Esplanada dos Ministerios, Brasilia

Terras conquistadas e terras a conquistar: o xadrez do ministério da defesa

Lis Barreto*

Já há alguns anos nós assistimos a crescente militarização dos cargos políticos ligados à  União, sejam eles ministérios ou empresas subordinadas ao Governo Federal. O ministério da defesa não foi exceção a este movimento, tendo iniciado um ciclo de ministros militares a partir do governo do Presidente Temer e se mantendo desta forma até hoje (outubro de 2022)[1].

Estas não são notícias felizes. Para quem está familiarizado com a história brasileira e, em especial, aos debates acadêmicos em torno da importância do ministério da defesa, sabe que uma das maiores expectativas em torno da criação deste órgão esteve e está no seu papel na construção de relações civis-militares democráticas. Isto ocorreria através de várias mudanças, sendo um ponto essencial a própria presença de um ministro civil, que teria o papel de reduzir o contato direto entre os militares e o Presidente da República, como também o de evitar que as decisões políticas do ministério pendessem para um corporativismo (FEAVER, 2003). É controverso – e, creio eu, incorreto – afirmar que em algum momento já tenhamos atingido um controle civil dos militares, mesmo antes de vivenciarmos a militarização dos ministros. Apesar disso, o MD segue sendo a representação de uma vitória importante para a democracia. Imperfeito e criticado como é e sempre foi, ele logrou criar bases para que um dia possamos estabelecer – de jure e fato – relações civis-militares democráticas (BARRETO, 2021). São essas mudanças conquistadas a partir de 1999 que eu gostaria de chamar atenção, afinal somente entendo o quanto avançamos podemos entender o que está em jogo.

Antes de prosseguirmos nesta linha, faz-se necessário um pequeno adendo. Os avanços e mudanças que citarei adiante são de caráter institucional. Isso quer dizer que estou apresentando alterações que foram feitas nas regras do jogo, as quais influenciam as ações das personagens envolvidas e mudam o custo das suas ações. De uma forma simples, adoto aqui a visão de que quanto mais regrado é um jogo, mas custoso se torna jogar fora das regras. O aumento do custo deriva da previsibilidade que vem junto com o aumento de regras. Por exemplo, se todas as pessoas sabem que para comprar um artefato nós utilizamos dinheiro, seja ele físico ou virtual, torna-se custoso para uma pessoa querer comprar ou vender algo utilizando livros como meio de troca. Isso exigiria uma negociação a cada rodada de compra para se chegar em uma troca. Quando se implanta um padrão regrado, quanto menos espaços houver para dúvidas ou interpretações, mais previsível ele o é para os atores, que podem moldar suas ações e/ou expectativas com base nisso (NORTH, 1990).

Dito isto passamos aqui a destacar como o MD passou a delinear e circunscrever as relações civis-militares a partir de sua criação através da consolidação de padrões que se mantém até hoje, mesmo com os ministros militares. Ao final, aponto para o que acredito que precise ser a nova trincheira, sem perder de vista a necessidade de preservar e manter consciência daquilo que já conquistamos.

Oficialmente criado em 1999, o MD foi o resultado de longas e complexas sequências de jogadas e negociações envolvendo o Poder Executivo, as Forças Armadas e o Legislativo. Teve de tudo. Desde a criação da figura de um Ministro Extraordinário da Defesa para pressionar o Legislativo e as Forças, chegando às incríveis cessões ao estamento militar, o qual além de ter sido retirado da reforma previdenciária que acontecia em paralelo, recebeu aumentos salariais e manteve o status jurídico dos ministros para os seus Comandantes (MARTINS FILHO, 2006; FUCCILE, 2006).

No momento em que o ministério foi criado, o cargo de ministro da defesa não dispunha de funções formalizadas, sendo denunciado pela academia como um tipo de “Rainha da Inglaterra”, cuja existência era constantemente percebida como uma falsa liderança civil em um ministério fortemente militarizado (ZAVERUCHA, 2005). Neste contexto, tudo apontava para criação de uma instituição vazia, sem poder de alterar a relação próxima e direta entre os militares e o poder público. Contudo, instituições são coisas curiosas.

Um conceito famoso no estudo das instituições é o de consequências imprevistas. Ele é aplicado para explicar situações em que uma instituição tem um impacto não previsto. Normalmente a imprevisibilidade acontece porque nenhuma instituição é criada no vazio, e um novo arranjo institucional interage com os já existentes criando interações nem sempre previstas (PIERSON, 2004). No caso do MD, da forma como foi criado, pouco inspirava afetar democraticamente as relações civis-militares, mas acabou sendo a base para que a relação se tornasse mais regrada, mais previsível, ou seja, mais institucionalizada.

Destaco duas principais razões para o ocorrido. O primeiro é que, diferentemente da grande maioria dos ministérios, o MD não pode deixar de existir através de um Decreto Presidencial, pois o ministro consta na Constituição Federal[2]. Esta façanha conquistada em meio às negociações para a criação do MD, tornou o ministro da defesa uma figura constitucional, só podendo ser excluído com anuência de 3/5 do Congresso Nacional, tornando sua existência resistente aos humores políticos. O caráter mais perene do ministério ajuda a circunscrever o palco para o debate da questão militar e das políticas, transformando-o no grande centro da disputa de poder entre militares e políticos eleitos (BARRETO, 2021).

O segundo ponto é que, com o tempo – e com o timing certo –, o ministro da defesa conquistou funções. Entre 1999 e 2006, a ausência de diretrizes relacionadas ao cargo de ministro fazia com que este competisse internamente sobre suas próprias atribuições e, neste ambiente de disputa, ganhava quem tinha mais poder. No entanto, com a crise aérea de 2006 e a decorrente posse de Nelson Jobim, muda-se o perfil de quem ganhava este jogo (BARRETO, 2016). De 2006 até 2010, Jobim atuou com destacada liberdade no ministério, elaborando documentos de alto impacto, como a Estratégia Nacional de Defesa e a Política Nacional de Defesa, chegando, inclusive, a ser a peça-chave na construção de um arranjo regional de defesa (VAZ, 2013). Tudo isso sem que um único pedaço de papel formal atribuísse a ele estas capacidades. Esta força política de Jobim criou a base para os seus sucessores pudessem dispor de tais atribuições, pois a Lei Complementar 136 de 2010 formalizou as primeiras atribuições do ministro da defesa onze anos após a sua criação (BARRETO, 2021).

Estes dois pontos nos ajudam a entender como o MD circunscreveu o espaço de debate da questão militar, ao legitimar o ministério como centralizador dos temas ligados as FA, como o campo a ser disputado. O MD também formalizou as formas de ação e interação, estipulando diretrizes e os temas que o são pertinente, através da figura que gradualmente se legitima a falar em nome do ministério, que é o ministro da defesa. Esta normatização criada em torno do MD oferece alguma previsibilidade no formato da interação do ministério com o governo, de forma razoavelmente estável.

No entanto, como todos sabemos, nem tudo são flores e há ainda um longo caminho pela frente. Se observarmos o trajeto aqui descrito, podemos notar que quando o MD se tornou o objeto de disputa de poder, em especial devido à dificuldade que seria extingui-lo, ocupá-lo se tornou essencial. A formalização das atribuições do ministro auxiliou no fortalecimento deste ator, mas dificilmente seria capaz de ir muito além se este andasse sozinho em um ministério completamente militarizado.

Nesta questão, foram realizadas alterações importantes no organograma do ministério da defesa, durante os mandatos dos ministros Nelson Jobim e Celso Amorim. Elas não reduziram a ala exclusivamente militar – que infelizmente se expandiu – porém criaram cargos diretamente subordinados aos ministros que dispunham de funções que, muitas vezes, concorriam com outras que existiam na parte já militarizada do MD[3]. Dito de outra forma, foi realizada uma duplicação de funções no ministério que – interpreto eu – ajudaram a manter a centralizar nas mãos dos ministros parte importante das decisões políticas do ministério.

Contudo, diferentemente das outras modificações citadas neste texto, esta não possui uma alta capacidade de sobrevivência, pois o organograma pode ser modificado por Decreto Presidencial e porque todos os cargos do MD são cargos comissionados. Isso quer dizer que a estrutura do ministério é completamente modificável e que não é possível criar uma memória institucional. Por esta razão, era de se esperar que, a partir de 2016, com os ministros militares, ocorresse um esvaziamento da estrutura frágil que fora criada nos anos anteriores. Contudo, poder é uma coisa muito séria e pouca gente abriria mão dele, uma vez que o possuísse. Então, ao invés de assistirmos ao fim do organograma duplicado, assistimos a sua militarização.

Para quem não sabe, os quadros militares do MD são divididos de forma bastante equitativa entre as três Forças[4]. Porém a escolha dos ministros da defesa é política e, dentre os militares, só o Exército foi contemplado. Por que o Exército iria destruir a duplicação se ele dispunha do 1/3 que lhe cabia e agora adicionava o puxadinho que antes cabia aos civis? A manutenção da desigualdade indica que a estrutura civil dispunha de alguma robustez. Esta não foi destruída – ainda – e mesmo que seja, esta poderá ser facilmente recuperada, enquanto outra forma de ação não seja criada e implantada. Contudo, esta dinâmica mostra a necessidade de garantir alguma sobrevivência civil dentro dela.

Não é nenhuma demanda nova. A primeira proposta formal para o estabelecimento de uma carreira civil para a defesa é anterior a criação do próprio ministério[5] e segue ecoando nas falas acadêmicas. Ninguém está supondo que será fácil ou que serão criados vários cargos ou, menos ainda, imaginando que isto poderá ocorrer sem concessões. Mas no jogo de xadrez institucional que se move lentamente ao longo das duas últimas décadas e, uma vez preservadas as movimentações anteriores, esta parece ser a próxima jogada lógica. Acredito eu que é chegada a hora de tentar criar uma memória civil dentro do ministério da defesa.

 

* Lis Barreto é doutora em Ciência Política em regime de cotutela entre a Universidade Federal de São Carlos e a Universidade de Lisboa. Lis recebeu o Prêmio Capes de Tese 2022 na área de Ciência Política e Relações Internacionais, com trabalho sobre a institucionalização das relações civis-militares no Brasil.

Imagem: Esplanada dos Ministérios. Por: Mariordo/Wikimmedia Commons.

 

[1] Ver o jornal O Globo: <https://oglobo.globo.com/brasil/temer-oficializa-primeiro-militar-no-comando-doministerio-da-defesa-22776031>; Ver Folha de S. Paulo: < https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2021/03/bolsonaro-multiplica-por-10-numero-de-militares-no-comando-de-estatais.shtml >.

[2] Através da Emenda Constitucional 23 de 1999.

[3] Informações disponíveis nos Decretos Presidenciais 3080 de 1999; 3466 de 2000; 4735 de 2003; 5201 de 2004; 6224 de 2007; 7364 de 2010; 7974 de 2013; 8978 de 2017; 9570 de 2018; 10076 de 2019; 10293 de 2020; 10806 de 20211; 0998 de 2022. Disponíveis no site do Planalto: <http://www.planalto.gov.br>.

[4] Com base nos decretos citados acima, quando não há divisão em três, há rodízio para a ocupação dos cargos.

[5] Foi proposto pelo então deputado José Genoíno em 1998, durante o tramite da PLP 250/1998. Ver Barreto,2021, p. 94-96.

 

Referências Bibliográficas

BARRETO, Lis. A Dimensão da Defesa na Política Externa dos Governos de Lula da Silva (2003-2010) e Rousseff (2011-2014). Dissertação (Mestrado em Relações Internacionais), 2016. Disponível em: < https://repositorio.unesp.br/bitstream/handle/11449/144188/barreto_l_me_mar.pdf>.

BARRETO, Lis. A institucionalização das relações civis-militares no Brasil (1988-2014): o papel das prerrogativas presidenciais. Tese (Doutorado em Ciência Política), 2021. Disponível em: < https://repositorio.ufscar.br/handle/ufscar/14842>.

FEAVER. Armed servants: agency, oversight, and civil–military relations. Harvard University Press, 2003.

FUCCILLE, Luís Alexandre. Democracia e questão militar: a criação do Ministério da Defesa no Brasil. 2006. 282 f. Tese (Doutorado de Ciências Sociais) – Universidade Estadual de Campinas, Campinas, São Paulo, 2006.

MARTINS FILHO, João Roberto. O governo Fernando Henrique e as Forças Armadas: um passo à frente, dois passos atrás. Revista Olhar. Nº 4, 2000.

NORTH, Douglass. Institutions, institutional change and economic performance. Cambridge University Press, 1990.

PIERSON, Paul. Politics in Time: History, institutions and social analysis. Princeton: Princeton University Press, 2004.

VAZ, Alcides. A Ação Regional Brasileira sob as Ópticas da Diplomacia e da Defesa: Continuidades e Convergências. In: FAUSTO, Sergio; SORJ, Bernardo. (Orgs.) O Brasil e a governança da América Latina: Que tipo de liderança é possível? Rio de Janeiro: Centro Edelstein de Pesquisas Sociais, 2013. São Paulo: Fundação Instituto Fernando Henrique Cardoso (iFHC), 2013.

ZAVERUCHA, Jorge. A Fragilidade do Ministério da Defesa Brasileiro. Revista de Sociologia e Política. Curitiba, V. 25, nov. 2005.

Referências midiáticas

BRASIL. Planalto. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br>.

FERNANDES, Leticia. Temer oficializa primeiro militar no comando do Ministério da Defesa. O Globo, 13 de jun. 2018. Disponível em: <https://oglobo.globo.com/brasil/temer-oficializa-primeiro-militar-no-comando-doministerio-da-defesa-22776031>.

SEABRA, Catia; GARCIA, Diego. Bolsonaro multiplica por 10 o número de militares no comando de estatais.  Folha de S. Paulo, 6 de mar. 2021. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2021/03/bolsonaro-multiplica-por-10-numero-de-militares-no-comando-de-estatais.shtml >.

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