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Um hegemon ultrapassado? Os EUA no conflito em Gaza 2023/2024 e os aspectos sistêmicos de poder no Oriente Médio

Rodrigo Augusto Duarte Amaral* 

Se compreendermos os EUA como ator hegemônico do sistema internacional desde o século XX, devemos conceber suas ações internacionais em direção à manutenção da sua posição privilegiada na ordem internacional. Suas ações intrusivas afetam os rumos do conflito no Oriente Médio (AMARAL, 2022).

Desde o fim da Segunda Guerra Mundial, os EUA desenvolveram um papel dominante no Oriente Médio motivados pela presença de reservas de petróleo e um aliado fundamental do Estado de Israel. A região se tornou espaço vital para o desenvolvimento de uma nova zona de influência, cuja contenção soviética orientou a base estratégica do país até 1990. Foi no pós-Guerra Fria que a “promoção de democracia” e desenvolvimento de condições para o pleno funcionamento do livre-mercado, passou a dominar o discurso estratégico dos EUA para o Oriente Médio. Primeiro na administração Clinton, que enfatizou a reforma econômica como prelúdio para a reforma política. Depois, sob a administração de G. W. Bush, quando após o 11 de setembro de 2001, a democratização no Oriente Médio emergiu como um objetivo explícito da política dos EUA com ênfase sem precedentes. (MARKAKIS, 2016). A necessidade de democratizar o Iraque, conter o islamismo político “antidemocrático” iraniano, valorizar a democracia Israelense, invadir, reconstruir e democratizar o Iraque e o Afeganistão, entre outras expressões.

No contexto contemporâneo, apoiar incondicionalmente Israel contra o Hamas apenas reforça a tradicional postura de sustentar politicamente e militarmente Israel a todo custo. Nas palavras do presidente Joe Biden (2023a):

“Discutimos [Biden e Netanyahu] como democracias, como Israel e os Estados Unidos são mais fortes e mais seguras quando agimos de acordo com o Estado de direito […] Nós garantiremos que os judeus e o estado democrático de Israel possa se defender hoje, amanhã, conforme sempre garantimos” (BIDEN, 2023a, tradução nossa).

Trata-se de uma postura intrusiva constante na história dos EUA no Oriente Médio. Conduzir, ou ao menos afetar o curso dos conflitos regionais, como fez indiretamente na Guerra do Afeganistão em 1980, na Guerra Irã-Iraque em 1980, na contenção israelense as intifadas palestinas desde 1990, na Guerra da Síria em 2014 e diretamente na Guerra do Golfo 1990, na Guerra do Afeganistão de 2001 e do Iraque 2003 e no combate ao Estado Islâmico desde 2015.

No entanto, se fazer presente militarmente, ou fornecer armas, não garante a segurança regional do Oriente Médio. Na verdade, o que assistimos é o oposto. A potencialização da conflitualidade. E a percepção global dos EUA como ator intervencionista em prejuízo a ordem regional é cada vez mais evidente.

Em mais de seis meses de conflito, não se trata apenas de considerar os EUA inábeis enquanto ator mediador para soluções pacíficas para Gaza, mas aquele que endossa o mesmo, enfatizando seu papel histórico de aliado e inabalável apoiador do sionismo israelense. Nem mesmo as mais de 33 mil vítimas civis (13 mil crianças) palestinas dos milhares de bombardeios e agressões militares israelenses foram capazes de alterar o posicionamento norte-americano. Único Estado a apoiar sem exceções os atentados israelenses em Gaza. Ainda como maior potência da ordem internacional, os EUA são o baluarte que asseguram as ações militares irrestritas de Israel em Gaza, aceitando bombardeamentos indiscriminados, evitando referenciar o direito internacional humanitário na sua justificativa da guerra, desconsiderando as vítimas civis palestinas, financiando diretamente Israel e participando indiretamente do conflito ao atacar alvos aliados ao Hamas, como no caso dos Houthis. Isso evidencia a responsabilidade norte-americana na permanência do conflito. Por isso, há quem questione a hegemonia norte-americana no Oriente Médio.

Dentro dos EUA, a insatisfação popular quanto à postura dos EUA diante da guerra em Gaza é evidente. Segundo pesquisa conduzida pelo PewResearch Center, ainda que exista prevalência no apoio popular norte-americano à Israel contra o Hamas, metade da população entende que a forma como Israel conduz a guerra é inaceitável. Sobre a influência dos EUA na guerra, há opiniões divergentes. Metade dos entrevistados são favoráveis (36%) e opõem-se (34%) ao envio de ajuda militar a Israel (o resto não tem uma opinião clara). Mas a opinião pública inclina-se mais fortemente a favor da prestação de ajuda humanitária aos civis palestinos em Gaza, com 50% a favor e apenas 19% contra. (SILVER et al., 2024). Ajuda essa que, por parte dos EUA, apenas foi ativada 150 dias após o início do conflito.

No âmbito da comunidade internacional,a China se posicionou de forma incisiva apelando por um senso comum global pelo cessar-fogo em Gaza e a escalada do conflito para outras localidades no Oriente Médio. O pronunciamento chinês veio dias após os ataques norte-americanos e britânicos contra alvos Houthis no Iêmen depois que o grupo atacou navios no Mar Vermelho. No veto dos EUA ao cessar-fogo em Gaza em fevereiro de 2024, os chineses ainda acusaram a responsabilidade dos EUA na continuidade no conflito dando sinal verde para continuidade do massacre em Gaza. É importante perceber que os atores que mais atingiram linhas diplomáticas foram atores do sul global. Com especial destaque para intermediadores regionais do Oriente Médio realizando o papel de intermediação e diálogo, como Egito, Jordânia e Catar. Países em desenvolvimento do sul global apresentando denúncias contra os crimes de guerra e humanitários perpetrados por Israel, como África do Sul e Brasil. O posicionamento brasileiro é destacado, visto a proatividade brasileira ao propor uma resolução no âmbito da sua presidência no Conselho de Segurança da ONU para o cessar-fogo imediato e o estabelecimento de corredores humanitários, vetado pelos EUA. Assim como o apoio fornecido a acusação de crime de genocídio à Israel contra a população palestina em Gaza no âmbito da Corte Internacional de Justiça. Tais manifestações diplomáticas revelam posturas plenamente opostas à fiel postura confirmativa dos EUA à Israel em Gaza.

Mesmo se abstendo da resolução do Conselho de Segurança da ONU de 24 de março de 2024 que estabeleceu um cessar-fogo provisório durante o Ramadan, os EUA não deram braço a torcer sobre o que para eles é mais importante: a condenação dos atos terroristas do Hamas[1]. No ato da abstenção, a embaixadora Linda Thomas-Greenfield afirmou: “não concordamos com todos os termos da resolução (…) alguns fatores chave foram ignorados, como nossa demanda por adicionar condenações ao Hamas”. No entanto, a reação imediata do Primeiro Ministro israelense Netanyahu foi negativa, afirmando que o ato de abstenção prejudicaria o principal objetivo contra o Hamas e a recuperação de israelenses sequestrados. Ainda tomou uma atitude diplomática, informando que não enviaria uma delegação de alto nível a Washington, DC, conforme vinha fazendo ao longo da guerra. Em resposta, O porta-voz da Casa Branca, John Kirby, disse que os EUA estavam “desapontados” com a decisão de Netanyahu. O episódio demonstra desorganização e falta de comunicação entre os dois principais aliados na guerra em Gaza.

No mínimo, este ruído exemplifica como os EUA parecem estar renunciando ao controle da situação, pressionado domesticamente por sua população e globalmente por outros membros da comunidade internacional.

Ao recapitular a presença norte-americana no Oriente Médio no século XXI, podemos dizer que os processos históricos revelam o desfavorecimento da sua condição hegemônica na região. Se o projeto dos anos 2000 se pautou na premissa de construir uma região liberal e democrática, sob a alcunha de combate ao terrorismo global, os EUA intensificaram as rivalidades regionais e impulsionaram a emergência de grupos insurgentes anti-ocidentais das suas mais variadas expressões. A década de 2010 no Oriente Médio, marcada por revoltas e revoluções que no ocidente se chamou de Primavera Árabe, se provou mais uma expressão de insatisfação da condição socioeconômica dos Estados da região, do que propriamente um levante democrático generalizado. O que se assiste na terceira década deste século é mais uma expressão manifesta de reatividade à presença ocidental histórica e seus proxies, como Israel. A reação do Hamas em 2023 à circunstância insustentável de vida em Gaza, determinada por um acordo desenhado pelos EUA em 1993 em Oslo, é um grito contra a ordem desigual e exploratória vigente naquele território.

Desde o início da segunda intifada, em setembro de 2000 até 7 de outubro de 2023, já 11 mil palestinos foram mortos, diretamente ou indiretamente por, consequência do conflito Israel-Palestina (ORCHA, 2024). Às vésperas do conflito, Gaza abrigava 2 milhões de habitantes, sendo quase 1,4 milhões de refugiados frutos da criação do estado de Israel em 1948, território altamente populoso, cuja taxa de desemprego atingia aproximadamente 47% e de insegurança alimentar 68,5% da população. Além disso, 95% da água estava imprópria para consumo humano e 80% do esgoto é despejado no mar, devido à falta de saneamento básico (DOS SANTOS, 2023). Resumindo, um espaço de extrema vulnerabilidade para o exercício da vida humana.

A insurgência de 7 de outubro restitui a insatisfação em Gaza mediante uma autodeterminação de facto palestina negada. No seu topo, indica o desastre da hegemonia norte-americana no Oriente Médio. Hegemonia esta que talvez nunca se completou, visto que os norte-americanos nunca atingiram o suposto objetivo de tornar a região em um espaço liberal-democrático nos moldes ocidentais. Ainda sim, a força dos EUA é o fator que “autoriza” Israel a agir historicamente de forma irrestrita em Gaza (e nos territórios ocupados na Cisjordânia). Portanto, afirmar categoricamente que a hegemonia norte-americana se esfacelou é equivocado. Talvez a concepção gramsciana de período de transição hegemônica (COX, 1981) seja qualificada para explicar o momentum dos EUA no sistema internacional. Há sim atores questionadores da hegemonia norte-americana: China, Rússia, Irã e outros. Todavia, além disso, e talvez mais relevante, existe dentro do próprio sistema-mundo ocidental manifestações de insatisfação quanto ao modelo capitalista-liberal conduzido pelos EUA. Expressões da inabilidade global de gerenciar a crise ambiental global, bem como as injustiças e violências na periferia do sistema, tal qual visto em Gaza.

[1] Para mais informações sobre a relação dos EUA com o Hamas, e a designação como grupo “terrorista” ver o texto: “Os EUA no conflito em Gaza 2023/2024: a preservação da relação especial com Israel”, deste mesmo autor, presente neste site.

*Rodrigo Augusto Duarte Amaral, Doutor em Relações Internacionais pelo PPGRI San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP, PUCSP), Professor de Relações Internacionais na PUCSP, membro do Grupo de Estudos sobre Conflitos Internacionais da PUCSP (GECI).

Imagem: Bandeira dos EUA e mapa do Oriente Médio. Por: Middle East Political and Economic Institute.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AMARAL, Rodrigo Augusto Duarte. Dinâmicas de poder dos EUA por um Iraque pós-Saddam: a articulação entre o governo norte-americano e as elites do poder iraquiano na década de 1990. Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP, PUCSP). 2022.

BIDEN, Joe. (2023a). USA. The White House. RemarksbyPresident Biden on the TerroristAttacks in Israel. Washington DC, USA. 10thoctober 2023. Disponível em <www.whitehouse.gov/briefing-room/speeches-remarks/2023/10/10/remarks-by-president-biden-on-the-terrorist-attacks-in-israel-2/ > Acesso em 28/03/2024.

COX, Robert. Social Forces, States and World Orders: BeyondinternationalrelationsTheory, Millennium. 10:2, 1981. Pp. 126-155.

DOS SANTOS, Isabela Agostinelli. Morte e vida palestina: a reorientação tática do colonialismo israelense na Faixa de Gaza. Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP, PUCSP). 2023.

MARKAKIS, Dionysis. US DemocracyPromotion in the Middle East: The PersuitofHegemony. London; New York: Routledge. 2016.

UNITED NATIONS OFFICE FOR THE COORDINATION OF HUMANITARIAN AFFAIRS – OCCUPIED PALESTINIAN TERRITORY (ORHA). Data on casualties. 2024. Disponível em <www.ochaopt.org/data/casualties> Acesso em 28/03/2024.

SILVER, Laura atall. Majority in U.S. Say Israel HasValidReasons for Fighting; Fewer Say the SameAbout Hamas 57% express some sympathy for bothIsraelis and Palestinians. PewResearch Center.March 21, 2024.

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