Luiza Elena Januário*
Em outubro de 2022 completaram-se 60 anos da Crise dos Mísseis de Cuba – a Crise do Caribe para os soviéticos ou a Crise de Outubro para os cubanos. Tratou-se de um momento de grande tensão da Guerra Fria, em que o mundo estava à beira de uma guerra nuclear devido à descoberta pelos Estados Unidos de que a União Soviética estava instalando mísseis balísticos na ilha do Caribe que poderiam atingir o território da superpotência capitalista. Porém, a questão não se encerrou de fato em outubro e considerar facetas muitas vezes marginalizadas nas análises revela como o perigo de se desencadear um desastre nuclear era ainda maior do que imaginava. Apesar de bem difundida a periodização estadunidense – inclusive por Hollywood– de 13 dias de tensão, pode-se considerar que a crise corresponde, na verdade, a 59 dias, uma vez que ogivas nucleares soviéticas chegaram em Cuba no dia 4 de outubro e só foram retiradas em 1º de dezembro, sendo que não foram detectadas pelos estadunidenses.
Um caso para análise sobre tomada de decisão e gerenciamento de crises por excelência, a Crise dos Mísseis de Cuba é muitas vezes retratada como um sucesso dos líderes políticos em evitar uma escalada e garantir uma solução pacífica, especialmente do presidente dos Estados Unidos, John F. Kennedy. Porém, um retrato desse tipo pode conduzir ao entendimento de que os tomadores de decisão centrais tinham o controle total de situação e seu desfecho se deve simplesmente a um bom manejo no mais alto nível político. Porém, reduzir a crise a tais aspectos é incorreto e pode levar a conclusões enganosas sobre como lidar com situações de tensão.
Um primeiro aspecto a ser considerado é como Cuba é apresentada quase como um palco, simplificada à sua posição estratégica. Ou seja, nega-se a sua capacidade de ação por meio de um entendimento de que o desencadear da crise, em qualquer sentido que se desse, dependia apenas das ações das duas superpotências. Contudo, o fato de que a instalação de mísseis e ogivas ocorreu em Cuba lhe concedia algum grau de influência sobre os acontecimentos. Fidel Castro, particularmente, pode ser considerado um ator relevante ao se enquadrar a questão no nível doméstico. No caso, um ator que instigava os soviéticos a tomaram medidas mais arriscadas e provocadoras com relação aos Estados Unidos, aumentando a volatilidade do quadro.
Ademais, além dos mísseis balísticos, e de modo desconhecido pelos estadunidenses, armas nucleares táticas foram colocadas no país caribenho. De fato, na Conferência de Havana de 1992, a delegação estadunidense ficou extremamente chocada quando descobriu que os planos iniciais soviéticos para Cuba incluíam 80 armas nucleares táticas, com potencial de devastar qualquer tentativa de invasão a Cuba. De qualquer modo, a retirada das armas táticas presentes na ilha – que não estava prevista no compromisso entre Estados Unidos e União Soviética, já que a existência dessas não era conhecida – dependia da colaboração dos cubanos, sendo que Castro desejava mantê-las em seu território com o intuito de se defender de possíveis investidas dos Estados Unidos. Considerando que o líder revolucionário caribenho estava irado com a decisão da União Soviética de fazer concessões à potência americana e retirar os mísseis, pois ele se sentia humilhado e traído pelo acordo sobre o qual não fora consultado, a questão não estava sumariamente resolvida mesmo após a solução oficial ter sido acordada. Vale citar que o primeiro-ministro soviético, Nikita Khrushchov, enviou uma carta conciliatória a Castro no dia 30 de outubro em que demonstrava solidariedade à posição cubana e buscava justificar suas ações, assumindo um tom quase de pedido de desculpas.
Uma segunda questão que revela o engano de centrar totalmente a discussão nos tomadores de decisão é o que alguns pesquisadores denominam de Crise Submarina de Cuba. Como parte das preparações soviéticas para Cuba, quatro submarinos convencionais deixaram suas bases no dia 1º de outubro com destino ao país no Caribe. Os submarinos foram detectados pelos Estados Unidos quando se aproximavam da ilha e um incidente foi gerado em 27 de outubro, dia tradicionalmente conhecido como o mais perigoso de toda a Crise dos Mísseis, mesmo que não se considere a existência de uma crise submarina. O que os Estados Unidos não sabiam é que cada um dos quatro submarinos Foxtrot portava um torpedo nuclear e, pensando estar sob ataque, o capitão do B-59 quase disparou seu torpedo no dia 27. Tal faceta revela que o perigo associado à Crise era ainda maior do que se imaginava – e, no caso, nem Kennedy nem Khrushchov tinham controle sobre os acontecimentos.
A ideia de que um desastre foi evitado durante a Crise dos Mísseis devido à sorte não é nova, figurando em falas do ex-Secretário de Estado Dean Acheson e do então Secretário de Defesa, Robert McNamara, sendo que ambos atuaram no Comitê Executivo de Segurança Nacional (ExComm) formado nos Estados Unidos para aconselhar o presidente sobre o evento. Ressaltar tal elemento é o oposto de assumir o domínio dos principais jogadores sobre o jogo. Não se entende aqui sorte como algo relacionado a conjunções astrológicas ou superstições, mas um reconhecimento do papel do imponderável na política – um aspecto que não é ignorado ao longo da História, sendo possível encontrá-lo, para citar alguns exemplos bem conhecidos, nas formulações sobre de Maquiavel e no conceito de fricção de Clausewitz. Apesar de bem reconhecido, o imponderável, o acaso, a sorte, o que não se pode controlar ou eventualmente prever, causa desconforto na análise e na prática, uma vez que descortina justamente uma perda de controle, aumentando ainda mais a instabilidade em situações de crise. Considerar esse aspecto e suas implicações para crises envolvendo países nuclearmente armados é essencial nos dias contemporâneos, com a visível deterioração do ambiente de segurança.
Assumir que decisões políticas em situações de crise são tomadas por seres humanos falhos, que têm seus interesses e preconceitos e atuam com base em informações incompletas ou mesmo incorretas, não constitui nada extraordinário em análises sobre tomada de decisão. Ainda assim, muitas vezes a narrativa sobre a Crise dos Mísseis é guiada no sentido de ressaltar o controle da situação pelos mais altos líderes políticos. Os dois exemplos citados neste texto apontam que, na verdade, Kennedy desconhecia aspectos centrais sobre o quadro, que agravavam ainda mais uma possibilidade de escalada tanto acidental como proposital. A questão aqui não é criticar serviços de Inteligência e informações imperfeitas, mas reconhecer que qualquer análise mais aprofundada requer o reconhecimento do fato de que o destino do mundo não estava simplesmente nas mãos de Kennedy e Khrushchov e que a instabilidade e risco de escalada, especialmente acidental, eram muito altos.
Tal ponto é particularmente importante quando se pretende extrair lições das Crises dos Mísseis e utilizá-las para outras situações. O grande desafio é considerar o enorme potencial desestabilizador das armas nucleares no mundo hoje e como narrativas focadas no valor da dissuasão e da importância estratégica desse tipo de armamento escondem o fato de que nenhum país ou líder político tem total controle sobre o curso dos acontecimentos. No limite, o questionamento se refere ao ceticismo de que a posse de armas nucleares por um grupo reduzido de Estados – especialmente aqueles considerados legítimos sob o Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares (TNP) – seja um elemento que contribui para a estabilidade e para a segurança internacional.
*Doutora e mestra em Relações Internacionais pelo Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (UNESP-UNICAMP-PUC-SP). Professora da Universidade Paulista (UNIP). Membro do Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional (GEDES).
Imagem: CIA. Mapa mostrando o alcance dos mísseis soviéticos em Cuba em 1962. Disponível em: <https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Cuban_crisis_map_missile_range.jpg>. Acesso em: 27 out. 2022.