houve um crescimento histórico do número de mulheres no mercado de trabalho e, inclusive, ocupando  altos cargos de liderança, entretanto a lacuna salarial persiste, principalmente pelo fato de que as mulheres continuam ser super-representadas em empregos vulneráveis[4].

A noção de “empregos vulneráveis” engloba: trabalhos não remunerados (como os trabalhos domésticos e de cuidado, que discutiremos a seguir), trabalhos com menos horas, trabalhos pouco remunerados e trabalho sem proteção social. Silvia Federici (2019a, 2019b), uma das principais referências do feminismo marxista, denuncia em suas obras como as mulheres estão na base de sustentação de um sistema capitalista desigual, cruel e violento, o qual se aproveitou (e se aproveita) do trabalho doméstico não pago para a sua expansão. Esse tipo de trabalho é entendido, pela autora, como “a violência mais sutil que o capitalismo já perpetuou contra qualquer setor da classe trabalhadora” (FEDERICI, 2019b, p. 12). A violência é dita sutil porque o sistema capitalista se aproveitou das normas e papéis de gênero, presentes no imaginário da sociedade, para reafirmar a ideia de que tais tarefas não representam um trabalho, mas apenas um ato de amor natural à feminilidade.

Um exemplo atual da sobrecarga das mulheres em muitas horas de trabalho ficou evidente durante a pandemia de covid-19, em que coube a elas exercer, para além de seus trabalhos, as tarefas de cuidado, tendo sua jornada de trabalho ampliada exponencialmente. Tal fato levou, no espaço científico, à diminuição da produção acadêmica das mulheres, em especial àquelas que são mães, isso fica evidente na pesquisa Parent in science. Em adição, de acordo com os dados da CEPAL (2021), as mulheres ocupavam as posições de maior risco de exposição e contaminação, como no comércio e na área da saúde. O  documento também mostra que as mulheres exerceram o triplo do trabalho não remunerado em comparação com os homens nos países da América Latina.

Importa destacar, ainda, que a desigualdade salarial está entrelaçada com outros marcadores sociais, tais como a classe e a raça. Conforme o IBGE (2022), a porcentagem de pessoas negras ocupando cargos de gestão é de 29,5%, enquanto a população branca ocupa 69%. Isso se deve à desigualdade de oportunidades alinhada a um problema estrutural: o racismo. Carolina Maria de Jesus é um exemplo de mulher trabalhadora e periférica que sentiu, em seu cotidiano, o peso da desigualdade social que permanece como um problema na sociedade brasileira. No livro “Quarto de despejo: diário de uma favelada”, Carolina Maria de Jesus (1992) conta as dificuldades sentidas em seu cotidiano como mãe, catadora de lixo e moradora da favela do Canindé, na cidade de São Paulo, denunciando problemas sociais como a fome e a inação do Estado em garantir, principalmente, os direitos econômicos, sociais e culturais dessa população. Antes de mudar-se para São Paulo, a autora viveu em Minas Gerais e, assim como sua mãe, foi empregada doméstica. Vale ressaltar que a literatura brasileira está repleta de exemplos, evidentes, em especial, na poesia como forma sensível de tocar a experiência humana, da subjugação das mulheres negras, seja no mercado de trabalho público ou no âmbito doméstico.

Nos estudos de Segurança Internacional com foco nos indivíduos trabalha-se a questão da segurança humana, a qual está baseada na ideia de que os seres humanos devem ser livres do medo (freedom from fear), ou seja, das ameaças que possam ferir a sua integridade, e das necessidades (freedom from want) (DUFFIELD, 2005). As questões de segurança e intervenções internacionais, principalmente após os anos 2000, passaram a carregar um forte nexo com as questões de desenvolvimento, em perspectiva ampliada, na qual se defende a busca pela expansão das liberdades reais que as pessoas desfrutam (SEN, 2001), de modo a proteger as pessoas da violência direta e oferecendo-as oportunidades para poderem desenvolver suas capacidades e viverem a vida que almejam viver (ou seja, conforme os princípios que são caros a cada pessoa). Diante destas questões, cabe-nos destacar, tendo exercido uma curiosidade feminista, que a segurança humana, atualmente, não é uma condição desfrutada por todas as pessoas em todo o mundo, principalmente pelas mulheres racializadas e migrantes nas periferias tanto do Sul quanto do Norte global, que vivem em uma situação estrutural marcada pela insegurança.

Ainda que a Organização das Nações Unidas (ONU) tenha proposto, dentro do escopo da Agenda 2030, a igualdade de gênero enquanto um dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável que devem ser garantidos pelos Estados às comunidades, os dados apresentados ao longo do texto são uma evidência de que a desigualdade persiste. Tendo isso em mente, esperamos, por fim, que este Dia do Trabalhador seja uma data para tomar consciência de que ainda há muito a fazer para que a igualdade de gênero, em especial no mercado de trabalho, saia da teoria e se concretize, na prática, para todas as pessoas do mundo. O alcance deste objetivo, porém, não é tarefa fácil, pois pressupõe a mudança das relações de poder que estão na base de funcionamento da dinâmica internacional capitalista, como evidenciado por Federici.

*Maria Eduarda Kobayashi Rossi é graduanda em Relações Internacionais pela UNESP. Pesquisadora do Iaras- Núcleo de Estudos de Gênero do Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional (Iaras-GEDES). Pesquisadora bolsista FAPESP (processos 2021/04480-3 e 2022/01182-4).

Imagem: A lacuna salarial de gênero no mundo do trabalho. Por: Organização Internacional do Trabalho (OIT).

 

Notas:

[1] Para mais informações sobre a diferença de gênero no mercado de trabalho, sugerimos a consulta aos dados organizados pela OIT, os quais estão disponíveis no link: <https://www.ilo.org/infostories/en-GB/Stories/Employment/barriers-women#global-gap>. Acesso em 25 de abril de 2023.

[2] O exercício da curiosidade feminista, segundo Enloe, busca analisar a realidade social e, questionar as normas naturalizadas, percebendo as dinâmicas de poder que promovem a desigualdade de gênero.

[3] No que se refere a este tema, em Portugal, lugar de onde a autora escreve, pesquisadores do Centro de Estudos Sociais (CES), em conjunto com diversas instituições parceiras, estão desenvolvendo o projeto “Igual-Pro: as profissões não têm gênero”, que busca questionar e desconstruir os estereótipos de gênero relacionados às distintas profissões no mercado de trabalho e áreas de estudo. Os avanços do projeto podem ser acompanhados pelo site (https://projetos.cite.gov.pt/pt/web/igualpro/pagina-inicial), e os próximos relatórios serão divulgados no em breve. Tatiana Moura e Tiago Rolino, que estão a frente dessas atividades, são boas referências para aqueles(as) que se interessam pelos estudos de gênero e masculinidades.

[4] Nosso entendimento acerca da definição de “empregos vulneráveis” segue os princípios da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Mais informações podem ser encontradas em: <https://www.ilo.org/infostories/en-GB/Stories/Employment/barriers-women#unemployed-vulnerable/vulnerable-employment>. Acesso em 25 de abril de 2023.

 

Referências

BARRANCOS, Dora. Historia mínima del feminismo en América Latina, México, COLMEX, 2020.

DAVIS, Angela. Mulheres, raça e classe. Boitempo Editorial, 2016.

DE JESUS, Carolina Maria. Quarto de despejo: diário de uma favelada. Editora Ática. 10 edição. 1992. Disponível em: <https://dpid.cidadaopg.sp.gov.br/pde/arquivos/1623677495235~Quarto%20de%20Despejo%20-%20Maria%20Carolina%20de%20Jesus.pdf.pdf>. Acesso em 30 de abril de 2023.

CEPAL. Brechas de género en el mercado laboral y los efectos de la crisis sanitaria en la autonomía económica de las mujeres. 2021. Disponível em: <https://www.cepal.org/sites/default/files/presentations/presentacion_aguezmes_180121.pdf>. Acesso em 30 de abril de 2023.

CONNELL, Raewyn. Gênero: uma perspectiva global. nVersos Editora. 2015.

DUFFIELD. Human Security: Linking Development and Security in an Age of Terror, 2005. Disponível em: <http://members.chello.at/intpol_gkc4/Duffield%202005b.pdf>. Acesso em 30 de abril de 2023.

ENLOE, Cynthia. Bananas, beaches and bases: Making feminist sense of international politics. University of California Press, 2014.

ENLOE, Cynthia. The curious feminist: Searching for women in a new age of empire. University of California Press, 2004.

FEDERICI, Silvia. Calibã e a bruxa: mulheres, corpos e acumulação primitiva. Editora Elefante: Coletivo Sycorax, 2019b. Disponível em: http://coletivosycorax.org/wp-content/uploads/2019/09/CALIBA_E_A_BRUXA_WEB-1.pdf

FEDERICI, Silvia. O ponto zero da revolução: trabalho doméstico, reprodução e luta feminista. Editora Elefante: Coletivo Sycorax, 2019a. Disponível em: http://coletivosycorax.org/wp-content/uploads/2019/09/Opontozerodarevolucao_WEB.pdf

GONZÁLEZ, Lélia. Por um feminismo afro-latino-americano. Zahar Editora. 2020.

IBGE, Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Desigualdade social por cor ou raça no Brasil. 2022. Disponível em: <https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101972_informativo.pdf>. Acesso em 30 de abril de 2023.

IBGE, Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Estatísticas de Gênero Indicadores sociais das mulheres no Brasil. 2021. Disponível em: <https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101784_informativo.pdf>.  Acesso em 30 de abril de 2023.

OIT, Organização Internacional do Trabalho. InfoStories. The gender gap in employment: What’s holding women back?. 2022. Disponível em: <https://www.ilo.org/infostories/en-GB/Stories/Employment/barriers-women#intro>.

PINTO, Célia. Uma história do feminismo no Brasil. Fundação Perseu Albramo. 2003. pp. 40-66.

SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. Editora Companhia das letras, 2018.

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