As operações de paz instituídas sob a autoridade da Organização das Nações Unidas (ONU) demonstraram, nos últimos anos, sua capacidade de mobilizar recursos militares em busca da manutenção da paz. No entanto, a organização enfrentou diversos problemas estratégicos em suas missões, ilustrados pelo o cerco à companhia irlandesa na cidade de Jadotville, na República do Congo. A produção cinematográficaThe Siege of Jadotville, dirigida pelo cineasta Richie Smyth e lançada no ano de 2016, retrata as dificuldades enfrentadas pelos militares irlandeses enviados à República do Congo no início da década de 1960.
Inserido no contexto dos movimentos de independência de países africanos, o Congo tornou-se independente da Bélgica em 1960. Contudo, o novo Estado na África Central enfrentou severas turbulências em seus primeiros anos: o conflito civil deflagrado na antiga colônia belga evidenciou o interesse de grupos separatistas na província de Katanga, que se opunham ao governo do primeiro-ministro Patrice Lumumba. As tensões eram ainda mais acirradas por conta de interesses belgas em manter o controle de operações de mineração na província separatista.
Frente à crescente instabilidade na região, as Nações Unidas autorizaram o envio de tropas internacionais ao território congolês. A Operação das Nações Unidas no Congo (ONUC), instituída através de mandato expedido pelo Conselho de Segurança em julho de 1960, possuía como objetivos iniciais apoiar a retirada das tropas belgas do território congolês, auxiliar o governo local a garantir a manutenção da lei e da ordem, assim como providenciar auxílio técnico às forças armadas congolesas. Na prática, diversas foram as dificuldades enfrentadas pelos chamados “capacetes azuis” em cumprir tais disposições. Em especial, as forças de paz enfrentaram a insuficiência de recursos materiais e humanos e a impossibilidade de estabelecer comunicação com outros postos da ONUC.
O longa-metragem enfatiza a carência das tropas irlandesas em recursos bélicos e apresenta a impossibilidade das tropas internacionais atuando sob a bandeira da ONU de empregar a força para garantir o cumprimento dos objetivos alinhavados pelas potências mundiais. A companhia irlandesa é cercada por grupos hostis formados por mercenários e combatentes locais, que superam numérica e belicamente as tropas enviadas pela comunidade internacional. As forças da província de Katanga contavam com peças de artilharia e suporte aéreo, que ampliavam sua capacidade bélica frente às tropas internacionais. Após seis dias de cerco, o sargento Pat Quinlan negociou a rendição do grupo, evitando a morte dos soldados sob seu comando. Os soldados seriam então mantidos prisioneiros pelas forças de Katanga com o objetivo de forçar um acordo de cessar fogo embaraçoso às autoridades internacionais.
A missão das Nações Unidas no Congo seria marcada pela incapacidade em alcançar os objetivos traçados inicialmente. Com efeito, o Conselho de Segurança, através da resolução 199-1964 transferiu a responsabilidade pelo conflito no Congo à União Africana, requisitando aos demais Estados que interrompessem a intervenção no país. Os militares irlandeses, após serem libertados pelas forças da província de Katanga, foram recebidos como covardes em sua terra natal, sob o estigma de uma missão incapaz de cumprir com seus objetivos. Foi apenas no ano de 2005 que os soldados da Companhia A foram reconhecidos como heróis de guerra.
A produção cinematográfica enfatiza a restrição ao uso de meios coercitivos pelas tropas internacionais em missões de paz. Com efeito, a discussão sobre a possibilidade do uso da força para ações além da legítima defesa é recorrente no espaço decisório das Nações Unidas. Durante o período da Guerra Fria, as esparsas iniciativas para a manutenção da paz autorizadas pelo Conselho de Segurança limitavam o recurso à força à proteção das tropas em casos de ataques iniciados pelas demais partes do conflito. Contudo, com o descongelamento do espaço decisório e a ampliação no número de operações de paz, identificou-se a necessidade de reconsiderar os princípios tradicionais de condução das missões sob a égide da ONU. Assim, são tensionadas as interpretações quanto a imparcialidade, a necessidade de consentimento das partes beligerantes e, sobretudo, ao uso de recursos coercitivos para o cumprimento dos mandatos das missões de paz.
As operações de paz, outrora instituídas majoritariamente sob o abrigo do Capítulo VI da Carta das Nações Unidas, possuem responsabilidades ampliadas a partir da década de 1990. É possível identificar a partir de então uma tendência favorável à aprovação de operações permitidas a utilizar recursos coercitivos para garantir o cumprimento dos mandatos, sob abrigo do Capítulo VII.
Como sinal das novas características das missões de paz é possível indicar o abrigo da Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti sob o Capítulo VII da Carta de São Francisco. Contemporaneamente, a criação de uma Brigada de Intervenção, sob o mandato da Missão das Nações Unidas para a Estabilização da República Democrática do Congo, reforça a percepção da ampliação das responsabilidades das operações de paz instituídas pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas.
É preciso, contudo, ponderar quais seriam as implicações do uso da força por tropas internacionais mobilizadas para uma missão de paz. A ampliação das capacidades coercitivas de uma tropa internacional em uma missão de paz pode implicar a percepção do surgimento de uma nova parte beligerante no conflito, aprofundando as tensões inerentes à situação. Assim, enfrenta-se um dilema entre a inação das tropas e os resultados controversos do uso de meios coercitivos em missões de paz. Torna-se necessário, então, discutir regulações precisas quanto ao uso de meios coercitivos pelas tropas em terreno, de forma a minimizar a ocorrência de ações militares com impactos negativos sobre a população local.
Leonardo Dias de Paula é graduando em Relações Internacionais na Universidade Estadual Paulista (UNESP) campus de Franca e pesquisador do Gedes.
Imagem:United Nations Assistance in the Congo (ONUC). Por: United Nations Photo.