52006326315_033c5bcb63_k

Guerra Informacional no conflito Rússia e Ucrânia: uma aproximação ao controle informacional nos conflitos (Parte 1) 

Alcides Eduardo dos Reis Peron*

 

Mira, ângulo de visão, ângulo morto, ponto cego, tempo de exposição: a linha de mira prenuncia a linha do horizonte da perspectiva utilizada nos quadros pelo pintor de cavalete, que também é engenheiro militar ou estrategista como Dürer ou Da Vinci.”

Paul Virilio, Guerra e Cinema

“Está ao vivo, veja, as Imagens não mentem”, disse a âncora do telejornal enquanto apontava para a imagem de uma criança no telão do estúdio. Ao lado dessa filmagem, uma decoração especial, com fumaça cinza, e o que parecia ser um míssil sendo lançado de uma plataforma de armas, sobreposto por um enorme título, “Guerra na Ucrânia”. Como na guerra do Golfo em 1991, a âncora buscava associar a imagem (ao vivo), a uma proposta de cristalinidade do meio, de transparência e, fundamentalmente, de verdade em seu estado puro, com isso, colocando fim às especulações de diversas ordens, de que os meios teriam alguma agência sobre a política e a guerra. Ainda, a atual cobertura movimenta elementos muito similares aos da Guerra do Golfo, como a ampla produção de imagens, múltiplos narradores, em uma linha argumentativa coesa: a condenação (ou ilegitimidade) da agressão de uma das partes, associada ao apagamento das razões históricas e geopolíticas do conflito, e a uma exagerada heroicização de uma das partes do conflito. Um sofisticado enredo orientado a (des)informar – ao mesmo tempo que entretém –, embora, contemporaneamente, também esteja associado à ampla difusão de materiais, análises e imagens nas redes sociais.

Ao contrário do que a apresentadora sustenta, as imagens, se inseridas em contextos e narrativas específicas, podem potencializar, desqualificar ou redirecionar os sentidos da mensagem. O conhecidíssimo debate proferido ao longo do século XX por Walter Benjamin, Marshall Mcluhan, Guy Debord, Jacques Ranciére e por tantos outros, buscou centrar a imagem como objeto do discurso. Com o seu poder de alcance muito superior ao das palavras, a imagem carrega simbolismos, sentidos, valores políticos, potencializando a mensagem, ou sendo por si mesma a mensagem. Pierre Bourdieu ao descrever o campo jornalístico descreve a técnica de “ocultar mostrando”, que consiste em estruturas “invisíveis” que organizam aquilo que se percebe pela televisão, a partir de dramatizações e do intercâmbio entre imagens e narrativas, produzindo um “efeito de real” – algo que não seria diferente nas guerras, ou sua cobertura.

Esse efeito de real está na base das guerras informacionais que compõem os conflitos bélicos desde seus primórdios e, fundamentalmente, na deste atual conflito. Ambas as partes agora têm buscado tornar hegemônica sua linha argumentativa, a partir de múltiplos expedientes, como narrativas midiáticas, controle dos enxames nas redes sociais, etc. Esse breve ensaio, dividido em três partes, visa debater como essa produção de efeito de realidade é uma prática estratégica dos conflitos, e não envolve apenas movimentos midiáticos, mas também de desinformação nas redes, turvando a linha entre jornalismo e entretenimento, real e ficção.

A Guerra e seus meios

Clausewitz já havia entendido o modo como o ambiente de guerra era também um ambiente da administração dos sentidos, não apenas dos combatentes, que deveriam se lançar em aventura de morte, mas também da população, cujo papel seria o engajamento irrestrito à campanha. Nesse sentido, a fricção seria, antes de mais nada, um elemento que atenta contra o cognitivo dos combatentes e da população, imprimindo o desejo de cessar o conflito, tornando a mente um dos domínios a serem conquistados num conflito – como coloca Der Derian, o “Human Terrain”.  No entanto, foi Paul Virilio um dos primeiros a discutir o status das imagens e das narrativas nas guerras contemporâneas, descrevendo-o como um espaço de disputas perceptivas. Para Virilio, o termo “teatro de operações” assume múltiplos sentidos, ao mesmo tempo um ambiente de disputas entre atores com funções bem delimitadas, mas também como um espetáculo de produção de sentidos, imagens e informações – utilizados para cativar, engajar ou desengajar os espectadores da guerra.

Mais recentemente, autores como Jean Baudrillard, Douglas Kellner, e James Der Derian se debruçaram sobre o modo como Estados modernos – particularmente os EUA – conseguem mobilizar uma ampla rede informacional e comunicacional de modo a produzir consensos a respeito dos conflitos a partir de um movimento-chave: a conversão da guerra em entretenimento, quando informação quebra a barreira sensorial da razão, e passa a ser assimilada como algo lúdico, viciante e animador. Isso se daria a partir não de uma cobertura enfadonha das guerras, mas com o alinhamento entre vinhetas, narrativas estratégicas (sobre o contexto do conflito), táticas (que alinham o conflito em uma sequência lógica de eventos), polarizações e, fundamentalmente, cobertura 24 horas – uma caixa de ressonância que, como o documentarista John Pilger aponta, não abre espaço para o embate, o raciocínio ou ao contraditório, nos fazendo consumir construções parciais como integrais e absolutas. A cobertura ao vivo se diluía em um misto de imagens gravadas, de movimentos abstratos (crianças, soldados, refugiados, lideranças) impedindo a diferenciação entre tempo real e gravações. 

Com o foco na Guerra do Golfo em 1991, esses autores exploram como a produção de imagens e narrativas sobre a guerra engajou de maneira profunda a população estadunidense em um conflito desnecessário e vago. Nesse sentido, Douglas Kellner se ocupou em identificar e desmontar as linhas mestras da narrativa midiática, que envolviam a desinformação (a respeito de uma iminente invasão iraquiana na Arábia Saudita, e sobre falhas tratativas de “paz”), afirmações sobre o caráter e intenções de Sadam Hussein (sem que houvesse entrevistas ou declarações), desumanização dos líderes (o frequente enquadramento de Sadam Husseim em uma linha sucessória de Hitler), manipulação de dados (sobre o deslocamento de tropas iraquianas em suas fronteiras), e omissão arbitrária de dados (de satélites russos, que colocavam em xeque as afirmações de deslocamentos de tropas).

Como concluem, os tambores da Guerra da mídia televisiva e impressa foram fundamentais para a mobilização de tropas estadunidenses, administrando o apoio popular e redimindo previamente as lideranças por eventuais fracassos. Der Derian, no entanto, vai além e identifica nesse processo um dispositivo inerente à máquina de guerra estadunidense, o MIME – NET, sigla em inglês para a rede militar industrial de entretenimento. Essa rede não possuiria hierarquias, sendo composta por empresas privadas de jornalismo, setores de entretenimento, agências de governo e de Estado, sendo ativada em períodos de guerra justamente para o engajamento ou desengajamento da população à guerra. De acordo com o autor, isso não implica em dizer que existem conluios ou manipulações pelos Estados ou pelas empresas de jornalismo, mas sim um extenso processo de alinhamentos de ideias e interesses, de administração e de controle sutil, com a seleção de especialistas que condizem com a perspectiva da emissora (e dos burocratas da guerra), o que garantem a concessão de entrevistas exclusivas, acessos, materiais, documentos, dentre outros elementos que vão intensificando um relacionamento que, no limite, se traduz como benéfico para ambos os lados. Enquanto a máquina de guerra dissemina uma perspectiva interessada da guerra, o outro lado tem acesso a elementos que vão incrementar seu material informacional e, consequentemente, sua audiência.

Outros autores, como Steven Livingston, ainda que não se apoiem na ideia desta rede, reconhece a importância do papel das grandes empresas de jornalismo e entretenimento na construção dos imaginários dos conflitos, ao qual denomina como “efeito CNN”. Esses efeitos são diversos, e não implicam necessariamente em um alinhamento ideológico do conflito, mas demonstram o potencial dos meios em influenciar os conflitos. De acordo com ele, três seriam os modos pelos quais os efeitos midiáticos agem: 

  • Acelerante: na qual a cobertura do conflito tem um efeito multiplicador, exigindo a redução do tempo de resposta das autoridades, divulgando informações, fazendo coberturas frequentes sobre mortos e destruição, entre outras ações; 
  • Impedidor: primeiramente, emocional, deprimindo a moral populacional, sanitarizando a guerra (reduzindo a dimensão de coberturas sobre mortos e destruição) e, segundamente, frustrando as operações militares a partir da divulgação ampla de notícias operacionais; 
  • Definidora de agendas: agindo emocionalmente de forma a definir as agendas humanitárias como prioritárias. 

Na verdade, a atuação midiática como uma fusão entre jornalismo e entretenimento já é uma prática que data, pelo menos, desde a Segunda Guerra Mundial, com o envolvimento da empresa Walt Disney em conteúdos sobre a guerra; a produção de eventos e shows em campos de batalhas (para animar a moral dos combatentes); e o emprego de cineastas famosos para capturar imagens do conflito – vide o documentário da Netflix “Five Came Back”, que narra o modo como o Pentágono remunerou John Ford, Frank Capra, dentre outros. De acordo com Der Derian e John Pilger,  após a Guerra do Golfo se inicia um modelo de cobertura 24 horas de guerras e conflitos, os quais demandam: a manutenção exaustiva de especialistas, imagens, reportagens em loop, o que paulatinamente funde noticiário e entretenimento de guerra – no caso do Golfo, com a intenção de propagar um novo modelo de guerra inteligente, comandada a distância por alta tecnologia, como aponta Rune Ottosen. De acordo com ambos, essa prática foi adotada em todos os conflitos desde os anos 90 em que os EUA ou países da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) estiveram inseridos: na Bósnia, na Sérvia, Afeganistão, Iraque, e mesmo na Líbia e Síria. A cobertura midiática tornava-se, assim, uma linha acessória do conflito, algo descrito inclusive nas doutrinas de guerra estadunidenses.

 Como um exemplo, a Joint Low Intensity Conflict Project (JILC) de 1986 deixa claro que, nenhuma informação entrará ou sairá do conflito sem que seja previamente arquitetada. A JLIC abertamente afirma a importância de um alinhamento entre Estado e empresas de jornalismo, em uma tradução livre: “Conflitos prolongados também aumentam as ambiguidades da situação, e a mídia moderna irá trazer essas ambiguidades para casa para o debate público, exacerbando as incertezas e compondo as dificuldades de envolvimento […] A mídia exerce uma poderosa, senão indeterminada, influência na opinião pública, e isso pode ter um impacto sobre as operações, para bem ou para mal […] Líderes políticos e militares devem considerar o papel da mídia e desenvolver programas apropriados e relacionamentos que irão sustentar as operações”.

O controle informacional em um conflito se torna uma tática central para os modelos de guerra contemporâneos, principalmente por sua capacidade de estímulo da opinião pública, dos combatentes e aliados, mas também para agir sobre a moral inimiga e produzir descrédito, o que coloca em xeque a capacidade dos países em produzir mobilização interna para o conflito. No caso estadunidense, e de países da OTAN, essa estratégia não se dá através de uma centralização, censura e manipulação direta das informações pelos aparelhos de Estado – como no caso do controle informacional russo nos últimos conflitos –, mas a partir de uma intrincada rede de relacionamentos e articulações entre empresas de jornalismo, e que agora contam com uma nova linha acessória, as redes sociais.

De acordo com pesquisas recentes, mais da metade dos americanos se informam regularmente através de mídias sociais, que incluem Facebook, Instagram, Snapchat e Tik Tok. Assim, principalmente a partir dos anos 2000, essas articulações, bem como a difusão de informações e conteúdos, ocorrem não apenas a partir da mídia televisiva, mas também pelas redes sociais e aplicativos de mensagens – um ambiente em grande medida desregulado, em que informações manipuladas, desinformações, deepfakes, análises enviesadas de especialistas são veiculadas e ganham proeminência a partir de compartilhamentos, que podem ou não ser estimulados por contas falsas (robôs). Esse fenômeno acaba governando a percepção geral dos usuários dessas redes sobre diversos temas – conformando verdadeiros ecossistemas de desinformação que se articulam com as redes televisivas e de entretenimento. Aqui, a divisão entre notícia e entretenimento se torna cada vez mais turva, dado o amplo compartilhamento de imagens, músicas, sessões ao vivo de discussões sobre a guerra em múltiplas redes sociais.

Desde Gilles Lipovetsky à Byung-Chul Han, diversos autores esclarecem que, diferente de uma estética de desaparecimento e de omissão de informações que caracterizou a era televisiva (inclusive nas coberturas de guerras), as redes sociais e o hiper-compartilhamento de dados produzem um fenômeno de desinformação a partir do excesso de informações não verificadas, produzidas por uma miríade de sujeitos. Como aponta Lee Mcintyre, o caráter dinâmico da internet e das redes sociais leva a uma confusão entre notícia e opinião, elevando uma posição pouco fundamentada ao status de “verdade”. A problemática relativa a isso é a de que não são geradas apenas opiniões, mas aquilo que Claire Wardle e Hossein Derakhshan tipologizam como desordem informacional: informações incorretas (com falsas conexões e conteúdo ilusório), más-informações (vazamentos, assédios, discursos de ódio), e fundamentalmente desinformação (conteúdo deliberadamente produzido, falso, manipulado e fabricado). Assim, notícias falsas, imagens e informações manipuladas, vídeos, discursos parcializados são compartilhados na rede em uma dinâmica de enxame, ora complementando as abordagens midiáticas “ocidentais”, ora as contradizendo. Assim, há na guerra um complexo ecossistema de desinformações que envolvem a mídia tradicional e as redes na composição de verdadeiros simulacros da realidade, a partir do controle e mobilização de informações, análises de especialistas, produção de notícias falsas, deepfakes, memes, entre outros. 

 

*Alcides Eduardo dos Reis Peron é doutor (2016) em Política Científica e Tecnológica pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), autor do livro “American way of war: ‘guerra cirúrgica’ e o emprego de drones armados em conflitos internacionais” e professor do Departamento de Relações Internacionais da Universidade Federal de Sergipe.

Imagem em destaque: vila de Novoselivka, Ucrânia. Por: UNDP Ukraine.

compartilhe este post