[elementor-template id="5531"]

Capitalismo de vigilância, gestão da pandemia e relações internacionais

 

Murilo Motta*

 Este ensaio é um resumo do artigo “Dados, vigilância e o setor privado no desenvolvimento de ferramentas de rastreamento de contatos durante a pandemia de COVID-19” publicado pela Revista Aurora, v. 14, n. 2, 2021. A versão completa está disponível no site da revista.

 

A pandemia de COVID-19 forçou a migração de diversos direitos e serviços para plataformas digitais. Pessoas de todo o globo se tornaram usuários de serviços oferecidos por grandes empresas dos Estados Unidos, como Google, Apple, Facebook, Amazon e Microsoft, também conhecidas pela sigla GAFAM. Por exemplo, Google (Gmail, Google Classroom, YouTube) e Microsoft (MS Teams) se tornaram nossas novas salas de aula, o Facebook (Instagram, Whatsapp) passou a ser nosso ponto de encontro para atividades culturais, sociais e de lazer, enquanto a Amazon se tornou a referência para nossas compras. Embora ofereçam estes serviços, dentre muitos outros, a principal fonte de faturamento destas empresas provém da extração, gestão e análise de dados de seus usuários.

Em seu renomado livro sobre o capitalismo de vigilância, Shoshana Zuboff vê o uso de grandes quantidades de dados (Big Data) como componente fundamental de uma nova forma de capitalismo de informação, que ela chama de “capitalismo de vigilância”, em que grandes empresas de tecnologia, como as GAFAM, oferecem serviços e plataformas digitais gratuitos deliberadamente desenhados para extrair o máximo possível de dados de seus usuários; então, esses dados são tratados e vendidos para terceiros, como modelos preditivos do comportamento humano, que também permitem sua modificação por antecipação.

Ainda assim, o anúncio de uma parceria entre Apple e Google para o desenvolvimento de uma Interface de Programação de Aplicativos (API) para o rastreamento de contatos de COVID-19, foi bem recebido em todo o globo, após sua comprovada eficácia na proteção à privacidade dos usuários, mas sem que houvessem maiores questionamentos sobre quais os interesses destas duas grandes empresas com essa estratégia.

A partir desta interface, o governo ou a autoridade sanitária competente puderam desenvolver aplicativos de rastreamento de contatos integrados aos sistemas de saúde nacionais. No Brasil, o Ministério da Saúde usou a API Apple-Google para desenvolver o aplicativo de rastreamento de contatos “Coronavirus – SUS”. Segundo o Ministério da Saúde, o “Coronavirus – SUS” reconhece contatos próximos a uma distância de 1,5 a 2 metros e por um tempo mínimo de cinco minutos. Ele funciona entre smartphones que tenham o aplicativo instalado, através do envio criptografado das informações de contágio, por meio do uso do Bluetooth de baixa energia.

O Ministério também destacou que “além de segura, a nova funcionalidade conserva a privacidade, tanto do paciente infectado como da pessoa que recebe a notificação da possível exposição com o caso confirmado para a COVID-19”, já que o aplicativo funciona sem rastrear os movimentos da pessoa testada positiva e sem conhecer sua identidade ou a identidade com quem ela entrou em contato. Além disso, “todos os dados são criptografados e salvos localmente no smartphone” e “os dados só ficam disponíveis na ferramenta durante o período de 14 dias”.

Embora o conhecimento e a capacidade de inovação de Apple e Google possam ter ajudado a mitigar os efeitos da pandemia, é necessário criticar a invasão da esfera pública por atores privados, uma vez que ela pode implicar a perda de autonomia por parte dos Estados e das sociedades na definição dos usos destas tecnologias. Com efeito, a dependência de atores privados para o desenvolvimento de novas tecnologias contribui não só para a subordinação técnica, mas também para a subordinação cultural, econômica, social e política a algumas poucas empresas sediadas principalmente nos EUA.

Neste sentido, o desenvolvimento desta API faz parte de um fenômeno mais amplo, em que as grandes empresas de tecnologia têm penetrado em cada vez mais esferas da vida social. A transgressão de esferas da vida social é uma estratégia destas empresas, que, assim, concentram uma variedade cada vez maior de dados, que são essenciais para o desenvolvimento de novas tecnologias da informação.

Estas empresas aproveitam suas vantagens na esfera da produção de bens digitais para acessar as esferas da saúde e das políticas públicas, o que pode levar à reorganização destas duas esferas de acordo com os valores e interesses de empresas privadas. Esta crítica pretende ressaltar que Apple e Google não só contribuíram com seus conhecimentos técnicos na formulação de uma resposta à pandemia de COVID-19, mas também determinaram qual caminho poderia ser seguido, uma vez que definiram as condições de existência de aplicativos de rastreamento de contatos e como eles puderam ser usados por governos nacionais.

Para regulamentar as práticas invasivas e desenfreadas de acúmulo de dados, será necessário controlar quais tipos de dados as empresas podem coletar, como podem coletá-los e para onde podem enviá-los e armazená-los, bem como limitar a quantidade de dados que uma empresa pode possuir sobre seus usuários. Ademais, precisaremos de novos modelos de propriedade e de governança de dados, que quebrem as práticas monopolistas de empresas como as GAFAM, o que significa gerir alguns setores da economia de dados como parte da infraestrutura pública.

Nesta nova economia baseada em dados, o conhecimento é radicalmente concentrado em algumas poucas empresas estadunidenses, que buscam ativamente maximizar sua legitimidade, relevância e poder nas relações internacionais. Nos países do Sul Global, a defasagem em conhecimentos de ponta se traduz na necessidade de que empresas privadas estrangeiras preencham a lacuna técnica deixada pelos Estados nacionais. No entanto, é importante considerar que a atuação de empresas privadas é sempre condicionada pela busca de lucros, de modo que devemos estar atentos para os usos que são feitos de nossos dados por empresas como as GAFAM.

 

* Murilo Motta é Mestrando pelo Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (Unesp/Unicamp/Pucsp), bolsista CAPES (PROCAD-DEFESA) e membro da Rede de Pesquisa em Autonomia Estratégica, Tecnologia & Defesa (PAET&D)

Imagem: App para o rastreamento de COVID-19. Por: Pixabay.

Exportação de vacinas como fator de reinvenção da diplomacia russa – Blog Terra em Transe

O artigo Exportação de vacinas como fator de reinvenção da diplomacia russa, publicado no Blog Terra em Transe, discute as estratégias da Rússia para usar a vacina Sputnik V como ferramenta diplomática. A recusa da Anvisa no Brasil para o uso emergencial da vacina russa destaca a tensão geopolítica e as assimetrias no acesso aos imunizantes, especialmente no contexto da pandemia. Enquanto a vacina foi aprovada em 61 países, muitos deles do Sul Global, o Brasil segue em impasse sobre sua utilização.

Escrito por Giovana Dias Branco e Danielle Makio, membro do CIRE, o artigo analisa como a Rússia tem usado sua diplomacia de saúde para fortalecer suas relações internacionais e desafiar a hegemonia das potências ocidentais.

Confira mais sobre este assunto acessando o texto completo.

Entre dos pandemias: la ONU ante la violencia de género y la covid-19

Cristian Daniel Valdivieso [1]

Joyce Miranda Leão Martins [2]

 

En noviembre de 2018, el Secretario General de las Naciones Unidas, António Guterres, mencionaba, por motivo de la celebración del Día Internacional para la Eliminación de la Violencia Contra la Mujer, que la violencia contra las mujeres y las niñas es una pandemia. El actual máximo representante de la ONU ha apelado de forma incesante para la necesidad de promoción de medidas que permitan hacer de la igualdad de género una realidad consolidada en el respeto, la solidaridad y el trabajo conjunto entre representantes, ciudadanos y ciudadanas de los países del sistema internacional. El uso del término género, que indica la distinción entre condicionamientos biológicos de construcciones sociales, enseña que la institución cree que el enfrentamiento de esa pandemia también pasa por el combate a los simbolismos prejudiciales.

La enfermedad diagnosticada hace dos años por Guterres se ha agudizado con la llegada de otra pandemia, la Covid-19. Pese a que la propagación del virus y el prolongado impacto económico, ya evidente en todas las latitudes del planeta, son actualmente los grandes faroles de atención internacional, se acumulan víctimas invisibles de la violencia de género. Datos de la organización ONU Mujeres indican que la violencia de género se ve agravada por el confinamiento.

En estos momentos de resguardo social, los efectos psicológicos de la pandemia pueden resultar en el incremento de variados tipos de violencia, incluso la física. A esto se acompaña la ausencia de mecanismos de denuncia de casos de violencia familiar. En países como Argentina, Brasil, Colombia y México, la violencia contra las mujeres incrementó entre 30% y 50%. Asimismo, en Ecuador y Honduras, los hogares provisorios de acogida a mujeres maltratadas quedaron abarrotados, y los mecanismos de ayuda telefónica o virtual se han visto anulados por la inevitable presencia de los agresores en los hogares. Casos como Colombia, con más de 300 feminicidios entre enero y mayo, y Chile, con un aumento del 500% de pedidos de socorro por violencia de género, son el reflejo de la realidad regional.

En Argentina, Chile y España, los gobiernos han recurrido a la creación de códigos secretos, como el pedido de la “mascarilla 19” o “el tapabocas rojo” en farmacias, para que las víctimas puedan denunciar a sus agresores de forma segura y accionar efectivos policiales. Entretanto, ¿qué acciones están siendo promovidas por organizaciones internacionales para reforzar el combate a la violencia de género?

En primer término, es importante destacar que las acciones internacionales en función de la lucha por la igualdad de género comenzaron de forma tardía. Las convenciones de la ONU iniciaron solo en 1975, en las cuales, por motivo del Día Internacional de la Mujer, se organizó la Primera Conferencia Mundial sobre la Mujer, en México, y se promovió una agenda permanente para eliminar la discriminación contra la mujer y promover la igualdad de género. Como consecuencia de ello, uno de los principales marcos de la historia contemporánea a respecto de este tema es la resolución 1325 del Consejo de Seguridad que, buscando la igualdad e inclusión real en actividades político-sociales, insta a que las mujeres sean apoyadas por sus respectivo Estados en funciones de promoción de la paz en toda la verticalidad de sus jerarquías.

Como bien indica el art. 1 de la Carta de la ONU, de 1945, el objetivo principal de la institución es “mantener la paz y la seguridad internacionales”, meta irrealizable sin la igualdad, que involucra justicia y representación política, como señala Nancy Fraser. El art. 8 de la misiva reza que no se establecerá restricciones para la participación de mujeres y hombres en la ONU, respetando condiciones de igualdad de género. Sin embargo, la realidad muestra la existencia de brechas que denuncian por sí mismas la desigualdad en el propio seno de la entidad.

En el mismo año en que Guterres denunciaba la violencia de género como una pandemia, se anunciaba que, por primera vez en la historia de la institución, los altos cargos del organismo alcanzaban la paridad entre hombres y mujeres. Esto es evidencia de que, si bien la lucha por la igualdad está ocurriendo, lo hace a paso lento. Además, como la realidad lo refleja, la escaza divulgación mediática de este acontecimiento inédito refleja el bajo grado de relevancia que se otorga a estos temas a nivel internacional.

En segundo término, y bajo este crítico escenario de pandemias, la ONU y sus Estados-miembros enfrentan un complejo rompecabezas. La coyuntura demanda la reestructuración de los mecanismos que hasta ahora han permitido dar aquellos pasos lentos en favor de la igualdad. El momento exige urgencia.

Los impactos de la Covid-19, además del drástico incremento de violencia, gira en torno a aspectos económicos, profesionales, sociales y de movilidad en momentos de ampliación de flujos migratorios. Para las mujeres, dadas las condiciones de desigualdad de género, esos impactos son todavía peores: ellas ven una deterioración de sus ya precarias condiciones de vida, principalmente en lugares periféricos. Los cuerpos de salud en América Latina están constituidos en un 70% por mujeres, lo cual indica que ellas se encuentran más vulnerables en varios ámbitos, como ocurrió con el incremento de violencia hacia el personal médico en el trasporte público. Las mujeres también constituyen la principal mano de obra del subempleo, sin garantías ni resguardo de derechos. Desde otro ángulo, el trabajo no remunerado en el hogar es un peso duplicado por la presencia de sus hijos que no pueden acudir a las escuelas.

Otros impactos que se profundizan son la falta de acceso a créditos que permitan promover incentivos económicos de medios de subsistencia. La precaria situación de la mayoría de mujeres en Latinoamérica las vuelve más vulnerables en la medida en que ni siquiera poseen acceso a servicios básicos. Muchas de ellas son víctimas de explotación sexual. Aquellas que dependen de servicios públicos de salud, una grande mayoría, ven sus prioridades eliminadas. Si bien la crisis sanitaria actual demanda de esfuerzos conjuntos, el ya precario servicio de salud pública de algunos países de la región hoy se ve en la necesidad de robustecer en tiempo récord sus profundos déficits, muchas veces sacrificando la atención a gestantes.

Dado este complejo campo de batalla, ONU Mujeres ha emitido documentos que pretenden contribuir con respuestas a la crisis. Entre los puntos principales encontramos sugerencias para que los países trabajen en función de garantizar la atención reproductiva de las mujeres, sin dejar que sea una prioridad. Garantizar que las mujeres que forman parte de ese 70% del cuerpo médico latinoamericano tengan los instrumentos necesarios para enfrentar de forma adecuada la pandemia. Ese punto viene al encuentro de episodios en los cuales trabajadoras de salud han denunciado la falta de insumos para su propia protección, como ocurrió en el Ecuador.

Otro elemento es el aprovechamiento de la tecnología para facilitar la circulación de informaciones confiables que permitan que las víctimas de violencia de género encuentren vías seguras de denuncia y para prevenir el ciberacoso. Sugiere también que los datos gubernamentales en las diversas instancias político-sociales sean discriminados por sexo para que mejores políticas públicas sean destinadas de acuerdo a las necesidades y para combatir la sub-representación. Esta medida se vuelve central al momento de pensar que, conforme se aproxima la ya llamada “nueva normalidad”, es urgente que el uso de datos permita visibilizar las necesidades de mujeres que sufren de forma profunda los efectos de la epidemia de Covid-19 y para la elaboración de propuestas que permitan que ellas tengan garantías laborales, político-sociales y económicas que inclusive antes no tenían.

Por último, la ONU sugiere que los Estados promuevan políticas que permitan una división igualitaria con relación al trabajo no remunerado. Este punto refuerza la constante llamada al trabajo conjunto que realiza Naciones Unidas, pues la igualdad de género no es una tarea únicamente de las mujeres o que deba ser luchada apenas por ellas. Por el contrario, para conquistar una verdadera igualdad de género se requiere de la conciencia de hombres y de toda la sociedad para fortalecer la justicia social y aproximar a las mujeres que fueron excluidas de los contratos sociales.

Tal vez el principal enemigo de tan necesarias conquistas sea la mentalidad autoritaria, que no desea que tan antigua pandemia tenga un punto final. Que rechaza la participación de las mujeres en el espacio público y la libertad de ellas. Por eso, la lucha contra la violencia de género es también una lucha por más y mejor democracia.

El día 25 de noviembre se cumplieron 60 años que la dictadura de Rafael Trujillo, en República Dominicana, asesinó a las hermanas Mirabal, activistas contrarias a su régimen. La muerte de Minerva, Patria y María Teresa, debido a la gran conmoción que causó, fue también el inicio del fin del gobierno de Trujillo. Desde 1981, Latinoamérica conmemora el 25 de noviembre el día contra la violencia de género. Consecuentemente, marca también la lucha por igualdad y por derechos. Son justamente estos que no pueden quedar en el olvido. Aunque sean positivas las urgentes sugerencias de ONU, el reconocimiento de los derechos, y la exigencia relacionada al hecho, es fundamental para que las mujeres estén más fuertes ante otras pandemias y violencias. Para vencerlas, es preciso apresurar el paso.

 

Cristian Daniel Valdivieso es doctorando en el PPGRI San Tiago Dantas (UNESP-UNICAMP-PUC/SP) y investigador del GEDES; Joyce Miranda Leão Martins es doctora en Ciencias Políticas por UFRGS y investigadora de posdoctorado en PUC/SP.

 

Imagen de: Naciones Unidas.

[1] Doutorando do PPGRI San Tiago Dantas (UNESP-UNICAMP-PUC/SP). Membro do GEDES.

[2] Doutorada em Ciência Política pela UFRGS. Pós-doutorado em Ciência Política pela PUC/SP.

A reinvenção do crime organizado transnacional em tempos de pandemia

Tales de Paula Roberto de Campos

Mestrando em Relações Internacionais pelo Programa de Pós-Graduação em

Relações Internacionais San Tiago Dantas (UNESP-UNICAMP-PUC-SP)

Email: talesdepaula0@gmail.com

 

A capilaridade das operações criminais está aquém da limitação geográfica. Como um exemplo fidedigno desta afirmação, a seguinte reportagem ilustra como o Primeiro Comando da Capital (PCC) – representado por um de seus membros mais importantes – continua tecendo relações com outros grupos criminosos a milhares de quilômetros de distância mesmo em uma situação ímpar para o globo neste momento: em plena pandemia do Coronavírus. Na segunda-feira, 13 de abril de 2020, uma operação conjunta envolvendo a Polícia Federal do Brasil (PF), autoridades locais moçambicanas e auxílio informacional do Drug Enforcement Administration (DEA) prendeu Gilberto Aparecido dos Santos, mais conhecido como “Fuminho” em Maputo, capital do país. Ligado ao Primeiro Comando da Capital, Fuminho era procurado por autoridades brasileiras e internacionais desde 1998, e acusado de diversos crimes, dentre os quais inclui-se a participação indireta nos assassinatos de notórios “irmãos” da facção paulista “Gegê do Mangue” e “Paca” (STARGARDTER; MUCARI, 2020, MACEDO; VASSALLO, 2020).

O crime organizado é uma atividade que pode mudar rapidamente: toda sua estrutura, hierarquia e recursos necessários para a sua subsistência podem ser alterados em curto prazo. O crime cria as próprias condições para que as oportunidades de articulação ilegal sejam possíveis (ALBANESE, 2000). Em oposição aos empreendimentos ilegais, o Estado como autoridade central não só sofre com os efeitos negativos de uma economia paralela e predatória, mas também não se dá conta que facilita o crescimento e difusão de grupos criminosos. É por tal motivo que seus recursos se tornam, mais cedo ou mais tarde, subutilizados. Desta forma, quando a alternativa é agir, o Estado já perdeu as forças necessárias para responder a altura da ameaça. Seu sistema político acaba minado pela corrupção interna causada pelos grupos à margem da lei em um cenário avançado de parasitismo criminal (KARSTEDT, 2014).

Por exemplo, entre os anos de 1920 a 1933, em razão da adoção da Lei Seca nos Estados Unidos, as máfias capitalizaram a proibição de bebidas alcoólicas a fim de construir uma economia ilegal envolta na produção de álcool e derivados (HILL, 2006). Da mesma forma, durante o processo de entrada dos Estados Unidos na Segunda Guerra Mundial (1939-1945), setores de inteligência da marinha teceram relações com o submundo do crime que controlava as docas e a pesca na cidade de Nova Iorque. Grupos liderados pelos mafiosos Joe Adonis, Willie Moretti e “Lucky” Luciano concordaram em vigiar e impedir qualquer ato de espionagem do Eixo na costa marítima de Nova Iorque durante o decorrer do conflito (BROOKS, 2017). Em suma, o crime organizado é volátil e altera facilmente as condições conforme lhe convier.

Em uma situação onde a estrutura que compõe o Estado é forçada a utilizar o máximo de sua envergadura, a pandemia do COVID-19 leva toda a economia e os serviços públicos a serem centralizados em prol da saúde geral da população. Esta estratégia vai se tornando cada vez inferior conforme menor a renda ou a infraestrutura disponível. Uma vez que mesmo Estados com alta distribuição de capital como a Itália sofrem os efeitos nefastos da rápida expansão do Coronavírus, o resultado em nações em desenvolvimento e subdesenvolvidas seria severo (MAXMEN, 2020). É por tal motivo que, nos Estados onde os efeitos do crime organizado são mais acentuados, provavelmente esta será uma janela para os grupos criminosos explorarem outras oportunidades de enriquecimento a fim de brevemente reorientarem sua estrutura.

O resultado desta estratégia no mundo criminal é único – a fórmula para manter as atividades ilegais rentáveis está sendo novamente aprofundada durante este momento de pandemia. Por exemplo, de acordo com o ex-capo da Família Colombo, Michael Franzese, “este é um cenário perfeito para golpes, e alguns dos meus antigos associados estão na rua neste momento”. Claramente, a maneira como cada organização deve se reformular para se tornar novamente sustentável varia e por vezes certos negócios e atitudes transnacionais precisam ser alteradas ou abandonadas temporariamente. Os fluxos transnacionais eram aliados dos criminosos. Em tempos de COVID-19, atividades que necessitam de movimento e contato humano precisam ser repensadas. Na Bósnia, roubos de carros têm sido cada vez mais difíceis com menos movimentos nas ruas uma vez que as pessoas se encontram em isolamento social (BEHAR, 2020).

O crime organizado deverá encontrar sua própria forma de buscar demandas e providenciar ofertas para mercados nacionais e internacionais. Se, por um lado, em El Salvador, o distanciamento social tem impactado na diminuição radical nos homicídios e na eliminação de rivais por gangues (GLOBAL INITIATIVE AGAINST TRANSNATIONAL ORGANIZED CRIME, 2020), no Brasil, o Comando Vermelho (CV) estabelecido na Cidade de Deus e na favela do Jacarézinho aplica toques de recolher e ameaças de agressão em caso de descumprimento das normas em razão da pandemia (BLOIS, 2020). Em outro extremo,  milícias no Rio de Janeiro estão forçando comerciantes locais a abrirem o comércio por meio de extorsão e de taxas (POLÍCIA INVESTIGA…, 2020). A forma como se exerce domínio criminal pode sofrer variações.

Em termos transnacionais, a carência de oferta de determinados produtos estão afetando a rotina de criminosos. Os traficantes mexicanos não estão conseguindo encontrar os ingredientes necessários para a produção de metanfetamina dado que diversos produtos originários da China estão sendo barrados em grande quantidade em entrepostos comerciais. Da mesma forma, coiotes na Líbia não têm condições de traficar pessoas do Mediterrâneo para as fronteiras da Europa (GLOBAL INITIATIVE AGAINST TRANSNATIONAL ORGANIZED CRIME, 2020). Como um efeito dominó, menos imigrantes ilegais afetam a renda de atravessadores que ajudavam a transportar parte das 60 mil pessoas que chegavam em meio a crise migratória através  da rota dos Balcãs anualmente (GLOBAL INITIATIVE AGAINST TRANSNATIONAL ORGANIZED CRIME, 2020a).

Entretanto, há atividades à distância que seguem sem alteração e se tornaram o novo foco de evidência do crime organizado. Por exemplo, a Interpol regularmente realiza a chamada “Operação Pangéia” com o objetivo de impedir a venda online de produtos farmacêuticos no mercado negro. Durante todo o período de existência do projeto foram feitas mais de 3 mil apreensões e 105 milhões de medicamentos retirados de circulação. De acordo com a Interpol, 11 por cento dos remédios revendidos por meio da Internet são contrabandeados (INTERPOL, 2019). Durante a pandemia do COVID-19, uma operação conjunta envolvendo a Europol, a Interpol e autoridades de 90 países na Operação Pangéia de 2020 encontraram, entre os dias 3 a 10 de março, receitas falsas de supostas curas para o Coronavírus e contrabando de material hospitalar. Em 121 apreensões, foram recuperados 37.000 itens médicos (em sua maioria, máscaras cirúrgicas), e 13 milhões de euros em material farmacêutico desviado (EUROPEAN UNION, 2020).

A comercialização ilegal de produtos farmacêuticos tem nos crimes cibernéticos uma das formas de propagação. Hackers lançaram um ransomware¹ no sistema computadorizado do Hospital Universitário de Brno, na República Tcheca, atingindo a estrutura médica responsável pela testagem e tratamento da COVID-19. Com a fragilidade dos sistemas de saúde, grupos criminosos realizaram cyber-ataques ao longo dos três meses por todo globo contra departamentos nacionais, roubaram dados, cometeram fraudes e invadiram contas pessoais a fim de venderem informações obtidas ilegalmente sobre a pandemia na internet (GLOBAL INITIATIVE AGAINST TRANSNATIONAL ORGANIZED CRIME, 2020b).

Em suma, aos poucos o crime organizado vai encontrando a sua forma que melhor privilegia seus membros em meio ao fechamento dos meios físicos. A quarentena e as medidas de distanciamento são um desafio aos estudos transnacionais. A interação que envolve instituições ilegais a partir do momento em que tudo é obrigado a ser interrompido impõe desafios a cooperações no exterior. O transnacionalismo envolvendo dois países ou mais por meio de organizações variadas sofrem diversas implicações. O mesmo questionamento deve ser feito em relação a como as fronteiras nacionais vem a impactar as ações de atores multinacionais, assim como qualquer que seja a manifestação de soberania nacional (HUNTINGTON, 1979).

Entretanto, é importante ressaltar que toda atividade global pôde ser freada uma vez que se tratava de organizações legais pautadas em um pensamento previsto em constituições e normas aceitas por Estados e indivíduos. No caso dos grupos criminosos, a atuação é marginal às normas e ainda mais à ordem criada por governos. Por mais que o transnacionalismo esteja em um período crítico (WILLETS, 2001), o debate sobre a reformulação do crime organizado transnacional amplia-se conforme certas atividades ilegais são amplamente afetadas pela falta de recursos (desde ingredientes para produção de drogas a pessoas dispostas a atravessar fronteiras nacionais), assim como a forma que outras destas irão prevalecer – principalmente uma vez que os Estados estão operando em sua capacidade máxima e envoltos em uma crise de saúde pública.

 

¹ Um ransomware se trata de um ataque ao sistema operacional de um determinado usuário de computador. Normalmente, ele não poderá ter acesso aos seus próprios dados ou o controle de sua conta pessoal. Consequentemente, o hacker exige que a pessoa afetada tenha acesso novamente mediante resgate ou pagamento ao infrator (GLOBAL INITIATIVE AGAINST TRANSNATIONAL ORGANIZED CRIME, 2020b).

 

REFERÊNCIAS:

ALBANESE, Jay S. The causes of organized crime: do criminals organize around opportunities for crime or do criminal opportunities create new offenders?. Journal of Contemporary Criminal Justice, vol. 16, n. 4, p. 409-423. Nov. 2000.

BEHAR, Richard. Organized Crime In The Time Of Corona. Forbes. 27 de março de 2020. Coronavírus. Disponível em: https://www.forbes.com/sites/richardbehar/2020/03/27/organized-crime-in-the-time-of-corona/#2a571b0e150d. Acesso em: 18/04/2020.

BLOIS, Caio. Tráfico impõe toque de recolher em favelas do Rio em meio a crise do corona. Uol. 24 de março de 2020. Coronavírus. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2020/03/24/coronavirus-faccoes-do-trafico-impoem-toque-de-recolher-em-favelas-do-rj.htm. Acesso em: 18/04/2020.

BROOKS, Tom. Naval intelligence and the mafia in World War II. NSISA History Project. Aug. 2017. Disponível em: http://ncisahistory.org/wp-content/uploads/2017/08/Naval-Intelligence-and-the-Mafia-in-World-War-II.pdf. Acesso em: 16/04/2020.

EUROPEAN UNION. Europol. Rise of fake ‘corona cures’ revealed in global counterfeit medicine operation. 21 de março de 2020. Disponível em: https://www.europol.europa.eu/newsroom/news/rise-of-fake-%E2%80%98corona-cures%E2%80%99-revealed-in-global-counterfeit-medicine-operation. Acesso em: 18/04/2020.

GLOBAL INITIATIVE AGAINST TRANSNATIONAL ORGANIZED CRIME. A problem displaced: the smuggling of migrants through Bosnia and Herzovina. Geneva, mar. 2020a. p. 1-15. Disponível em: https://globalinitiative.net/wp-content/uploads/2020/03/Bosnia-Migration.16.03.web3_.pdf. Acesso em: 18/04/2020.

GLOBAL INITIATIVE AGAINST TRANSNATIONAL ORGANIZED CRIME. Crime and contagion: the impact of pandemic on organized crime. Geneva, mar. 2020. p. 1-18. Disponível em: https://globalinitiative.net/wp-content/uploads/2020/03/CovidPB1rev.04.04.v1.pdf. Acesso em: 18/04/2020.

GLOBAL INITIATIVE AGAINST TRANSNATIONAL ORGANIZED CRIME. Cybercrime: threats during the COVID-19 pandemic. Geneva, apr. 2020b. p. 1-19. Disponível em: https://globalinitiative.net/wp-content/uploads/2020/04/Cybercrime-Threats-during-the-Covid-19-pandemic.pdf. Acesso em: 18/04/2020.

HILL, Peter B. E. The Japanese mafia: Yakuza, Law, and the State. New York: Oxford University Press, 2006. p. 6-65.

HUNTINGTON, Samuel P. Transnational Organizations in World Politics. World Politics, v. 25, n. 3, p. 333-368, Apr. 1979. Disponível em: https://www.jstor.org/stable/pdf/2010115.pdf. Acesso em: 18/04/2020.

INTERPOL. News and Events. Operation Pangea – shining a light on pharmaceutical crime. 21 nov. 2019. Disponível em: https://www.interpol.int/News-and-Events/News/2019/Operation-Pangea-shining-a-light-on-pharmaceutical-crime. Acesso em: 18/04/2020.

KARSTEDT, Susanne. Organizing crime: the state as agent. In: PAOLI, Letizia (ed). The Oxford Handbook of Organized Crime. New York: Oxford University Press, 2014. p. 303-321.

MACEDO, Fausto. VASSALLO, Luiz. Veja ‘Fuminho’, lugar-tenente de Marcola do PCC, preso em Moçambique. O Estado de São Paulo. 13 de abril de 2020. Política. Disponível em: https://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/veja-fuminho-lugar-tenente-de-marcola-do-pcc-preso-em-mocambique/. Acesso em: 16/04/2020.

MAXMEN, Amy. How poorer countries are scrambling to prevent a coronavirus disaster. Nature. Vol. 580. p. 173-174. Apr. 2020. Disponível em: https://www.nature.com/articles/d41586-020-00983-9. Acesso em: 22/04/2020.

POLÍCIA INVESTIGA reabertura de comércio a mando de milícia no Rio. Uol. 17 de abril de 2020. Coronavírus. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2020/04/17/policia-investiga-reabertura-de-comercio-a-mando-de-milicia-no-rio.htm. Acesso em: 18/04/2020.

STARGARDTER, Gabriel. MUCARI, Manuel. Líder do PCC, “Fuminho” é preso em Moçambique e indica expansão do grupo pelo mundo. Uol. 14 de abril de 2020. Economia. Disponível em: https://economia.uol.com.br/noticias/reuters/2020/04/14/lider-do-pcc-fuminho-e-preso-em-mocambique-e-indica-expansao-do-grupo-pelo-mundo.htm. Acesso em: 16/04/2020.

WILLETS, Peter. Transnational Actors and International Organizations in Global Politics. In: BAYLIS, John B. SMITH, S (eds.). The Globalization of World Politics. 2. Ed. New York: Oxford University Press, 2001. p. 356-383.

 

Créditos da imagem: Murph CC.