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A violência de gênero contra as populações indígenas: a outra face do desenvolvimento neoextrativista

Helena Salim de Castro*

 

Nos últimos dias, ganhou destaque nas redes sociais as denúncias de líderes indígenas Yanomami sobre o abuso e a violência sexual contra meninas e adolescentes cometidos por homens envolvidos na atividade do garimpo ilegal. O presidente do Conselho Distrital de Saúde Indígena Yanomami e Ye’kuana, Júnior Hekurari Yanomami, denunciou em sua conta no Twitter que uma menina, de 12 anos, foi violentada até a morte e outra, de quatro anos, está desaparecida após uma invasão de garimpeiros na comunidade Aracaçá, em Roraima.

A denúncia se soma a tantos outros abusos perpetrados contra a população há anos. No começo do mês de abril, foi divulgado um relatório produzido pela Hutukara Associação Yanomami sobre violações sexuais cometidas por garimpeiros contra adolescentes no ano de 2020. Além da destruição ambiental, eles deixaram um rastro de proliferação de doenças sexualmente transmissíveis. Esse cenário de violência não acomete apenas o povo Yanomami, mas muitas outras populações tradicionais e comunidades rurais pelo país. 

Os conflitos por terra não são uma novidade no Brasil. No entanto, como retrata o projeto Mapa dos Conflitos, da Agência Pública de Jornalismo Investigativo em parceria com a Comissão Pastoral da Terra (CPT), na última década houve uma acentuação das ocorrências de conflitos no campo, particularmente na Amazônia Legal. Eles ocorrem em um contexto em que são perpetradas atividades depredadoras da natureza como queimadas, desmatamentos, mineração, entre outros. Não só naquela área, mas por toda a América Latina, a concentração de terras, herança da colonização, e a adoção de um modelo de desenvolvimento neoextrativista estão por trás de muitos dos conflitos, que são, por sua vez, atravessados por elementos de gênero. 

Segundo Maristella Svampa (2019, o. 33), o neoextrativismo “pode ser caracterizado como um modelo de desenvolvimento baseado na superexploração de bens naturais […], assim como na expansão das fronteiras de exploração para territórios antes considerados improdutivos do ponto de vista do capital”. A diferença com o “extrativismo clássico” estaria no fato de que, naquele, os fundos arrecadados com a atividade extrativista e a exportação dos bens primários seriam “invertidos em políticas sociais redistributivas para combater a pobreza” (MUNOZ C., 2013, p. 120, tradução própria). Para a socióloga argentina, esse modelo foi aplicado na América Latina no início do século XXI. Os países da região, muitos governados por lideranças progressistas, aprofundaram e incentivaram uma política de desenvolvimento sustentada na exportação de bens primários – o que a autora chamou de “Consenso das Commodities” (SVAMPA, 2019). 

Após anos colhendo os lucros econômicos dessa política, a região estaria vivendo, atualmente, a terceira fase do modelo[1], denominada por Svampa (2019) como a da “exacerbação do neoextrativismo”. Essa fase, que teria se iniciado a partir de 2013-2015, é marcada pela queda dos preços das commodities. Para fazer frente a essa instabilidade econômica, os governos latino-americanos têm impulsionado ainda mais os projetos extrativistas e aprofundado a reprimarização das economias nacionais. Somam-se a esse cenário o declínio da hegemonia progressista e uma reconfiguração política na região, com a ascensão de governos conservadores e alinhados à direita. No Brasil, essa mudança política resultou, dentre outras perdas de direitos, no desmantelamento das instituições responsáveis pela fiscalização das áreas ambientais e na diminuição dos recursos e esforços para o enfrentamento da violência no campo

Tais processos se refletem no aumento dos conflitos socioterritoriais e no crescimento da violência estatal e paraestatal, a qual é dirigida, muitas vezes, contra os corpos das mulheres e outros sujeitos feminizados. Além de agressões físicas e lesões corporais, as mulheres, nesses contextos de conflitos no campo, são vítimas de assédio moral e violação sexual, principalmente quilombolas e dos povos originários. O histórico de colonização e exploração dos territórios, corpos e subjetividades de indígenas e afrodescendentes estrutura a violência contra as mulheres latino-americanas. Elas são duplamente subjugadas – por preconceitos de gênero e raça/etnia – e, com isso, consideradas menos humanas, inferiores diante da imagem do homem branco e ocidental, apresentado como o ser racional e superior. A violência sobre essas mulheres, principalmente a de cunho sexual, é, portanto, invisibilizada em um contexto de masculinização do território e justificada como prática estruturante de um modelo de desenvolvimento patriarcal e liberal. 

Svampa (2019) chama atenção para a histórica relação entre atividades extrativistas, masculinização dos territórios e reforço do patriarcado. Em um cenário em que há uma concentração da população masculina, atividades como a prostituição e o tráfico de mulheres são concebidas como naturais, invés de inseridas em um contexto de problemas sociais e econômicos. Ademais, há reforço de um ambiente de desigualdade de gênero, marcado pela não valorização do trabalho doméstico, assimetrias salariais e o fortalecimento do que seria considerado a atribuição das mulheres, vistas como cuidadoras do lar (SVAMPA, 2019). 

No intuito de expandir as fronteiras do extrativismo, a violação sobre os corpos das mulheres também adquire uma função instrumental. Além das mortes diretas e a transmissão de doenças, os abusos e as violações podem gerar rupturas no tecido comunitário, com o enfraquecimento do papel ancestral das mulheres, e o abandono das terras. A comunidade Aracaçá, por exemplo, foi queimada após as denúncias do estupro e da morte da menina de 12 anos. De acordo com lideranças indígenas, é uma tradição dessa população abandonar o território após a morte de alguém. No entanto, até o momento não se tem confirmação sobre as causas do incêndio e para onde foram e se estão seguras as mais de 20 pessoas que viviam na comunidade. 

O terror propagado pela presença e as ações dos garimpeiros nesses territórios gera o deslocamento forçado dos povos. O abandono das terras abre espaço, por sua vez, para a exploração realizada pelo capital nacional e transnacional em nome do ideal de desenvolvimento moderno-liberal – no qual o desenvolvimento é concebido como um processo linear em busca do crescimento econômico. A violência sobre os corpos das mulheres adquire, portanto, amplos significados no contexto dos conflitos socioterritoriais. Não é uma mera consequência de um cenário de disputas. Sob uma lógica patriarcal e colonial a respeito dos corpos e das subjetividades de alguns atores, as violações se constituem como práticas estruturantes do modelo de desenvolvimento neoextrativista e de uma ordem social patriarcal. Como resume Hernández Castillo (2017, p. 36, tradução própria), a violação dos territórios dos povos indígenas e campesinos produz “deslocamentos que deixam suas terras ‘livres’ para o capital. Nessa investida de violência e desapropriação, os corpos das mulheres têm se convertido também em territórios para ser invadidos e violados”. 

* Helena Salim de Castro é doutora e mestre em Relações Internacionais pelo Programa de Pós-Graduação San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP, PUC-SP). Pesquisadora do IARAS – Núcleo de Estudos de Gênero do Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional (GEDES-UNESP); e do Núcleo de Estudos Transnacional de Segurança (NETS – PUC-SP).

Imagem: Garimpo ilegal no Pará. Por: Ibama.

[1] A primeira fase compreende o período entre 2003 e 2008-2010, denominada como “fase da positividade”. A segunda seria a da “multiplicação dos megraprojetos”, compreendendo o início da segunda década dos anos 2000. Para maior aprofundamento, consultar Svampa (2019).

 

Referências bibliográficas:

HERNÁNDEZ CASTILLO, R. A. Confrontando la Utopía Desarrollista: El Buen Vivir y la Comunalidad en las luchas de las Mujeres Indígenas. In: VAREA, Soledad; ZARAGOCIN, Sofía (Comp.). Feminismo y Buen Vivir: Utopías Decoloniales. PYDLOS Ediciones, Cuenca: Ecuador. 2017, p. 26 – 43. ISBN: 978-9978-14-355-1

MUNOZ C., María José. El conflicto en torno al Territorio Indígena Parque Nacional Isiboro Sécure: Un conflicto multidimensional. Cultura representaciones soc, v. 7, n. 14, p. 67-141, 2013. Disponível em: http://www.scielo.org.mx/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2007-81102013000100004&lng=es&nrm=iso. 

SVAMPA, Maristella. As fronteiras do neoextrativismo na América Latina: conflitos socioambientais, giro ecoterritorial e novas dependências. Tradução de Lígia Azevedo. São Paulo: Elefante, 2019. 192 p.  ISBN: 978-85-93115-45-5

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