Álvaro Anis Amyuni*
Desde o início da Guerra da Ucrânia, em fevereiro de 2022, uma das principais justificativas do presidente russo, Vladimir Putin, para a invasão ao país vizinho é o alegado domínio neonazista na região. Putin tenta emular a luta nacionalista dos soviéticos contra o nazismo na Segunda Guerra Mundial a partir do superdimensionamento da presença de militantes supremacistas brancos, neonazistas e de extrema-direita nas fileiras do exército ucraniano, especialmente no Regimento Azov.
Desde os protestos do Euromaidan que deflagraram a crise que a Ucrânia vive desde 2013 há, de fato, um ambiente bastante permissivo ao desenvolvimento de grupos de extrema-direita no país, sobretudo a partir de dois movimentos importantes. O primeiro, endógeno, que envolve os grupos políticos e armados que participaram ativamente das ações violentas durante e após o Euromaidan.
O segundo, exógeno, está relacionado à força de atração que grupos envolvidos no conflito civil-militar, que se formou no leste ucraniano a partir de 2014, exercem sobre indivíduos e grupos da extrema-direita transnacional, transformando a Ucrânia em um local de peregrinação e treinamento paramilitar. A narrativa de Putin explora esses dois fatores, bem como as conexões oficiais estabelecidas entre determinados grupos paramilitares de extrema-direita – como o Azov – e o Estado ucraniano. Mas, qual o real tamanho da ameaça posta pela extrema-direita no conflito ucraniano e quais são as possíveis consequências transnacionais de sua atuação durante e após a guerra atual?
A primeira parte deste texto está concentrada em responder esse questionamento pela análise do movimento endógeno de permissividade à extrema-direita gestado nos protestos do Euromaidan em 2013 e na guerra civil na região de Donbass a partir de 2014. Na segunda parte, concentro a análise no movimento exógeno, sobre as consequências internas e externas da presença de combatentes estrangeiros da extrema-direita na guerra.
Os protestos da praça Maidan em Kiev reuniram grupos políticos de diversas orientações ideológicas e uma diversidade de objetivos que iam desde a retomada das negociações para a entrada do país no bloco da União Europeia – acordo interrompido pelo presidente, pró-Rússia, Viktor Yanukovitch – até a deposição do governo incumbente e a instalação de um novo regime ultranacionalista e pró-Ocidente. Nesta parcela mais extremista, se destacavam organizações e partidos de direita, como o Svoboda e o Setor Direito, que foram atores protagonistas de ataques violentos contra políticos e a polícia.
Cientistas políticos ocidentais mediram o impacto da opinião popular sobre as ações desses grupos a partir do nível de aceitação eleitoral dos ucranianos à extrema-direita, que se provou baixo nas eleições de 2014 (pós-Euromaidan) quando não conseguiram sequer superar a barreira de 5% dos votos. Levando em consideração o cenário atual de guerra, o insucesso desses partidos continua a ser a principal fonte de refutação à narrativa de Putin. Argumenta-se que há pouca adesão ao extremismo de direita na Ucrânia e, por isso, não existe um problema de escala nacional como um governo abertamente nazista; por outro lado, a presença isolada e diminuta de organizações de extrema-direita.
No entanto, segundo Volodymyr Ischenko (2016), esta não é a melhor maneira de avaliar o impacto dessas organizações na criação de um ambiente propício à atuação da extrema-direita, visto que, apesar do apoio diminuto e de serem minoria nos protestos, tiveram papel central nos confrontos com a polícia em meio à dinâmica dos protestos de massa. Justamente essa escalada de violência, ao lado do aumento das tensões separatistas, também no leste ucraniano, forçou a fuga e renúncia do presidente Yanukovitch.
Paralelamente, em meio ao cenário de caos social com a iminente perspectiva de combate das forças ucranianas com separatistas pró-Rússia na região de Donbass, emergiram grupos paramilitares informais e semi-informais com a intenção de defender o país de uma invasão russa. Como afirma Andreas Umland (2019), esses grupos foram rotulados de “Batalhões de Defesa Territorial”, “Destacamentos de Patrulha Policial Especiais”, “Regimentos de Operações Especiais”, entre outros, tendo um caráter fortemente nacionalista e telúrico, além de justificar sua criação a partir da impotência do exército ucraniano. Esses batalhões “voluntaristas”, como ficaram conhecidos, foram total ou parcialmente absorvidos pelo exército ucraniano durante o mandato presidencial de Petro Poroshenko.
O Regimento Azov, nesse sentido, foi o grupo mais destacado por conta do feito de recapturar a cidade de Mariupol das forças pró-Rússia em junho de 2014, fazendo com que fosse absorvido como parte formal do exército, sendo designado oficialmente como o “Destacamento de Operações Especiais, Azov”. Umland (2019) ressalta que os fundadores do Azov são ultranacionalistas ucranianos que começaram o ativismo político na era pós-soviética em organizações como a Assembleia Social-Nacional (ASN), o Patriotas da Ucrânia (PU), a Divisão Misantrópica e a Bratstvo – organizações que, em maior ou menor grau, contribuíram para a criação do Batalhão/Regimento com sua militância e articulação política. A ideologia de Azov é manifestada em seus símbolos que remetem aos adotados por nazistas, como o Sol Negro e o Wolfsangel, símbolo da 2ª Divisão da SS Das Reich.
Aos poucos e paralelamente ao processo de absorção nas forças armadas da Ucrânia, o grupo se esforçou para diminuir a sua associação ao nazismo e fascismo, retirando, por exemplo, o Sol Negro de seu emblema oficial. Durante a guerra de 2022 houve uma nova atualização da insígnia, retirando também o Wolfsangel. Muitas de suas lideranças abertamente supremacistas foram substituídas e seus líderes atuais dizem que o grupo está aberto a qualquer um que deseje “defender a Ucrânia”, independentemente de qual seja a sua ideologia ou crença pessoal. De fato, é difícil mensurar a quantidade de neonazistas e supremacistas convictos nas fileiras de Azov. Mesmo com essa alegada abertura a soldados de fora do círculo da extrema-direita, as referências e simbologias se mantêm, o que pode ser percebido em imagens recentes da guerra em que soldados do Regimento apareceram utilizando o símbolo do Sol Negro em seus uniformes.
Assim, a extrema-direita na Ucrânia opera sob a vigilância negligente do Estado – e já se trata de um problema perpetuado por mais de um governo. Por essas forças terem rapidamente se organizado em estruturas paramilitares, ganharam uma força política tal que, ao mesmo tempo, foi capaz de fortalecer o débil exército ucraniano e enfraquecer o monopólio legítimo do uso da força das mãos do Estado. Adicionado a isso, os feitos “heroicos” na guerra civil desde 2014, os batalhões voluntaristas exerceram o papel de proteger a população, criando uma relação de fascínio diante da incapacidade do governo de oferecer segurança contra as forças russas e separatistas. Este fascínio, contudo, logo transbordou as fronteiras do conflito, capturando o interesse de atores externos sobre os desenvolvimentos internos da extrema-direita ucraniana, como abordo na parte 2 do texto.
*Álvaro Anis Amyuni é mestrando do Programa de Pós-Graduação San Tiago Dantas, onde desenvolve pesquisa sobre o terrorismo transnacional de extrema-direita. É pesquisador do Observatório de Conflitos do Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional (OC-GEDES). Também é pesquisador júnior do Observatório da Extrema Direita (OED Brasil).
Imagem em destaque: Stanislav Nepochatov/Flickr
Imagens no corpo do texto: Antigo Símbolo do Batalhão Azov, uma combinação do Sol Negro e o Wolfsangel flutuando em ondas do Mar de Azov, referência geográfica do nome do grupo. Fonte: Wikimedia Commons.