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Exercendo uma curiosidade feminista sobre as desigualdades de gênero no mercado de trabalho: lutas históricas e desafios atuais

Maria Eduarda Kobayashi Rossi*

Segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT), a desigualdade salarial entre homens e mulheres é um problema enfrentado em todo o mundo[1]. Nos Estados Unidos, a média da diferença salarial é de 18%, já nos países da União Europeia, esse número é de 12,7%. Na América Latina, a desigualdade salarial também persiste, e no Brasil, em especial, os dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística  (IBGE, 2022) mostram que as brasileiras recebem, em média, 78% do salário dos homens, representando uma diferença de 22%. Neste primeiro de maio, em que se comemora o Dia do Trabalhador, trazemos uma contextualização acerca da entrada das mulheres no mercado de trabalho e alguns dos desafios atuais. Ademais, ao praticar uma curiosidade feminista[2], influenciada por Cynthia Enloe (2004, 2014), buscamos olhar criticamente para a condição das mulheres no ambiente laboral, e as dinâmicas de poder que permitem a perpetuação da desigualdade até o presente.

O Dia do Trabalhador é uma data comemorada internacionalmente, e a história de sua criação está relacionada ao início uma grande greve nacional, iniciada no dia 1 de maio de 1886 em Chicago, nos Estados Unidos da América (EUA), visando promover a redução jornada de trabalho  para oito horas diárias. Os protestos, organizados por sindicatos e estimuladas por anarquistas, foram reprimidos pela polícia. Além da disseminação da violência direta sobre a população, destaca-se, também, a condenação de cinco sindicalistas anarquistas à forca. Um deles se suicidou na prisão, e os demais foram enforcados em 11 de novembro de 1887, cuja data ficou conhecida como “Revolta de Haymarket”.

Exercendo uma curiosidade feminista, cabe-nos questionar: onde estão as mulheres nessa história? Embora seus nomes não ganhem destaque na origem da data, é importante lembrar que as mulheres desempenharam uma função ativa e essencial nas lutas sociais (em especial, no movimento antiescravista) dos EUA, cuja participação foi fundamental para organizar campanhas pela garantia de direitos às mulheres anos mais tarde (DAVIS, 2004). Como destacado por Angela Davis: “[n]o final da década de 1820, muito antes da Convenção de Seneca Falls, celebrada em 1848, as mulheres trabalhadoras começaram a organizar manifestações e greves protestando ativamente contra a dupla opressão que sofriam como mulheres e como trabalhadoras industriais” (DAVIS, 2004, p. 63, tradução nossa). No Brasil, as mulheres exerceram um papel importante no movimento negro (GONZÁLEZ, 2021), bem como na luta contra a ditadura cívico-militar. Segundo Célia Pinta (2003), os grupos feministas cresceram nas décadas de 1970 e 1980, e neles participavam principalmente mulheres de classe média e operárias. A criação de tais grupos, principalmente nas capitais, foi impulsionada por mulheres intelectuais de esquerda.

Ao olhar para a evolução do movimento feminista, a socióloga argentina Dora Barrancos (2022) lembra-nos que as hierarquias de gênero, cujas consequências são manifestas, dentre muitas outras formas, na desigualdade de salários entre homens e mulheres, foi construída e reforçada historicamente, baseada na criação de papéis de gênero. Como destacado por Connell (2015, p. 32), a partir da noção da diferença entre os dois sexos biológicos são criadas imagens de gênero e, em consequência, padrões sociais que promovem a subalternização de determinados corpos, influenciando, inclusive, as escolhas profissionais[3]. As mulheres são associadas à passividade e ao amor, sendo-lhes delegadas tarefas domésticas e de cuidado, bem como empregos menos valorizados e o trabalho não remunerado no lar. Em contrapartida, aos homens são associados à imagem de força, agressividade e responsabilidade e, em consequência, são delegadas tarefas relacionadas à arena pública, à tomada de decisão, defesa e aos cargos de liderança.

No período da Revolução Francesa, as mulheres nem sequer eram consideradas cidadãs plenas e, por isso, não possuíam direitos civis e políticos ⏤ fato que incentivou a criação dos movimentos sufragistas. Há duas décadas, a grande maioria das mulheres não podia ingressar no mercado de trabalho exercendo tarefas que não fossem de cuidado e serviços gerais, como a limpeza dos espaços. Com o passar do tempo, houve um crescimento histórico do número de mulheres no mercado de trabalho e, inclusive, ocupando  altos cargos de liderança, entretanto a lacuna salarial persiste, principalmente pelo fato de que as mulheres continuam ser super-representadas em empregos vulneráveis[4].

A noção de “empregos vulneráveis” engloba: trabalhos não remunerados (como os trabalhos domésticos e de cuidado, que discutiremos a seguir), trabalhos com menos horas, trabalhos pouco remunerados e trabalho sem proteção social. Silvia Federici (2019a, 2019b), uma das principais referências do feminismo marxista, denuncia em suas obras como as mulheres estão na base de sustentação de um sistema capitalista desigual, cruel e violento, o qual se aproveitou (e se aproveita) do trabalho doméstico não pago para a sua expansão. Esse tipo de trabalho é entendido, pela autora, como “a violência mais sutil que o capitalismo já perpetuou contra qualquer setor da classe trabalhadora” (FEDERICI, 2019b, p. 12). A violência é dita sutil porque o sistema capitalista se aproveitou das normas e papéis de gênero, presentes no imaginário da sociedade, para reafirmar a ideia de que tais tarefas não representam um trabalho, mas apenas um ato de amor natural à feminilidade.

Um exemplo atual da sobrecarga das mulheres em muitas horas de trabalho ficou evidente durante a pandemia de covid-19, em que coube a elas exercer, para além de seus trabalhos, as tarefas de cuidado, tendo sua jornada de trabalho ampliada exponencialmente. Tal fato levou, no espaço científico, à diminuição da produção acadêmica das mulheres, em especial àquelas que são mães, isso fica evidente na pesquisa Parent in science. Em adição, de acordo com os dados da CEPAL (2021), as mulheres ocupavam as posições de maior risco de exposição e contaminação, como no comércio e na área da saúde. O  documento também mostra que as mulheres exerceram o triplo do trabalho não remunerado em comparação com os homens nos países da América Latina.

Importa destacar, ainda, que a desigualdade salarial está entrelaçada com outros marcadores sociais, tais como a classe e a raça. Conforme o IBGE (2022), a porcentagem de pessoas negras ocupando cargos de gestão é de 29,5%, enquanto a população branca ocupa 69%. Isso se deve à desigualdade de oportunidades alinhada a um problema estrutural: o racismo. Carolina Maria de Jesus é um exemplo de mulher trabalhadora e periférica que sentiu, em seu cotidiano, o peso da desigualdade social que permanece como um problema na sociedade brasileira. No livro “Quarto de despejo: diário de uma favelada”, Carolina Maria de Jesus (1992) conta as dificuldades sentidas em seu cotidiano como mãe, catadora de lixo e moradora da favela do Canindé, na cidade de São Paulo, denunciando problemas sociais como a fome e a inação do Estado em garantir, principalmente, os direitos econômicos, sociais e culturais dessa população. Antes de mudar-se para São Paulo, a autora viveu em Minas Gerais e, assim como sua mãe, foi empregada doméstica. Vale ressaltar que a literatura brasileira está repleta de exemplos, evidentes, em especial, na poesia como forma sensível de tocar a experiência humana, da subjugação das mulheres negras, seja no mercado de trabalho público ou no âmbito doméstico.

Nos estudos de Segurança Internacional com foco nos indivíduos trabalha-se a questão da segurança humana, a qual está baseada na ideia de que os seres humanos devem ser livres do medo (freedom from fear), ou seja, das ameaças que possam ferir a sua integridade, e das necessidades (freedom from want) (DUFFIELD, 2005). As questões de segurança e intervenções internacionais, principalmente após os anos 2000, passaram a carregar um forte nexo com as questões de desenvolvimento, em perspectiva ampliada, na qual se defende a busca pela expansão das liberdades reais que as pessoas desfrutam (SEN, 2001), de modo a proteger as pessoas da violência direta e oferecendo-as oportunidades para poderem desenvolver suas capacidades e viverem a vida que almejam viver (ou seja, conforme os princípios que são caros a cada pessoa). Diante destas questões, cabe-nos destacar, tendo exercido uma curiosidade feminista, que a segurança humana, atualmente, não é uma condição desfrutada por todas as pessoas em todo o mundo, principalmente pelas mulheres racializadas e migrantes nas periferias tanto do Sul quanto do Norte global, que vivem em uma situação estrutural marcada pela insegurança.

Ainda que a Organização das Nações Unidas (ONU) tenha proposto, dentro do escopo da Agenda 2030, a igualdade de gênero enquanto um dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável que devem ser garantidos pelos Estados às comunidades, os dados apresentados ao longo do texto são uma evidência de que a desigualdade persiste. Tendo isso em mente, esperamos, por fim, que este Dia do Trabalhador seja uma data para tomar consciência de que ainda há muito a fazer para que a igualdade de gênero, em especial no mercado de trabalho, saia da teoria e se concretize, na prática, para todas as pessoas do mundo. O alcance deste objetivo, porém, não é tarefa fácil, pois pressupõe a mudança das relações de poder que estão na base de funcionamento da dinâmica internacional capitalista, como evidenciado por Federici.

*Maria Eduarda Kobayashi Rossi é graduanda em Relações Internacionais pela UNESP. Pesquisadora do Iaras- Núcleo de Estudos de Gênero do Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional (Iaras-GEDES). Pesquisadora bolsista FAPESP (processos 2021/04480-3 e 2022/01182-4).

Imagem: A lacuna salarial de gênero no mundo do trabalho. Por: Organização Internacional do Trabalho (OIT).

 

Notas:

[1] Para mais informações sobre a diferença de gênero no mercado de trabalho, sugerimos a consulta aos dados organizados pela OIT, os quais estão disponíveis no link: <https://www.ilo.org/infostories/en-GB/Stories/Employment/barriers-women#global-gap>. Acesso em 25 de abril de 2023.

[2] O exercício da curiosidade feminista, segundo Enloe, busca analisar a realidade social e, questionar as normas naturalizadas, percebendo as dinâmicas de poder que promovem a desigualdade de gênero.

[3] No que se refere a este tema, em Portugal, lugar de onde a autora escreve, pesquisadores do Centro de Estudos Sociais (CES), em conjunto com diversas instituições parceiras, estão desenvolvendo o projeto “Igual-Pro: as profissões não têm gênero”, que busca questionar e desconstruir os estereótipos de gênero relacionados às distintas profissões no mercado de trabalho e áreas de estudo. Os avanços do projeto podem ser acompanhados pelo site (https://projetos.cite.gov.pt/pt/web/igualpro/pagina-inicial), e os próximos relatórios serão divulgados no em breve. Tatiana Moura e Tiago Rolino, que estão a frente dessas atividades, são boas referências para aqueles(as) que se interessam pelos estudos de gênero e masculinidades.

[4] Nosso entendimento acerca da definição de “empregos vulneráveis” segue os princípios da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Mais informações podem ser encontradas em: <https://www.ilo.org/infostories/en-GB/Stories/Employment/barriers-women#unemployed-vulnerable/vulnerable-employment>. Acesso em 25 de abril de 2023.

 

Referências

BARRANCOS, Dora. Historia mínima del feminismo en América Latina, México, COLMEX, 2020.

DAVIS, Angela. Mulheres, raça e classe. Boitempo Editorial, 2016.

DE JESUS, Carolina Maria. Quarto de despejo: diário de uma favelada. Editora Ática. 10 edição. 1992. Disponível em: <https://dpid.cidadaopg.sp.gov.br/pde/arquivos/1623677495235~Quarto%20de%20Despejo%20-%20Maria%20Carolina%20de%20Jesus.pdf.pdf>. Acesso em 30 de abril de 2023.

CEPAL. Brechas de género en el mercado laboral y los efectos de la crisis sanitaria en la autonomía económica de las mujeres. 2021. Disponível em: <https://www.cepal.org/sites/default/files/presentations/presentacion_aguezmes_180121.pdf>. Acesso em 30 de abril de 2023.

CONNELL, Raewyn. Gênero: uma perspectiva global. nVersos Editora. 2015.

DUFFIELD. Human Security: Linking Development and Security in an Age of Terror, 2005. Disponível em: <http://members.chello.at/intpol_gkc4/Duffield%202005b.pdf>. Acesso em 30 de abril de 2023.

ENLOE, Cynthia. Bananas, beaches and bases: Making feminist sense of international politics. University of California Press, 2014.

ENLOE, Cynthia. The curious feminist: Searching for women in a new age of empire. University of California Press, 2004.

FEDERICI, Silvia. Calibã e a bruxa: mulheres, corpos e acumulação primitiva. Editora Elefante: Coletivo Sycorax, 2019b. Disponível em: http://coletivosycorax.org/wp-content/uploads/2019/09/CALIBA_E_A_BRUXA_WEB-1.pdf

FEDERICI, Silvia. O ponto zero da revolução: trabalho doméstico, reprodução e luta feminista. Editora Elefante: Coletivo Sycorax, 2019a. Disponível em: http://coletivosycorax.org/wp-content/uploads/2019/09/Opontozerodarevolucao_WEB.pdf

GONZÁLEZ, Lélia. Por um feminismo afro-latino-americano. Zahar Editora. 2020.

IBGE, Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Desigualdade social por cor ou raça no Brasil. 2022. Disponível em: <https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101972_informativo.pdf>. Acesso em 30 de abril de 2023.

IBGE, Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Estatísticas de Gênero Indicadores sociais das mulheres no Brasil. 2021. Disponível em: <https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101784_informativo.pdf>.  Acesso em 30 de abril de 2023.

OIT, Organização Internacional do Trabalho. InfoStories. The gender gap in employment: What’s holding women back?. 2022. Disponível em: <https://www.ilo.org/infostories/en-GB/Stories/Employment/barriers-women#intro>.

PINTO, Célia. Uma história do feminismo no Brasil. Fundação Perseu Albramo. 2003. pp. 40-66.

SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. Editora Companhia das letras, 2018.

A relação entre direitos humanos e segurança humana

 

Giovanna Ayres Arantes de Paiva*

Kimberly Alves Digolin **

 

No último dia 10 de dezembro celebramos o Dia Internacional dos Direitos Humanos. A data foi estabelecida pela Organização das Nações Unidas (ONU) em 1950, em referência à Declaração Universal dos Direitos Humanos, assinada dois anos antes. Mesmo após sete décadas, ainda enfrentamos grandes desafios relacionados à defesa dos direitos humanos em âmbito internacional. Como exemplo, podemos citar o tráfico de pessoas, o trabalho escravo, a desigualdade de gênero, a prisão e perseguição de ativistas, o assassinato e assédio de jornalistas, o desrespeito e perseguição a minorias religiosas.

Por vezes, tais questões são abordadas sob o viés da segurança, sobretudo por meio da chamada segurança humana, cujo objeto referente é o próprio indivíduo e suas necessidades. Entretanto, é importante compreender o arcabouço dos direitos humanos e sua associação com a segurança de modo crítico, questionando sua frequente instrumentalização em prol de interesses individuais por alguns atores internacionais. Para isso, sugerimos uma análise que considere a relação entre direitos humanos e segurança humana, destacando a forma como se complementam, mas também os possíveis desafios e críticas a esses paralelos.

Embora a noção de que os seres humanos possuem direitos inalienáveis já existisse há bastante tempo, o esforço de sistematização e reconhecimento internacional desses direitos ocorreu apenas no século XX, culminando na assinatura de tratados e também na maior incorporação dessa temática nas agendas de política externa dos Estados. A percepção de urgência para se criar um regime internacional sobre os direitos humanos ganhou escala após a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), quando o Holocausto e o posterior julgamento da Alemanha nazista mobilizaram as potências vencedoras em torno da proteção humana no Ocidente. Soma-se a isso o acentuado número de refugiados e apátridas observado nesse período. De modo geral, esses eventos deixaram latente que a responsabilidade de garantir tais direitos aos indivíduos não poderia ser apenas do Estado, pois eram palpáveis os casos de falha e violação. Era necessário um arcabouço internacional que estabelecesse normas e parâmetros gerais a serem seguidos.

A Declaração Universal dos Direitos Humanos, portanto, é considerada esse pontapé inicial na formalização de um regime internacional sobre a temática, ainda que não tivesse força de lei. A partir dela podemos notar uma sequência de pactos e convenções no âmbito dos direitos humanos, como a Convenção relativa ao Estatuto dos Refugiados (1951), a Convenção Internacional para a Eliminação de Todas as Formas de Violência contra a Mulher (1979), a Convenção sobre os Direitos da Criança (1989), entre outras.

Outro resultado desse movimento de caracterização do indivíduo como um ator do sistema internacional é uma mudança – ou talvez o mais adequado seja dizer uma ampliação – do foco nos debates sobre política internacional e, mais especificamente, sobre segurança internacional. Diferente das análises centradas apenas na figura do Estado, sobretudo a partir dos anos 1990 ganha força uma linha de pensamento que vai centrar sua análise na figura do indivíduo. Esse movimento foi reflexo de uma ampliação das dimensões da segurança, ocorrida ainda durante a década de 1980. Ou seja, deixa de se limitar ao âmbito militar de sobrevivência do Estado em um ambiente anárquico, e passa a incorporar aspectos de segurança societal e até ambiental (BUZAN; WÆVER; WILDE, 1998).

O conceito de “segurança humana” – que aparece pela primeira vez em um relatório do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) em 1994 – surge então em um contexto de busca por maior diversidade de atores na segurança e tem o seu nascimento em um programa das Nações Unidas que visava estabelecer um tipo específico de desenvolvimento humano após décadas de Guerra Fria e em meio a instabilidades e conflitos. Dessa forma, mais que um conceito, a segurança humana foi formulada como um guia para ações de segurança, sobretudo, nos países em desenvolvimento.

Em uma abordagem ampla, a noção de segurança humana envolve a garantia de que o indivíduo desfrute de todos os requisitos básicos para a dignidade e o desenvolvimento humano. Quando ele desfruta de segurança econômica, política, pessoal, alimentar, comunitária, ambiental e de saúde é possível afirmar que a segurança humana desse indivíduo está garantida (PAIVA, 2018).

Por um lado, trata-se de um conceito importante para se compreender os direitos humanos, porque nos ajuda a inserir problematizações específicas, principalmente no que se refere à discussão sobre oportunidades e bem-estar em uma perspectiva mais holística, que compreenda as várias faces do desenvolvimento humano. O fato de colocar o foco no indivíduo como objeto da segurança também é relevante, pois centra o ser humano como um ator significativo nas Relações Internacionais.

Por outro lado, a segurança humana é alvo de diversas críticas. Pelo fato de o conceito ser muito amplo e vago, o olhar para as particularidades humanas é prejudicado (PARIS, 2001). Apesar de exaltar o “humano”, não se coloca tanta ênfase em abordagens que seriam essenciais para se chegar a alguma dignidade humana, estabelecer equidade e reparar injustiças históricas – como uma análise mais aprofundada envolvendo questões de raça e gênero. Outra crítica é que, ao tratar questões humanas sob a lente da segurança, abre-se espaço para que intervenções arbitrárias sejam feitas mais em nome de interesses geopolíticos e menos em nome da proteção dos direitos humanos. Além disso, muitas vezes, a garantia desses requisitos básicos para a dignidade humana envolve soluções que deveriam passar mais pelo desenvolvimento de políticas públicas (por exemplo, políticas de saúde e educação) do que pelo caminho securitário (ARMIÑO, 2007; DUFFIELD, 2006).

O século XXI tem nos mostrado que a luta por direitos humanos é incompleta se não for acompanhada da desconstrução de estruturas sociais que perpetuam as desigualdades. A pandemia de Covid-19 explicitou e aprofundou o abismo entre ricos e pobres, principalmente na América Latina. A gestão da pandemia deixa evidente as desigualdades entre os países, em que os mais pobres ainda estão longe de ter uma cobertura vacinal ampla. Além disso, os impactos das mudanças climáticas – outro assunto urgente que requer ação internacional – incidem mais fortemente em comunidades marginalizadas. Tudo isso revela um falso humanismo e a normalização da injustiça social. Apesar de apontar para os diferentes aspectos que afetam a vida humana (como os níveis social, ambiental e econômico), a proposta de segurança humana não parece ter esse potencial de questionar estruturas, tampouco propor a emancipação dos indivíduos como agentes de mudança.

A noção de direitos humanos traz o desafio de pensar a coletividade sem apagar as diferentes necessidades que cada grupo humano possui, isto é, sem diluir as particularidades no “universal” ou no “humano”, ressaltando exclusões e desigualdades históricas que ainda não foram reparadas. Segundo Boaventura de Sousa Santos, “temos o direito a ser iguais quando a nossa diferença nos inferioriza. Mas temos o direito a ser diferentes quando a nossa igualdade nos descaracteriza. Daí a necessidade de uma igualdade que reconheça as diferenças e de uma diferença que não produza, alimente ou reproduza as desigualdades” (2003, p. 56).

Analisar a temática de direitos humanos, portanto, deve envolver uma estratégia de longo prazo para a prevenção do conflito e manutenção da paz, incluindo um olhar mais multidimensional sobre o que significa igualdade. Em suma, ao invés de considerar igualdade como um apagamento das diferenças, esse olhar crítico sobre os direitos humanos e os diversos níveis de segurança nos permite compreender que o problema em si não são as diferenças, mas sim as desigualdades. O problema está na instrumentalização dessas diferenças – de gênero, raciais ou culturais – para legitimar que algumas pessoas tenham menos acesso a determinadas oportunidades e direitos.

Esse olhar mais abrangente sobre o que é igualdade nos permite questionar se o conjunto de normas, convenções e mecanismos internacionais sobre direitos humanos tem alcançado seu papel transformador na política internacional ou se tem se resumido a uma interpretação retórica para legitimar interesses particulares. Ou seja, funciona apenas como uma justificativa retórica para legitimar eventuais ações por parte, especialmente, das grandes potências internacionais. Nesse sentido, existem diversas críticas a respeito desses documentos, apontando que eles compõem apenas um regime de “soft law”. Isto é, que funcionam para guiar e monitorar, mas não para garantir que essas normas sejam cumpridas, ou penalizar de modo efetivo as eventuais violações que possam ocorrer com todos os povos (REIS, 2006).

A partir de um olhar mais crítico sobre esse regime internacional dos direitos humanos, em conjunto com a noção de segurança humana e uma problematização mais profunda sobre igualdade, é possível não apenas uma análise mais abrangente sobre o processo de violência, mas também a elaboração de políticas e práticas mais eficientes no combate a esses diversos tipos de desigualdades que, muitas vezes, não passam necessariamente pelo campo da segurança. Especialmente quando consideramos que as últimas décadas vêm apresentando um movimento de maior complexidade nos conflitos internacionais e também de maior impacto sobre a população civil, esses debates se tornam cada vez mais latentes. É necessário levar em consideração essas reflexões sobre segurança e direitos humanos para que os próximos aniversários da Declaração Universal dos Direitos Humanos não sejam apenas simbólicos, mas sim reflexos de mudanças e avanços.

Giovanna Ayres Arantes de Paiva é doutora em Relações Internacionais pelo PPGRI San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP, PUC-SP). Pesquisadora do Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional (GEDES) e da Rede de Pesquisa em Paz, Conflitos e Estudos Críticos de Segurança (PCECS). E-mail: giovanna.aap@gmail.com.

Kimberly Alves Digolin é professora no curso de Relações Internacionais da Universidade Paulista. Mestre em Relações Internacionais pelo PPGRI San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP, PUC-SP). Pesquisadora do Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional (GEDES). E-mail: kimberly.alves.digolin@hotmail.com.

Imagem: Humanity wall. Por: Matteo Paganelli/Unsplash.

Referências bibliográficas:

ARMIÑO, Karlos. Pérez de. El concepto y el uso de la seguridade humana: análisis crítico de sus potencialidades y riesgos. Revista Cidob d’Afers Internacionals, n.76, p.59-77, dez. 2006-jan. 2007.

BUZAN; WÆVER; WILDE. Security: A New Framework for Analysis. Colorado: Lynne Rinner Publishers Inc., 1998.

DUFFIELD, Mark. Human Security: Linking Development and Security in an Age of Terror. In: KLINGEBIEL, S. (Ed.). New Interfaces between Security and Development: Changing Concepts and Approaches. Bonn: German Development Institute, 2006.

PAIVA, Giovanna A. A. Segurança Humana. In. SAINT-PIERRE, Héctor Luis; VITELLI, Marina Gisela (Orgs.). Dicionário de Segurança e Defesa. São Paulo: Editora Unesp, 2018.

PARIS, Roland. Human Security: Paradigm Shift or Hot Air? International Security, v.26, n.2, p.87-102, outono 2001.

REIS, Rossana Rocha. Os direitos humanos e a política internacional. Revista Sociol. Polít., Curitiba, v. 27, 2006.

SANTOS, Boaventura de Sousa. Reconhecer para libertar: os caminhos do cosmopolitanismo multicultural. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.