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Conflito fronteiriço na Ásia Central: sinais tardios de um processo incompleto da desintegração soviética

Getúlio Alves de Almeida Neto*

A Ásia Central é composta por cinco Estados que faziam parte da extinta União Soviética (URSS), a saber: Cazaquistão, Quirguistão, Uzbequistão, Tadjiquistão e Turcomenistão. A oeste do Mar Cáspio, Azerbaijão e Armênia são outras duas ex-repúblicas soviéticas. Ao sul do Tadjiquistão e Turcomenistão, o Afeganistão, embora nunca tenha sido parte do bloco soviético, tem papel central e delicado na memória militar da história russa, devido aos dez anos da frustrada Guerra do Afeganistão (1979-1989). Como produto desse contexto, a região da Ásia Central é destacada como uma das zonas de principais interesses estratégicos para Moscou no século XXI. Contudo, recentes eventos que aumentam a  instabilidade na região têm se tornado um desafio para o papel almejado pelo governo russo de ser reconhecido como garantidor da estabilidade dos regimes e da segurança de seus aliados, e como  principal potência com interesses nesta região.

Em específico, vale citar a guerra por Nagorno-Karabakh travada entre Armênia e Azerbaijão (2020), a retirada das tropas americanas do Afeganistão e a retomada do poder pelo Talibã (2021), os protestos em janeiro de 2022 no Cazaquistão e, mais recentemente, conflitos fronteiriços entre o Tadjiquistão e Quirguistão, assunto tratado brevemente a seguir. Com esse cenário em mente, o objetivo principal deste texto é debater os principais desafios impostos a Moscou na busca por uma posição privilegiada de potência regional em meio (i) à ascensão de outras duas potências na região, nomeadamente China e Turquia; (ii) a crescente eclosão de conflitos entre ex-repúblicas soviéticas e (iii) o crescimento de movimentos nacionalistas que buscam diminuir a influência russa sobre os governos locais em termos políticos, securitários e econômicos.

Entre 14 e 16 de setembro de 2022, os arredores da vila de Kök-Tash, no Quirguistão, próxima à fronteira com o Tadjiquistão, foram palco de hostilidades entre forças de segurança de ambos os países, que se acusaram mutuamente de ter iniciado o confronto. Na narrativa quirguiz, forças tadjiques invadiram vilas em seu território com tanques, veículos blindados e morteiros, e realizaram bombardeios no aeroporto da cidade de Batken (Quirguistão). Por sua vez, os tadjiques acusaram as forças quirguizes de bombardear um posto militar na fronteira e aldeias em seu território. Estima-se que mais de 100 pessoas tenham sido mortas, e aproximadamente 136 mil deslocadas nas regiões de Batken e Leilek, no Quirguistão. O confronto teve início enquanto os presidentes Emomali Rahmon (Tadjiquistão) e Sadyr Japarov (Quirguistão) estavam presentes na cúpula da Organização para Cooperação de Xangai (OCX) no Uzbequistão. Um cessar-fogo foi acordado entre os chefes dos Comitês de Segurança Nacional dos dois países, Kamchybek Tashiyev (Quirguistão) e Saimumin Yatimov (Tadjiquistão). Em 25 de setembro, os chefes dos serviços de segurança dos dois países assinaram um acordo se comprometendo a retirar tropas de quatro postos militares próximos à região do conflito. O acordo foi alvo de críticas no Quirguistão, as quais afirmavam que a desmilitarização da fronteira facilitaria a invasão da população tadjique nos territórios disputados.

O confronto entre forças tadjiques e quirguizes é apenas o episódio mais recente de uma série de conflitos e tensões que ocorrem na fronteira entre os dois países há 30 anos. O último episódio de maior tensão havia sido em abril de 2021, que resultou na morte de 49 pessoas, além de 260 feridas. A frequência das hostilidades nesta região decorre, em grande medida, da delimitação de fronteiras na esteira do processo de dissolução da União Soviética. Nesse sentido, dos 970 quilômetros de extensão total de fronteira, estima-se que apenas metade desse total tenha sido oficialmente definida. Além disso, o Tadjiquistão possui um exclave em território quirguiz, Voruque. Em específico, a região de Batken, no Quirguistão, abriga fontes subterrâneas de água de grande importância para a atividade econômica das populações locais, majoritariamente composta por pequenos agricultores.

O histórico de distribuição de terras no período soviético é outro fator que contribui para a reivindicação de ambos os lados sobre o direito ao território. Quando a propriedade privada da terra foi introduzida no Quirguistão, parte das pastagens arrendadas no território do Tajiquistão foram registradas como propriedade privada dos cidadãos do Quirguistão. Com o fim do bloco soviético, os sistemas de irrigação, que muitas vezes cruzam as fronteiras entre os países, passaram a ficar sob insegurança jurídica devido à não demarcação plena das fronteiras. Consequentemente, disputas pelo acesso à água são frequentes nos últimos 30 anos, ainda que, em sua maioria, sejam atritos entre civis sem maiores desdobramentos. Somado aos fatores históricos e geográficos que implicam na disputa por recursos hídricos, a ascensão de movimentos nacionalistas dentro dos países dotam a região de maior grau de instabilidade.

Andrey Kortunov propõe uma interessante análise dos conflitos pós-soviéticos a partir da concepção de um processo de independência tardio. Segundo o historiador russo, a queda da URSS em 1991 foi vista como um processo relativamente pacífico quando comparado com a dissolução de outros impérios, a despeito de alguns conflitos de menor escala e duração (Tadjiquistão, Nagorno-Karabakh; Abecásia, Ossétia do Sul, Transnístria, Chechênia e Daguestão). Assim, Kortunov sugere que o colapso da URSS tenha sido apenas o início de um processo “longo, complexo e contraditório de desintegração imperial” e de construção de novos Estados-nacionais que perduram até os dias atuais. Na perspectiva do autor, a maior parte do espaço pós-soviético – com exceção dos países bálticos (Estônia, Letônia e Lituânia) – permaneceu extremamente interligada em termos econômicos, de infraestrutura, educação, ciência, cultura, e na mentalidade das elites políticas e econômicas. Por essa lógica, seria possível afirmar que o real processo de desintegração do bloco soviético passou a acontecer somente com o surgimento de uma nova geração nas populações dos novos Estados nacionais.

Neste contexto, movimentos nacionalistas no Tadjiquistão e no Quirguistão corroboram para o acirramento das disputas entre os países. Enquanto o Tadjiquistão é um Estado marcado pela centralização de poder no governo de Emomali Rahmon, Presidente do país desde 1994 após a Guerra Civil do Tadjiquistão (1992-1994), o Quirguistão é relativamente mais aberto politicamente, sendo governado por Sadyr Japarov desde 2021. Ambos os líderes se utilizam das tensões fronteiriças em benefício de apoio político interno. Enquanto Rahmon faz uso de uma retórica expansionista em busca de consolidação da nação tadjique e de seu regime e manutenção do controle sobre os militares, Japarov, ao longo de sua campanha presidencial em 2021, prometia resolver as disputas territoriais. Em detrimento de uma solução negociada, ambos os países vêm se armando paralelamente ao acirramento das disputas retóricas e aos conflitos localizados na fronteira. O Tadjiquistão vem adquirindo munições e treinamentos militares da Rússia, China, Irã e dos Estados Unidos, sobretudo devido a sua extensa fronteira com o Afeganistão e ao receio de espalhamento das ameaças provenientes do território afegão. Por sua vez, o Quirguistão recebe assistência militar norte-americana, ainda que sob a alcunha de construção democrática. Recentemente, o país adquiriu drones turcos (modelos Bayraktar) e veículos blindados de transporte pessoal da Rússia.

Além dos desafios impostos pelos crescentes conflitos entre ex-repúblicas soviéticas, destaca-se aqui o fato de que a Ásia Central é o ponto de encontro de potências com diferentes níveis de influência e múltiplos interesses, nomeadamente: Rússia, China, Turquia. Na perspectiva russa, portanto, ser capaz de promover a estabilidade regional e manter o poder de influência sobre as ex-repúblicas soviéticas é um duplo desafio que se apresenta a partir das relações com Pequim e Ancara.

Em geral, a maior parte do comércio exterior com estes países é feito com a Rússia. Além disso, a Rússia é destino de migração de mão de obra oriunda da Ásia Central, cujos salários são enviados para os familiares e constituem uma importante parcela da renda destes países. Para além do campo econômico, Moscou exerce grande influência na região a partir da lógica da segurança, institucionalizada sobretudo na Organização do Tratado de Segurança Coletiva (OTSC), cujos membros são: Rússia, Belarus, Armênia, Cazaquistão, Quirguistão e Tadjiquistão. Nos protestos de janeiro de 2022, o presidente cazaque, Kassym-Jomart Tokayev solicitou o envio de tropas do bloco militar, que atuaram pela primeira vez desde sua criação, com o objetivo de reprimir os protestos e garantir a estabilidade do país. Não obstante, a OTSC não é a única instituição intergovernamental que reúne a Rússia e outros países da Ásia Central que faziam parte da URSS. Nesse sentido, a Organização para Cooperação de Xangai (OCX) engloba 9 países: China, Rússia, Cazaquistão, Tadjiquistão, Quirguistão, Uzbequistão, Índia, Paquistão e Irã. Trata-se de uma organização de cooperação política, econômica e militar, que estabelece como prioridade combater o separatismo, o terrorismo e o fundamentalismo religioso. Nesse formato, o poder de influência russa é diluído com outras potências, sobretudo devido à presença chinesa.

A China, por sua vez, vem fortalecendo os laços com os países da Ásia Central principalmente no campo  econômico , cujo símbolo maior encontra-se no projeto da Nova Rota da Seda. Contudo, as preocupações no âmbito da segurança têm se tornado cada vez mais sensíveis aos chineses, principalmente no que tange aos Uigures, população túrquica de maioria islâmica na província de Xinjiang. Localizada no extremo oeste chinês, Xinjiang faz fronteira com Cazaquistão, Quirguistão, Tadjiquistão e Afeganistão. Com o receio de que haja um movimento independentista islâmico fomentado por radicais – na perspectiva chinesa – nos países da Ásia Central, é de interesse de Pequim manter a estabilidade dos governos vizinhos. Exemplo disso, é o financiamento chinês para a construção de uma nova base militar no Tadjiquistão, próxima à fronteira com o Afeganistão.

Para além da China, a Turquia é outra potência regional cujos interesses podem se tornar um empecilho para Moscou em seu objetivo de garantir a primazia nas relações com os países da Ásia Central. No caso da Turquia, o interesse em se tornar país chave no concerto regional se insere dentro da política externa neo-otomanista[1] de Recep Erdogan. Nessa perspectiva, Ancara tem buscado se posicionar como líder do “mundo túrquico”, se utilizando da narrativa que enfatiza os laços históricos, étnicos e linguísticos comuns entre a Turquia e os países da Ásia Central.[2] Para tal, a Turquia tem aumentado a cooperação econômica com os países da região, sobretudo em relação ao comércio e investimentos em infraestrutura de transporte. No campo da cooperação militar, a Turquia estabeleceu contatos com Cazaquistão e Uzbequistão em meio à guerra entre Armênia e Azerbaijão pelo controle sobre Nagorno-Karabakh. Foram assinados acordos de cooperação militar e técnico-militar com os dois países, além da discussão de uma parceria estratégica entre Turquia e Cazaquistão.

Ademais, há o desejo turco de criar uma aliança militar liderada por Ancara com os países da Ásia Central, o chamado Turan Army. No entanto, tal iniciativa é mais complexa quanto a sua execução, uma vez que Cazaquistão e Tadjiquistão fazem parte do OTSC, enquanto a Turquia é membro da OTAN. Por fim, o governo de Recep Erdogan tem investido na propaganda da Turquia como líder e defensora dos muçulmanos e dos povos túrquicos, através de instrumentos de soft power imagéticos, como o cinema e a indústria de entretenimento. Institucionalmente, a cooperação entre os países se dá sob os auspícios da Organização dos Estados Túrquicos, bloco que inclui o Azerbaijão, Cazaquistão, Quirguistão, Turquia e Uzbequistão.

A partir dos elementos apresentados, sugere-se que a capacidade de influência de Moscou sobre os países da Ásia Central tende a ser colocada em xeque. Três elementos são destacados como os maiores desafios a Moscou no que tange às relações com as ex-repúblicas soviéticas da Ásia Central. Em primeiro lugar, a capacidade de Moscou de agir como garantidor da estabilidade política e social nos países, sobretudo a partir do uso da organização militar OTSC, bem como no papel de mediador dos conflitos. Em segundo lugar, a ascensão de novos atores com interesses na região, a destacar China e Turquia, munidos, principalmente, de capacidade econômica, no caso chinês, e cultural-religioso, no caso turco. Por fim, a guerra iniciada pela Rússia na Ucrânia, assim como os outros episódios de interferência na soberania territorial de outros ex-estados soviéticos – nomeadamente Ossétia e Abecásia do Sul, na Geórgia, em 2008; e Crimeia, em 2014 – podem promover a imagem da Rússia como potência agressora entre a população destes países, fortalecendo o surgimento de uma nova elite política e econômica entre estes de cunho mais nacionalista e favoráveis a um distanciamento das relações com Moscou em prol de uma aproximação com outras potências da região.

[1] Entende-se como política externa turca neo-otomanista aquela que, sob o comando de Recep Erdogan, reorientou as relações externas turcas para o Oriente, em detrimento do tradicional privilégio dado às relações com Estados Unidos e Europa no século XX. Nesse sentido, o governo turco assumiu o compromisso de se tornar uma liderança regional no Oriente Médio, a partir do resgate do passado otomano – a partir de uma narrativa que enfatiza o poder político, espiritual  e cultural  do antigo Império Otomano – e se posicionando como defensor dos muçulmanos sunitas.

[2] Por povos túrquicos entende-se aqueles que compartilham elementos etno-linguísticos, compreendendo, entre outros: turcos, turcomanos, cazaques, usbeques, quirguizes, azeris, uigures.

*Getúlio Alves de Almeida Neto é mestre em Relações Internacionais pelo PPGRI “San Tiago Dantas” (Unesp, UNICAMP, PUC-SP). Defendeu a Dissertação de Mestrado sobre a reforma militar russa e a projeção de poder do país. Membro do Observatório de Conflitos do GEDES. Contato: getulio.neto@unesp.br

Imagem: Os exclaves tadjiques de Sarwan and Woruch; o enclave quirguiz de Barak, os enclaves uzbeques de Chong-Kara, Dzhangail, Shohimardon, So’x and Tayan. Por Lencer/Wikimmedia Commons.

Referências

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